Ensinar crianças e jovens a cuidar de si mesmos e a se gostarem é fundamental, no passo em que isso favoreça a autoestima, a autoconfiança e a vontade de estar bem, segundo afirma a psicóloga Flávia Carnielli, com formação em psicologia infantil. "É recorrente que o interesse pelo assunto não vá além de uma brincadeira. Colorir as unhas ou o rosto é tão divertido quanto criar um desenho no papel e, muitas vezes, a intenção dos pequenos não é acentuar a beleza, mas se distrair. Brincar de ser grande, com as roupas da mãe ou do pai, seus sapatos e acessórios, faz parte da descoberta do mundo, do desenvolvimento da imaginação, da criatividade, do crescimento emocional e do pensamento lúdico", destaca.
Flávia tem uma filha pequena e vivencia tudo isso de perto. A garota Maria Clara, de 3 anos, gosta de passar batom, colocar laço no cabelo, usar perfume, pintar as unhas e, algumas vezes, de resolver o que vestir – mas tudo na base da brincadeira. É uma vaidade saudável, que não surte preocupação, diz a psicóloga. "Da mesma maneira que ela usa batom, se pegar uma tinta e passar nas mãos, no rosto, também é diversão", conta. A atenção com a aparência não é excessiva a ponto de fazer com que a menina deixe de lado os divertimentos comuns da idade.
"Ela pode sentar no chão, brincar, se sujar, ficar descabelada, sem problema. Quando estou me maquiando ou vou ao salão fazer a unha, ela às vezes pede para fazer isso também. Gosta de se arrumar, mas não é prioridade para ela. Cuida do penteado das bonecas. Brincar de se fantasiar de algum personagem, de interpretar é sadio. Começa a perder o lado positivo quando a criança só sai de casa se arrumar o cabelo, se passar maquiagem", diz Flávia, sublinhando esse comportamento de alerta.
Aos 5 anos, Mariana Penido gosta de se cuidar. "É pra ficar bonita", diz. Ela acaba de ganhar uma bolsa de uma amiga, e carrega, por exemplo, esmalte, gloss, gominha de cabelo, passador e um inusitado separador de dedos do pé. Entre os modelos de vestuário, a menina prefere vestido longo, saia, blusa de manga comprida, e conta que um babado também cai bem.
Na hora de se arrumar, Mariana passa batom, ajeita o cabelo e coloca acessórios – o colar é um dos preferidos. "Quando tenho que ir para uma festa chique, uso sombra. Minha mãe deixa." A garota tem um kit completo de maquiagem, que inclui, inclusive, manteiga de cacau, e é habilidosa na hora de se aprontar – aplica os produtos sem se borrar. Desde os 3 anos, é ela quem escolhe a própria roupa. Quando vai à praia, uma diversão é fazer tatuagem de rena, tererê e amarrar pulseirinhas. Agora, em sua lista de desejo, está uma bota holográfica, que muda de cor.
INFORMAÇÃO
A mãe de Mariana, a médica Patrícia Penido, diz que o despertar da menina para a questão da vaidade é algo totalmente dela. "Não costumo andar maquiada, por exemplo. Sou vaidosa, mas não penso muito nisso. Tenho uma bolsa, que uso até o fim, e a Mariana tem um monte", compara. Para Patrícia, o acesso maior a brinquedos, objetos, "badulaques e bobajadas", ampliado pela globalização, faz com que as crianças apreendam novas formas de ser e ter. Em relação à vaidade, muitas questões acabam vindo dos outros. "Falava para ela não pintar as unhas, até que um dia, voltando da casa de uma tia, chegou usando esmalte. Tinha 3 anos na época", conta.
A médica considera a relação da filha com a vaidade tranquila, “positiva até para a construção da autoestima, da feminilidade e da autonomia. Mas se a roupa sujar, tudo bem. Se é de marca ou não, ela nem sabe o que é isso. Nada vai impedi-la de rolar no chão, de brincar na areia. Ela não deixa de ser criança. É saudável. E já tenho tanta coisa porque brigar, vou implicar com o laço no cabelo?", diz. Patrícia destaca, ainda, o maior acesso a fontes de informação. "Ela assiste ao YouTube, internet, às propagandas nos intervalos dos desenhos; na escola, vê o que a colega está usando. É bombardeada por informações." No fim das contas, acrescenta Patrícia, se a criança se achar bonita, é isso."Sentir-se bem, à vontade e bela, é bom até para a interação social."
Beatriz Mata é cuidadosa com o visual. Aos 4 anos, sua predileção começa a ser por referências a princesas, o queridinho do momento, o unicórnio, além de personagens de desenhos animados, que gosta de imitar. A pequena passa batom, esmalte e não dispensa um laço de fita nos cabelos. É ela quem escolhe o look para cada dia, e adora vestidos. Não se importa se, nos momentos de diversão e no corre-corre das brincadeiras, alguma coisa "sai do lugar". "Gosto de me arrumar e ficar bonita pra mostrar pros meus amigos", diz.
"É uma menina vaidosa. Sempre que se veste se olha no espelho, pergunta se está combinando, se ficou bonita. Acho que a influência vem da mãe. É algo sadio, nem um pouco excessivo. Ao mesmo tempo em que a Bia é vaidosa, também é moleca, gosta de bagunça, sujeira, de uma poça de lama. Sempre brinca e se lambuza", conta o pai, Tiago Lemos.
INFÂNCIA
Os pais precisam diferenciar as situações em que a criança está sendo sexualizada daquelas em que está ocorrendo apenas um exercício, útil ao desenvolvimento. Uma criança que cresce agindo e pensando como adulto sofre para se enturmar e não aproveita a infância para descobrir o mundo – não se sente à vontade com a própria idade. Nesse aspecto, ser adulto deve ser apenas mais uma brincadeira, não uma realidade. Usar o salto da mãe para fingir um personagem é uma coisa bem diferente de sair para passear com sapato de salto. Em vez de proibir, no entanto, há que se oferecer opções adequadas para a criança. O exagero ao contrário, ou seja, reprimir ao máximo toda manifestação de feminilidade, fazendo com que a menina sinta culpa ao se arrumar ou ao cultivar qualquer hábito ligado à vaidade, também não funciona. (JG)
palavra de especialista
Regina Fonseca
psicóloga
“Criança precisa ser criança”
“Importar-se com a aparência é positivo, porque o desinteresse indica pouco amor-próprio – mas tudo com equilíbrio. A vaidade infantil, em proporções moderadas, demonstra um processo de desenvolvimento saudável. O fato de crianças se espelharem em pessoas mais velhas na hora de se produzir é comum. Brincar de gente grande, com as roupas da mãe e seus batons, faz parte da descoberta do mundo, do desenvolvimento da imaginação e de uma visão lúdica. O faz de conta incentiva a criatividade e o crescimento psicológico saudável. Mas quando deixa de ser brincadeira e se transforma em motivo para agradar aos adultos e chamar sua atenção, torna-se nocivo. Quando esse modismo ocorre com a admiração e aprovação da sociedade, entenda-se família e amigos, a criança pode querer imitar para também fazer parte desse mundo, o que é natural. O cuidado se dá em relação à forma como isso ocorre."Se a identificação da criança com um modelo qualquer passa a interferir de forma negativa em seu convívio familiar ou social, é hora de parar e conversar, para investigar o que está por trás desse comportamento. É bom transmitir bons valores para o filho, explicar que usar roupas caras não faz ninguém ser melhor que ninguém, ou que pessoas magras não são mais especiais que as outras. Criança precisa ser criança. As imitações, de um modo geral, fazem parte do processo de desenvolvimento infantil. Essa imitação se transforma em um problema quando a criança passa a apresentar um comportamento de vaidade que está muito além da sua idade e em detrimento de brincadeiras que antes fazia."