Está decidido: uma nova arca de Noé vai sair daqui a pouco em direção a outra frequência. Não é mais possível viver dentro dessa tragédia bíblica, em situação de risco. Um dos grandes teólogos brasileiros, Leonardo Boff – que particularmente respeito e admiro mais do que nunca – sentenciou: “Precisamos de uma arca de Noé, onde todos possam se abrigar, abstraindo-se das diferentes extrações ideológicas e para não sermos tragados pelo dilúvio da irracionalidade e das violências que poderão irromper”. Assino embaixo e peço ajuda a algumas pessoas para embarcar nessa viagem em direção a outro mundo. Cada um terá o direito de levar o essencial, nada que pese na bagagem, no coração e na consciência.
Ódio não entra, nem zombaria nem brigas por nada. Nessa nova arca de Noé não tem lugar para desigualdades intoleráveis, discursos vazios, promessas vãs, desrespeito, acusações, vaidade, medo, estrelismo. A nova arca de Noé é autossustentável e os passageiros têm passaporte para a abundância e a prosperidade, sem moedas falsas, sem o grito desesperado de certas igrejas, cujos fiéis urram por Deus, como se Ele fosse surdo. Na nova arca de Noé, a comunicação com Deus é direta, seja qual for o seu deus. Todos no mais perfeito silêncio, como o dos monges budistas em meditação. O passaporte para o mundo de lá é o da evolução. Basta de dor, de agressões, de violência, chega de língua afiada, de revólveres apontados para o peito. Basta de faca amolada. Nada a temer. É preciso, neste momento, esquecer o medo, fugir de armadilhas. Nessa nova arca de Noé serão permitidos apenas a flecha, o arco, o rosto pintado e a sabedoria dos índios.
Nessa nova arca de Noé embarcam também a comunidade quilombola do Açude da Serra do Cipó, com o casal Cuta e Nega, além dos seus dois filhos, que vão dançar o samba de senzala para levar alegria às pernas enferrujadas dos passageiros de todas as cores. Aqui, raça é força, é coragem. É candombe, que, no dialeto africano quimbundo, significa sala de reuniões. É uma reza em forma de canto, pois formam-se rodas a noite inteira, e todo mundo pode entrar. Se quiser, o morador ou visitante pode fazer um verso e cantá-lo, expressando o sentimento naquele momento. É chamado de ponto, um limpa-alma completo.
É de bom tom também levar, guardada no coração, a história da comunidade. Em 1915, quando minguaram as águas do rio que dá nome à região, os donos da antiga Fazenda do Cipó decidiram trocar de lugar o engenho de cana. Os trabalhadores, negros recém-alforriados, tiveram então que sair da região da Vargem para povoar a área, que ficou conhecida como Açude.
Assim, vai também dona Mercês, matriarca da comunidade, que continua a história ancestral de mais de 200 anos do Açude – e hoje, já iluminada pelo crepúsculo da vida, sábia, serena, em silêncio, dá assistência aos irmãos quilombolas. Olha para o vestido branco dessa mulher enluarada, sorri para quem ainda não conhece o poder de alguém com nome de Flor.
Os três tambus da comunidade, guardados como tesouros sonoros, também vão. Assim como a indignação do músico e cinegrafista Danilo Santos, filho do Açude e guardião das tradições. Os tambus têm entrada franca, pois completaram 205 anos. Foram feitos pelos escravos do tronco do saboeiro, sendo a madeira escavada de um lado e coberta com couro de boi. Abram passagem, porque os tambus também vão para o mundo do lado de lá, salvaguardados desse dilúvio que não tem tempo para acabar. Todos embarcam cantando Casa aberta, de Flávio Henrique e Chico Amaral: “Na casa aberta, é noite de festa, dançam Geralda, Helena, Flor, na beira do rio, escuto Ramiro, dona Mercês toca tambor”.
Na nova arca de Noé está a amiga Duas Tranças. Permitido embarcar com a família, amigos, alguns livros preciosos, algumas sementes e folhas de ervas e árvores que representam a panaceia de cura, que vão fazer muito bem aos tripulantes dessa barca. Sem sementes e flores para os momentos de emergência, a Duas Tranças não vai.
Vai também Maria Teodora, de mãos dadas com a companheira. Elas acabaram de se casar, diante da aprovação das duas famílias, antes que a questão de gênero vire guerra. Maria Teodora traz todos os livros que tem vontade de ler, mas não conseguiu, neste mundo insano, as sete irmãs dela, uma foto da Serra da Piedade, que, desde menina, ela vê a silhueta da janela do seu quarto. Pede para levar o celular embrulhadinho num plástico e bem escondido para documentar a travessia. Pedido negado, Maria Teodora. No mundo do lado de lá não tem celular.
Rê Mineira vem com o seu cachorro Negão, um casal de beija-flor-gravatinha, um casal de pato mergulhão e, se couber, um casal de rinoceronte. Wânia também vai levando suas cachorras e um outro cão de rua que acabou de adotar. Vêm com pincéis, carimbos e tintas para fazer muita arte durante o dilúvio. Vem também com ervas para eternizar, como tomilho, hortelã-pimenta, manjericão, capuchinha, coentro selvagem, lavanda e vasos de suculentas. O resto pode ficar.
Gabriel pede para levar “a minha loucura, o meu corpo, um embornal de água e amizade”. Pedido concedido, porque, afinal, normalidade demais é contraindicada, faz mal à saúde. Está provado. Caretice em excesso deu no que deu. Cori vem com todas as irmãs, o filho e sobrinhos, além do HD com todas as músicas preferidas, uma caixa de som, o gato Mel Gibson e a coleção de pedras que ganhou, comprou e achou.
Carlos Ferrer, o nobre pecador, pede passagem. Debaixo do braço, o livro Guerra e paz, de Tolstoi. Ele traz também fotos de todas as mulheres que amou e que nunca se esqueceu delas, para intercalar nas páginas do livro. Também traz as canções de Miles Davis, sem letra, para não encher a paciência de ninguém. Ah, sementes de flores são indispensáveis – camélias, dálias, rosas, antúrios, aliás, todas as possíveis. Depois do dilúvio, não há paraíso sem flor. Ele vem também com um casal de canário chapinha, pois não aguenta mais ver gente roubando os da Praça da Liberdade para vender a qualquer preço. Traz na bagagem todas as lembranças de tudo de bom que viveu. Na pressa de pegar a arca de Noé, quase se esqueceu de levar uma fita com todas as grandes jogadas de Joãozinho, do Cruzeiro, seu time de futebol amado. Esse último item foi confiscado. Na nova arca de Noé, nada de futebol e briga de torcida!
E lá vou eu nessa arca de Noé, com bloco de anotações, um lápis e nada mais, para contar para vocês as coisas do mundo de lá, logo que acabar o dilúvio. Até!!!!
Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente