Saudade é tudo que faz falta de verdade. A lembrança de que foi feliz um dia. Sentir e ser saudade são razões para cada um se ver vivo. Emoção genuína, ela traz a experiência de olhar para trás, recordar, ter memória, desejo e ao mesmo tempo em que conforta também provoca e confronta porque carrega o sentimento de privação, perda e ausência. Para muitos, a saudade é associada à melancolia, à tristeza e à nostalgia, mas para outros é sinal de existir, de aterramento. Afeto aflorado com a imposição da quarentena e do isolamento social por causa do risco de finitude representado pelo novo coronavírus, ela se tornou o substantivo abstrato com maior clamor de concretude neste momento.
No pós-pandemia, será comum as pessoas se referirem a esses meses de reclusão como “naquele tempo...” Pois bem, as recordações do hoje, um dia, podem ser rememoradas como saudade. Há prazer em meio à dor. Há alegria, conquistas e boas emoções, apesar da tragédia. A saudade, na nossa memória (não são palavras sinônimas), às vezes, é reinventada, lembrada como época de tempos melhores, de sensações mais ricas e verdadeiras, de um momento imaginado e também transformado como sempre sendo melhor (todos fantasiam). A oportunidade de conviver mais com a família, o despertar da solidariedade, a sedimentação de um amor, a reconquista da relação com o filho, o cuidar realmente dos pais idosos...
O ser humano tem a capacidade de idealizar, principalmente se deparado com perdas de sonhos, ilusões, certezas, alegrias, pessoas... Daí conviver com o sentimento de falta... Mario Quintana, no poema Presença, diz algo próximo dessas sensações: “(...) É preciso a saudade para eu sentir/como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…/Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista/que nunca te pareces com o teu retrato…/E eu tenho que fechar meus olhos para ver-te!”.
A publicitária Silvia Moreira Salles revela que a saudade é o principal sentimento que a tem acompanhado no isolamento. Cada dia mais presente. Saudade de pessoas, lugares e coisas. Ela, que já morou por um ano e meio em Buenos Aires, na Argentina, e sentiu o peso da falta, teve a sensação de ter perdido momentos importantes, como não estar presente no aniversário de 50 anos do pai. Agora, ela tem vivido a mesma a sensação: “Minha irmã, Renata, está grávida. Somos muito próximas, dizemos que somos gêmeas com três anos de diferença. Sinto não poder acompanhá-la de perto, tocar na barriga, sentir a Elisa, a primeira sobrinha menina que chegará em setembro, e vivemos a expectativa de estar todos presentes e juntos. Falta dos meus outros dois sobrinhos, Eduardo e Gustavo. Mas, apesar do aperto no coração, tento suavizar a saudade pensando que ela existe porque há muita coisa boa me esperando”.
Silvia também tem saudade dos shows de rock que curtia pela cidade: “BH tem uma cena muito boa de bandas covers. Às vezes, me pego refugiando em momentos como 1h da madrugada de sexta para sábado, cerveja gelada e ouvindo, ao vivo, meu show preferido, da Beatles Rock, no Lord Pub, que também pode ser o som do Singles, que toca Pearl Jam, ou Lurex, com Queen. Faz muita falta. A live ajuda, alegra, mas não mata a saudade. Música é muito importante, é o que me faz sentir mais conectada comigo. Meu marido, Nian, já me flagrou e até filmou eu empolgada, cantando, dançando diante de gravações de shows no YouTube. Mas a sensação de viver esses momentos, na presença de um palco e junto de uma galera, de me deixar levar, renovar a energia não tem comparação. Daí, a saudade é bem presente”. Ainda mais, revela Silvia, que foi no Lord Pub que conheceu Nian. A memória do encontro é saudade guardada de um instante inesquecível.
Pós-pandemia, com o distanciamento, Silvia acredita que outra saudade pode surgir: “Na vida, temos de lidar com o lado bom e o ruim. Óbvio, preferia não viver tudo isso. No entanto, daqui a um tempo posso sentir saudade de como é gostoso almoçar todos os dias com meu marido, de falar mais com meus amigos, de ver minha casa em todos os horários do dia, em qual canto o sol bate, fiquei mais íntima dela, conhecendo-a melhor. Tenho observado essas coisas e depois posso sentir saudade de estar em casa, da convivência por mais horas com Nian. Fazemos novas descobertas. Como atuamos em áreas diferentes, ele é projetista mecânico, em home office, percebemos o trabalho um do outro e achamos legal como atuamos, o que um e outro faz, ao presenciar conversas e reuniões. São memórias registradas que poderão ocupar o lugar da saudade futuramente”.
