Eles saíram às pressas de seu país deixando para trás parentes, amigos, pertences e trouxeram apenas a esperança de poder exercer a profissão médica em um país carente desses profissionais. “Não queremos ganhar muito dinheiro, queremos ajudar essa população carente e ao mesmo tempo sobreviver com dignidade”, fala emocionado o clínico geral Renny Mosqueda, de 29 anos, que há três meses chegou à cidade de Ribeirão das Neves, na Grande BH, com a roupa do corpo e acompanhado da esposa, também médica, Olga Castillo, de 25, e o filho Santiago Angulo, de 7. Ela soube há poucos dias que está grávida.
Renny conseguiu emprego de balconista em uma farmácia no Bairro Metropolitano, na cidade da Grande BH, onde ganha um salário mínimo para meia jornada diária. “Estou muito contente em poder começar a pagar as contas, comprar alimentos e roupas para minha família com os próprios recursos.”
O médico conta sua saga em Caracas, onde chegou a ser diretor de um grande hospital. “Nosso país vive uma crise política e econômica que atingiu em cheio a população.” Renny lembra que ele e a esposa trabalhavam em plantões de 48 horas, às vezes sob condições precárias. A cidade chegou a ficar cinco dias sem energia elétrica. “Minha esposa e eu realizamos alguns partos no escuro.” No fim do mês, o salário era suficiente para comprar “um frango, um sabonete e uma pasta de dente”.
O governo venezuelano disponibilizava carnês para atender a outras necessidades econômicas e de alimentação. Mas a renda não era suficiente para adquirir móveis para casa ou roupas para a família. “Uma experiência muito humilhante”, descreve o casal ao falar sobre a saída da família da Venezuela. Sem dinheiro e sem comida, eles caminharam 13 quilômetros entre a fronteira e Boa Vista, capital de Roraima, depois de três dias de caminhada através do território venezuelano. “Fomos maltratados pela Polícia Federal brasileira, que adiava nossa entrada sem explicar o porquê. Passamos três dias em uma fila para regularizar a documentação, dormindo no chão duro.”
Mosqueda foi missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons) e conheceu através de uma rede social o bispo brasileiro Edmilson de Souza Costa, que o introduziu em um programa de acolhimento a refugiados promovido pelas igrejas espalhadas em todo o país. Ele recebeu passagem aérea para a família, que foi acolhida na própria casa do bispo, em Ribeirão das Neves. Edmilson é superintendente de proteção social básica do município. Segundo o religioso, os dois são muito articulados e logo se tornaram conhecidos no bairro. Renny conheceu o dono de uma farmácia, que lhe deu emprego de balconista.
“Sou muito grato às pessoas que muito me ajudaram. Chegamos sem nada, ganhamos um fogão e uma geladeira em estado precário e um colchão. Com o emprego, consegui alugar um imóvel para minha família e já tenho fogão, geladeira, máquina de lavar, ganhamos uma TV para o meu filho, computador e internet. Já posso pagar minhas contas.”
VOLUNTÁRIOS
O bispo conta que os mórmons têm um programa que abrange todas as igrejas para trazer refugiados e dar-lhes condições de crescer e se estabelecer. “Esse programa ajuda todos, independentemente de crença ou convicções políticas. O trabalho começa em Boa Vista, onde as famílias são recebidas, e fazemos contatos com líderes religiosos voluntários. As famílias são acolhidas e encaminhadas às cidades onde há igrejas”, explica. As comunidades (incluindo quem não é da igreja) são mobilizadas e estruturam uma moradia, com doações para mobiliar a casa, compra de utensílios, roupas e alimentos, e um fundo da igreja ajuda nas contas de luz e água, até que eles consigam se manter por conta própria.
O casal alimenta o sonho de um dia voltar à Venezuela, mas se diz muito feliz com a acolhida dos brasileiros e pretende se estabelecer no Brasil. “Na farmácia, todo atendimento que faço termina com um largo sorriso e isso é muito positivo para nós. Mas o que eu e minha esposa queremos é colocar a serviço da população nossas habilidades médicas. Não precisamos de muito dinheiro. Já fazíamos isso em nosso país, com remuneração baixa. O Brasil tem poucos profissionais para atender à população e não nos incomodaria trabalhar onde médicos brasileiros não querem. Pode ser em aldeias indígenas ou cidades mais longe. Queremos é exercer a profissão para a qual estudamos mais de seis anos e cumprir o propósito de ajudar pessoas carentes, como estamos sendo ajudados neste momento.”
A validação do diploma é a principal barreira para que possam atender à população. Renny diz ter se cadastrado na plataforma Carolina Bori, que analisa a documentação do estrangeiro e encaminha à instituição federal apta a promover os exames para revalidação do diploma, mas foi informado de que existem mais de 15 mil pedidos à espera. “Tentei na UFMG, mas fiquei no 794º lugar e a universidade atende apenas 25 pedidos a cada seis meses. É muito demorado e são muitas exigências burocráticas.”
Danny Zahreddine, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Melo, do Acnur/PUC Minas, diz que reconhecer um título internacional requer garantias de que as habilidades e competências adquiridas no exterior são válidas para que o profissional possa agir aqui com competência, sem prejuízos a outras pessoas. “Quando se tem status de refugiado, muito da burocracia é relativizada. Se consegue esse status, não precisa necessariamente ter documentos originais do país de origem. As instituições federais estão autorizadas a auxiliar nisso.”
A maior parte dos que entram não está enquadrada no estatuto do refugiado. São asilados. Fica como imigrante com visto humanitário. Segundo o coordenador da Cátedra, o refugiado recebe uma série de garantias do Estado porque vive uma condição de marginalidade, perigo, vulnerabilidade que é iminente, não pode mais viver em seu país. Já o migrante saiu por vontade própria para tentar uma vida melhor. “Muitos vêm e tentam asilo e não conseguem. Há muita desinformação, preconceito, pessoas que não querem se envolver, algumas universidades públicas são muitas vezes insensíveis a isso e precisamos sensibilizá-los para a questão do refúgio ou do migrante que tem visto humanitário.”
Plataforma Carolina Bori
A Plataforma Carolina Bori é uma ferramenta para implantação da Política do Sistema Nacional de Revalidação e Reconhecimento de Diplomas Estrangeiros. Trata-se de um conjunto de medidas orientadas para facilitar o reconhecimento de diplomas e títulos acadêmicos, em alinhamento com os padrões de qualidade instituídos por meio de uma consistente e reconhecida política nacional de regulação e avaliação da educação superior. É voltado para pessoas que têm títulos de graduação ou pós-graduação (stricto sensu) obtidos em instituição de ensino superior estrangeira que desejem, para fins profissionais ou acadêmicos, revalidação ou reconhecimento do diploma.
Fonte: Portal Carolina Bori