Existem muitos mistérios que cercam o funcionamento da mente humana. Ainda se sabe pouco sobre o cérebro e as condições atípicas de atividade do órgão – chamadas de neurodiversidades. Um dos passos rumo à compreensão do quadro é definir a quanto corresponde a parcela da população que tem autismo. Estima-se que 70 milhões de pessoas contem com algum nível de transtorno do espectro autista (TEA) no mundo – e, desses, 2 milhões sejam brasileiros. No entanto, especialistas na área acreditam que o número seja bem maior.
Em julho deste ano, foi aprovada a Lei 13.861, que visa incluir especificidades inerentes ao autismo nos censos demográficos. O resultado disso é que, a partir de 2020, informações sobre a quantidade e a condição socioeconômica das pessoas com espectro autista estarão disponíveis.
O intuito da inclusão desses dados é que sejam elaboradas políticas públicas que garantam aos autistas o pleno exercício da cidadania. “Não existem adaptações na educação, na saúde ou na assistência social. Essa omissão do Estado, sem dúvida, se dá pela inexistência de dados oficiais sobre o autismo”, defende a deputada federal Carmen Zanotto (Cidadania/SC), responsável pelo projeto.
Fabiana Andrade, psicóloga e mestre em ciências do comportamento, pondera que a falta de informação dificulta o acesso à intervenção de uma parcela da população significativa. “Quando se tem esse tipo de dado, a sociedade se prepara e enxerga as pessoas com TEA de forma inclusiva. Essas pessoas existem, precisam ser contadas e atendidas de acordo com as suas características específicas”, afirma.
Medidas, como a inclusão dos dados dos autistas no censo demográfico auxiliarão no desenvolvimento de adultos e crianças, como Daniel Santos, de 7 anos, que precisa de atendimento especializado. O mundo dele é bastante particular. O menino nasceu com deficiência visual e também foi diagnosticado com autismo aos 3 anos. Daniel tem características especiais por conta do transtorno. Demanda grande por estímulos sonoros, sensibilidade severa ao tato e apego à rotina são algumas delas.
Durante muito tempo, ficar sentado para se concentrar e aprender era algo impossível para Daniel. A sensibilidade a cores e texturas também representava um entrave ao desenvolvimento do garoto. Algumas coisas que tocava causavam nele uma repulsa tremenda. “Imagine para uma criança deficiente visual, que tem de aprender a ver o mundo com o tato e a ler em braille, o que é ter repulsa em encostar nas coisas?”, questiona sua mãe, Hedrienny Santos.
Conseguir acessá-lo e retirar algumas dificuldades que tinha só foi possível graças à música. O caso de Daniel é caracterizado pela busca contínua de estímulos sonoros. Saber que o barulho do micro-ondas de casa é um Lá sustenido, ou que a buzina do carro do pai emite a nota Si é uma habilidade que o garoto tem desde que nasceu. A audição dele não identifica apenas sons, mas notas musicais.
Considerado ouvido absoluto – fenômeno auditivo que caracteriza a habilidade de uma pessoa em identificar ou recriar uma nota musical sem ter o tom de referência –, Daniel consegue reproduzir músicas e grandes sinfonias no piano depois de ouvi-las.
AJUDAS PRECIOSAS
Aprender a enxergar como o garoto permitiu que a família se conectasse com ele. Para tanto, eles contaram com a ajuda de uma professora especializada da rede pública de ensino. “Encontrar alguém que acreditou no meu filho e sabia como se comunicar com ele foi fundamental para o desenvolvimento do Daniel”, garante Hedrienny Santos.Com o acompanhamento da professora, que entende as particularidades do quadro e está aberta a testar métodos e técnicas especiais, o aprendizado de Daniel está cada vez mais desenvolvido e as limitações, menores.
Júlia Santos, de 5, também é um pilar importante para o crescimento do irmão. Assim como Daniel, a menina é deficiente visual, e, por anos, eles não tinham conexão nenhuma. Mas é quase impossível não se apaixonar pela doçura dela. Foi por conta da perseverança e do amor da irmã que os dois construíram uma amizade e parceria muito forte. “Ela é minha coterapeuta”, brinca a mãe.
Hoje, Daniel lê em braille com facilidade, encanta a todos com as belíssimas sinfonias que toca no piano e conquista qualquer um com seu jeito de ser. “Meus filhos me ensinam coisas novas todos os dias e me fazem querer ser uma mãe melhor. Tenho três experiências com a maternidade, totalmente diferentes: o Daniel, que é cego e autista, a Júlia, que é deficiente visual, mas tem as outras habilidades de uma criança típica, e o Pedro, que tem o desenvolvimento cerebral tradicional. Todos os dias, preciso aprender e me reinventar, mas é muito gratificante ver cada avanço que eles vão alcançando e participar desse processo de desenvolvimento”, diz Hedrienny.
