De uma viagem de despedida a Buenos Aires, na Argentina, até se ver presa dentro de casa, impedida de lidar com a vida como estava acostumada. A jornalista Cristiane Araújo foi acompanhar a sobrinha Flávia, de mudança para a capital portenha para fazer doutorado em psicologia. Aproveitou, e foi em companhia da mãe, Gisélia, de 94 anos, e da irmã, Valéria. Passados os dias, no retorno ao Brasil embarcaram de máscaras, já que havia registro da COVID-19 por lá: “Ficamos preocupadas porque estávamos com minha mãe, ainda que seja su- persaudável. Usamos máscaras, álcool em gel e tomamos todo o cuidado possível, já que circulamos por lugares turísticos, com presença de muitos estrangeiros. Uma volta apreensiva e sem saber se poderíamos estar assintomáticos ou não”.
Já no Brasil, diante de todas as informações disponíveis, ainda que truncadas, Cristiane conta que teve uma DR (discutir a relação) com o marido, Marco Aurélio, administrador, de 52, para decidirem como agir, antes mesmo de as autoridades no Brasil decidirem pelo isolamento social. Acertaram que os dois iriam trabalhar home office, saindo o mínimo possível. O marido tem uma empresa de gerenciamento de estacionamentos e, mesmo sem fechar, porque há clientes que precisam do serviço, ele consegue gerenciar via WhastApp, telefone, e-mail ou mesmo ir menos ao local.
Na conversa, estabeleceram regras básicas de convivência. Cada um terá de ter mais paciência com o outro para manter a harmonia, ter mais tolerância e respeitar a individualidade. Eles moram em um apartamento que não é tão grande, de três quartos, e combinaram que, quando um precisasse de descanso e da sua solidão, que fosse cada um para seu quarto. Um trabalha no escritório e o outro no quarto.
Cristiane confessa que a primeira semana foi bem confusa mentalmente para os adultos da casa. “Estávamos apreensivos e angustiados. Mas fizemos de tudo para nosso filho, o João Gabriel, de 10, não participar. Sempre longe dele, um apoiando o outro e pronto para escutar quando o outro precisa conversar. Mas não deixamos de informar o João, falamos o que está ocorrendo, porque estamos em casa e quais cuidados ele deve tomar.”
Na segunda semana, ajustes foram feitos. Cristiane diz que já no fim de semana conseguiram ter mais tranquilidade. “Dispensamos nossa secretária, então temos de arrumar a casa, cozinhar, lavar roupa, tarefas que não fazíamos. O tempo para o trabalho diminuiu, então, vimos que teríamos de estabelecer uma rotina, que seguimos desde o dia 23. O João estuda pela manhã, nós fazemos as tarefas de casa e nos intervalos atendemos aos telefones e WhastApp. À tarde, trabalhamos remotamente das 14h às 19h, 20h. E pretendemos seguir assim”, reforça.
Além disso, Cristiane conta que a família incluiu esportes nesta rotina, já que adoram. Pela manhã, uma ginástica leve, faz ioga e, no quarto de casal, improvisaram uma quadra de vôlei. A cama é a rede. “Não podemos usar a área de lazer do prédio. Assim, nos movimentamos. O João, não tem jeito, tem tempo para jogos eletrônicos, de tabuleiro e também hora para ler livros que indicamos. Vamos tentar seguir, estamos dando conta”.
A primeira semana foi difícil, segundo Cristiane, acrescentando que eles esperam manter a serenidade e harmonia porque são uma família tranquila, o que é uma vantagem. “Não tivemos problema de relacionamento. Temos conseguido manter a calma, apesar da an- gústia. Em alguns momentos há um choro aqui e ali, sempre longe do João. Sabemos a hora de ceder, nosso filho é obediente e tudo isso ajuda. Por outro lado, não sabemos o que vem por aí. Se viveremos assim por muito tempo. Temos nos esforçado para ficar saudáveis física e mentalmente.”
ASTRAL NÃO É IGUAL O empresário José Renato Lara, na companhia dos filhos Sofia, de 13, e Rafael, de 7, destaca o lado bom de tudo isso: “Ficar em casa é prazeroso, já que gosto muito do meu lar, assim como meus filhos e minha mulher. Temos mais tempo para ler, curtir um sol, assistir a séries na TV, um pouco de musculação e praticar bateria. Os filhos se divertindo: videogame, Netflix, Lego, e a mulher com a culinária e brincadeiras com eles”.
É assim, buscando serenidade, que os quatro integrantes da família Lara têm lidado com um dia de cada vez: “Estamos procurando viver este momento de quarentena da melhor forma possível, mas é difícil. O astral não é igual. A realidade do país e do mundo nos prende, a sensação de estar quase encarcerado é inédita e é impossível não respirar essa energia pesada do momento”. O “ficar em casa” mudou: agora tem as obrigações do home office, a secretária não está trabalhando e as tarefas domésticas aumentaram. Meninos em casa o dia inteiro requerendo mais atenção. “Porém, repito: em meio a tudo isso, sobrou mais tempo para fazer o que mais gostamos em nossa casa.”
"Pensando em convívio 24 horas, a medida a ser tomada é a abertura de momentos particulares para cada cônjuge. O que diminuiria emocionalmente essa jornada"
Cláudia Prates, psicóloga e psicoterapeuta familiar
Espaço para o individual e o plural
Cláudia Prates, psicóloga e psicoterapeuta familiar sistêmica, enfatiza que o relacionamento conjugal é, por si só, uma vivência que requer as habilidades de criar e manter; surpreender e assegurar. Movimentos antagônicos que possibilitam equilíbrio. Em tempos de isolamento por causa do novo coronavírus, nunca foi tão importante esta balança: “Pensando em convívio 24 horas, a medida a ser tomada é a abertura de momentos particulares para cada cônjuge. O que diminuiria emocionalmente essa jornada”.
Quanto à convivência com os filhos pequenos e adolescentes, Cláudia Prates destaca que, provavelmente, será um período de conhecimento e descobertas, já que a falta de tempo comum é uma tônica nas famílias de hoje. Pais e mães muito ocupados extrafamiliarmente, cargas descabidas de trabalho minam a capacidade de conviverem com paciência, elemento essencial para se desenvolver amor – e, vale lembrar, paciência tem limite.
Para a psicoterapeuta familiar, as regras, ou como ela prefere, os “combinados”, são instrumentos para que a paciência não se esgote e não se corrompa em tolerância altamente tóxica. Crianças menores podem ser “distraídas” com novas brincadeiras, com criação de momentos mágicos de histórias inventadas ou do passado dos pais. A transmissão de herança histórica.
Já com os adolescentes, lembra Cláudia Prates, frequentemente refugiados em um mundo particular, dos jogos de computador e nas redes sociais, é importante mobilizá-los a frequentar a rede real familiar em que conversas e jogos podem ser usados para que estabeleçam contato.
Cláudia Prates alerta que o significado de família não deve mudar – pessoas diferentes que têm em comum afeto, princípio e, às vezes, o sangue: “O que precisa acontecer é a legítima vivência deste sentido. Em suma, conviver com harmonia exige espaço para o singular (eu) e o plural (nós)”.