"Algumas pessoas podem enveredar
pela via da amargura, do ressentimento, da reclamação e do medo exagerado. Esses sentimentos são grandes inimigos da vida e tudo que está em oposição à existência humana”
Maria Goretti Ferreira, psicanalista e psicóloga
O mundo enfrenta tempos extremamente incertos, indeterminados, em que não se sabe do amanhã, a não ser por conjecturas ainda nebulosas e incipientes. Este choque de realidade, com a chancela do coronavírus, trouxe às pessoas um grande sentimento de insegurança, de desamparo, apreensão, ansiedade e até mesmo pânico e desespero. Só não se sente ameaçado quem nega a pandemia, como se uma possível contaminação não lhe dissesse respeito.
“Os momentos de choque e solavancos são propícios a uma vasta gama de sentimentos. Como lidar com tudo isso vai depender do estofo de como a pessoa construiu a sua subjetividade, de que maneira foi tecendo as urdiduras, as teias da sua vida. Quais são os seus valores, como se posiciona diante de si e dos outros, de que forma participa e contribui (ou não) para a organização social e coletiva e, principalmente agora, que posturas adota frente às restrições, que impacto lhe causa o imperativo do isolamento e do vazio”, pontua a psicanalista e psicóloga Maria Goretti Ferreira.
Para ela, a pessoa que desenvolveu algum tipo de espiritualidade, seja a que for, costuma aproveitar estes momentos para um balanço geral da própria existência: “Uma reavaliação dos projetos, das relações e dos sonhos, agora confrontados com o mundo interno, com os fantasmas, potencializados pelo inimigo externo, invisível e destruidor. Depara- se com o que tem de melhor e de pior. É um frente a frente com a finitude, com a possibilidade real de morte, geralmente postergada para um futuro mais remoto”.
Segundo a psicanalista, se souber usar esta calamidade, interna e externa, que mais parece uma hecatombe das tragédias gregas, a pessoa tem a grande oportunidade de transformar a sua crise em mudança, passando por um processo aos moldes do processo de perda, luto, em que se vislumbra não em ficar no sofrimento, mas em atravessá-lo, como um caminho para um redirecionamento do seu ser e estar no mundo.
O enfrentamento das mazelas causadas pela COVID-19, na perspectiva da psicanalista, para algumas pessoas pode “passar da sensação de vacuidade para a reconstrução do mundo interno, permeado pelos laços sociais, em que se supõe demônios e fantasmas mais apaziguados, com vistas ao porvir.
É importante frisar que algumas pessoas se agarram a Deus ou a outra divindade/entidade não como busca de suporte ou de alento, mas como fuga de uma realidade incapaz de encarar, deixando de tomar os seus cuidados e precauções, como se fossem da responsabilidade do Divino, do sagrado”.
Há também, enfatiza Maria Goretti Ferreira, aquelas pessoas que dizem não acreditar em Deus, não professam nenhuma religião, o que necessariamente não as torna um ser desprotegido.
“Algumas podem enveredar pela via da amargura, do ressentimento, da reclamação e do medo exagerado. Esses sentimentos são grandes inimigos da vida e tudo que está em oposição à existência humana, sabemos da sua interferência física e emocional no sistema imunológico.”
Felizmente, destaca a psicanalista e psicóloga, há os que, mesmo sem acreditar em Deus ou praticar uma religião acreditam e apostam na vida, aqueles que vivem sob a égide da esperança.
“Como bem registrou na canção Maria Maria, de 1978, Milton Nascimento, que nos presenteou com um belo legado: (...) ‘Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre, quem traz na pele essa marca, possui a estranha mania, de ter fé na vida...'”
Ateu x agnóstico
Quem é religioso, segue uma doutrina, tem a sua fé, acredita em um deus, em uma entidade ou em uma força sagrada, divina. Mas há quem pense diferente. Há quem se diz ateu, ou seja, afirma que Deus não existe e defende que sua existência deveria ser comprovada por aqueles que nele acreditam. E os que se definem como agnósticos não negam a sua existência, mas tampouco podem confirmá-la. Estão calcados na dúvida.