Hoje, Daniel lê em braille com facilidade, encanta a todos com as belíssimas sinfonias que toca no piano e conquista qualquer um com seu jeito de ser. “Meus filhos me ensinam coisas novas todos os dias e me fazem querer ser uma mãe melhor. Tenho três experiências com a maternidade, totalmente diferentes: o Daniel, que é cego e autista, a Júlia, que é deficiente visual, mas tem as outras habilidades de uma criança típica, e o Pedro, que tem o desenvolvimento cerebral tradicional. Todos os dias, preciso aprender e me reinventar, mas é muito gratificante ver cada avanço que eles vão alcançando e participar desse processo de desenvolvimento”, diz Hedrienny.
CARACTERÍSTICAS
O que se sabe sobre o TEA, segundo a Organização Mundial da Saúde, é que ele se refere a uma série de condições caracterizadas por um grau de comprometimento no trato social e em padrões de comportamento restritivos e repetitivos. A psicóloga Fabiana Andrade pontua que o transtorno “descreve um cérebro que funciona diferente – alguns com atraso e outros com graus mais leves de comprometimento”.A especialista explica que a causa da formação cerebral diferente ainda é incerta. Sabe-se, hoje, que 80% dos casos estão relacionados a fatores genéticos associados a parentes próximos, e 20% a familiares mais distantes. De 1% a 3% das crianças que nascem com autismo têm alguma relação com fatores ambientais antes do nascimento – por exemplo, remédios ou algum tipo de acidente.
Todos os casos, porém, antes do nascimento. Por ser uma característica de funcionamento cerebral, não é possível adquirir o autismo ao longo da vida, ou seja, a pessoa nasce com ele.
Após perceber diferenças no comportamento dos pequenos, é importante procurar um especialista. Ele será responsável pela avaliação que auxilia na determinação das necessidades de cada paciente, de forma individualizada, para, então, determinar as terapias aplicadas.
O diagnóstico é quatro vezes mais frequente no sexo masculino, e as particularidades existem de forma significativa nos diferentes níveis do espectro. Cada autista tem sua singularidade; por isso é tão difícil delimitar uma maneira de acompanhamento ou de educação para o aluno. Eles reagem de maneira diversa à comunicação, aos novos ensinamentos e aos tipos de interação.
Cinco perguntas para...
Catiane Ferreira, Idealizadora do grupo "Unidas pelo Autismo", em Belo Horizonte
Como surgiu o grupo?
O grupo surgiu da necessidade que eu, como mãe, tinha em trocar informações acerca do autismo, pois me sentia muito sozinha. Em 2015, criei o grupo Unidas pelo Autismo no WhatsApp, para troca de experiências. No início, éramos apenas seis mães, mas à medida que conhecíamos outras mães íamos incluindo-as no grupo. Após o diagnóstico do meu filho, senti essa necessidade de trocar experiências e compartilhar ideias com outras mães, sair daquele solidão que o diagnóstico me impôs. Vale ressaltar que nosso grupo é um espaço até hoje aberto somente para mães, exatamente para que não haja nenhum tipo de barreiras nessa troca de experiências. É de
mãe para mãe!
Qual é o objetivo? Há quantas mães no grupo atualmente?
O grupo é usado para repassar informações sobre tudo o diz respeito ao autismo. Um espaço onde podemos falar sem reservas dos nossos medos, expectativas ou mesmo desabafar com pessoas que passam por situações semelhantes. Hoje, já são dois grupos e temos, até o momento, 330 participantes, mas quase todos os dias entra uma mãe, principalmente com diagnóstico recente. Interessante também que muitos profissionais indicam nosso grupo às mães como forma
de ajudá-las.
Qual a importância dessa ponte de apoio entre mães que passam por situações parecidas?
Saber que ela não está sozinha, que não ocorre só com ela e, principalmente, aprender uma com a experiência da outra. É uma troca diária, já que, no grupo, tem mães com filhos em idades diferentes, diagnósticos recentes e antigos, e todas as experiências são compartilhadas no grupo. É notório que as mães, aos poucos, ficam mais confiantes, mais informadas e seguras dos direitos de seus filhos, o que traz uma maior qualidade de vida a todos.
Quais os desafios de mães de autistas hoje no Brasil?
São vários os desafios, mas o maior deles é a falta de políticas públicas eficazes para pessoas com deficiência de um modo geral. Tanto na saúde quanto na educação, são poucos os profissionais qualificados, principalmente os da área de saúde, que ainda não estão preparados para identificar o autismo nos primeiros anos de vida da criança, o que traz um prejuízo enorme para seu desenvolvimento, atrasando o início das intervenções necessárias. Na educação, a grande maioria dos autistas não se desenvolve em sua totalidade devido a uma falta de estrutura e materialidade adequada que acompanhe esse aluno durante toda sua vida escolar.
Como surgiu a ideia de produzir um livro?
O livro veio para deixar registrado parte do que vivíamos dentro do grupo. Assim, 10 mães se uniram para escrever, cada uma a seu modo, sua história após o diagnóstico de autismo de seu filho(a). Nenhuma tinha noção por onde começar, tivemos que aprender juntas todo o processo, desde a escrita das histórias até chegar a uma editora para a publicação. A informação correta liberta.
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