Abre a geladeira, esquenta a comida, confere a rede social, vê um filme, chega na janela, brinca com o cachorro e retorna ao começo. Ufa! Vida de quem está em quarentena não é fácil: os dias se emendam com as noites, sem direito ao pôr do sol, as horas não passam e há uma leve sensação de inutilidade. Será mesmo? De jeito nenhum. Nesse período, é tempo também de abrir gavetas, vasculhar quartinhos, tirar caixas do armário e fazer descobertas surpreendentes, no melhor estilo caça ao tesouro ou arqueologia doméstica. Então, mãos à obra para um mergulho afetivo e de valorização da história particular.
A contadora Neuza Conceição Amparo tem pouco tempo para mexer nos guardados, como se diz bem à mineira. Embora trabalhe diariamente no sistema home office, com o escritório de contabilidade em casa, ela dispõe de mais tempo, agora, para viajar a algum lugar do passado e voltar de "lá" com boas lembranças – algumas tão atuais que a surpreendem.
Num desses dias de quarentena, no momento de arrumação da casa, Neuza encontrou, na pilha de objetos há muito tempo esquecida no canto do quarto, um caderno datado de 2008, quando fazia um curso de gestão fiscal e tributária. “Fui puxando ele, e resolvi olhar o que estudava na época. A maior surpresa de Neuza foi encontrar um poema copiado numa página e psicografado pelo médium Chico Xavier (1910-2002), mineiro de Pedro Leopoldo, e expoente do espiritismo.
“Acho que não foi por acaso achar o caderno. O impressionante é que, neste tempo de incerteza em que vivemos, o poema está bem atual”, observa Neuza, moradora de Santa Luzia, na Grande BH. No poema, intitulado Sempre adiante, presente no livro Momentos de paz, há um verso que diz: Ninguém na terra escapa a momentos de crise/Agora é um prejuízo, depois é a queda em erro (…)
Amanhã, é a doença, logo após é outra dor/Mas, trabalha e prossegue, Deus te guarda o melhor.
SEM ABRAÇOS
A surpresa para o maquiador Wellington Almeida, morador do Bairro Jaraguá, na Região da Pampulha, veio na terça-feira, quando fez ani- versário. Ao vasculhar uma gaveta do quarto, achou lá no fundo um bilhete escrito pela sobrinha Priscilla Almeida Carneiro, advogada, quando ela era criança.
“Fiquei muito feliz, ainda mais nesse tempo complicado em que não podemos nem receber um abraço de parabéns dos familiares e amigos”, diz Wellington ao lado da sobrinha e mostrando o bilhete, que provocou uma viagem carinhosa à década de 1990.
“O isolamento não é tão fácil, mas devemos pensar que pode ser um período para as pessoas se reencontrarem, refletir sobre seus atos, enfim, pensarem na vida”, diz o maquiador.
CAIXA DE SEGREDOS
O período de quarentena se mostra fértil para o colecionador, antiquário, fotógrafo e cenógrafo Rodrigo Câmara, que divide seu tempo entre a capital e Ouro Preto, na Região Central de Minas. Nesses dias, ele termina de montar o "quebra-cabeças" iniciado há 20 anos, quando encontrou e comprou numa loja ("meio ferro-velho, meio brechó"), no Bairro Prado, em Belo Horizonte, uma caixa recheada de negativos fotográficos contendo apenas uma foto em preto e branco. Escrito a lápis, no verso, “Aristeu”, provavelmente o nome da pessoa fotografada.
Ciente de que tinha em mãos um tesouro, embora sem o tempo necessário para se dedicar a ele, Câmara guardou a caixa durante 10 anos, até que revelou os negativos. Acabou descobrindo familiares das pessoas retratadas no início do século passado, e só agora, uma década mais tarde, se volta à descoberta.
“Está sendo muito interessante, pois, ao comprar a caixa com todos os negativos e só uma foto revelada, não tinha ideia de nada. Não sabia a quem pertenceu, quem eram as pessoas, se eram daqui ou de outra cidade. Agora quase tudo clareou”, conta Rodrigo. O achado deu tão certo que o belo-horizontino de 42 anos, formado em publicidade e propaganda, está postando as fotos e a história no Instagram (@machineta). “Nesta quarentena, tenho pensado muito na finitude da vida, pois sou solteiro e não tenho filhos. Porém, as fotos sinalizam com um pouco de eternidade”, afirma.