Já Nian, que lida muito bem com o isolamento pela facilidade em adaptar às diferentes situações, revela que procura não pensar muito sobre as coisas que me dão saudade, fica bem focado em aprender com o momento que estamos vivendo. O que, destaca Silvia, a faz aprender muito. Com sentimentos diferentes, em comum o casal se apoia e tem na companhia da yorkshire Zoe, de 7 anos, um escape para quando a barra fica um pouquinho mais pesada. Ela rouba a atenção e logo os sentimentos se rearranjam e a vida segue à espera do dia em que toda saudade será vivida com liberdade.
Assim, como Silvia e Nian, o convite do Bem Viver hoje é para que os leitores vivam e sintam a saudade. Conversamos com quem quis compartilhar suas lembranças e com especialistas da mente humana e dos pensamentos para saber como interpretam a saudade e como devemos senti-la. Com mais um poema, de Pablo Neruda, o desejo é de fazê-los despertar para tudo de bom que já viveram até aqui: “Saudade é solidão acompanhada,/é quando o amor ainda não foi embora,/mas o amado já…/Saudade é amar um passado que ainda não passou,/é recusar um presente que nos machuca,/é não ver o futuro que nos convida…/Saudade é sentir que existe o que não existe mais…/ (...)”
"Gosto de pessoas. Vivo rodeado de amigos, então, é muita saudade de sentar no bar com eles, de conversar; do almoço de família no domingo, todos juntos, fazer um churrasco, enfim, da convivência"
Edson Lima, analista de mídias sociais
Mistura de sensações
Para Clarice Lispector, “saudade é um pouco como fome/Só passa quando se come a presença/Mas, às vezes, a saudade é tão profunda que a presença é pouco/Quer-se absorver a outra pessoa toda/Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira/É um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida”. E como ela seria para um professor de literatura? Fábio Marques Pereira diz que ninguém a definiu melhor do que Guimarães Rosa: “'Saudade é um atestado de velhice'. É perceber o impacto do que vivemos e, muitas vezes, não damos tanto valor. Saudade do que vivi e experimentei e que faz parte da formação de quem sou. Ela pode ser amarga pela dúvida se poderemos voltar a sentir as sensações que nos faltam. Experienciar aquela saudade”.
Fábio conta que, na nova rotina de aula on-line, vive a saudade do envolvimento com os alunos, de estar cara a cara, de receber uma fala, de perceber o impacto do que fala, de não saber das suas histórias. “Sinto o vazio da convivência com os colegas e funcionários, de enxergar agora que poderia ter ficado mais tempo na sala dos professores no fim da manhã e não ser atropelado pela correria diária, do próprio deslocamento de carro escutando o noticiário ou uma música, tudo antes tão automatizado. A rotina que achava desgastante, agora, faz falta, pequenos detalhes ganham importância na nossa construção. Logo, é preciso reinventar.”
Por outro lado, o professor confessa viver um misto de sensações: “Meu filho, João Paulo, chegou há 20 dias. Então, estar junto dele e da minha mulher, Tatiane, neste momento é essencial. Mas também queria ter contato com os alunos, compartilhar minha alegria, ter a participação da nossa família, que só o vê em fotos via WhatsApp ou pelas mídias sociais. Tento encontrar suspiro, alento, mas há dias sufocantes. A fala, o olhar do outro, o ouvir me são caros. Estranho, mas tem fisionomias que vão se perdendo, de pessoas que não eram tão próximas assim, mas que fazem parte de quem sou”.
Mas para Fábio, um dia, será possível olhar para este período de isolamento social e quarentena com saudade: “A minha, acredito, será sobre o tempo que tive para pensar sobre mim, olhar para dentro e me confrontar. Para pensar em coisas minhas, uma reflexão que, em outra circunstância, dificilmente se daria. E que, neste momento, posso não estar valorizando porque o incômodo com a limitação imposta pela pandemia é mais forte. Assim, não valorizamos o tempo que temos hoje, seja para pensar a vida, ler, olhar a família”.
Além das pessoas, Fábio diz não ter dúvida de que a saudade de ir ao estádio ver seu Atlético jogar é cada dia mais forte: “Sei que vai demorar. Mas como sou um frequentador assíduo, então, a falta é de todo o cerimonial do futebol. O clima da torcida, o churrasquinho, a cerveja gelada, os amigos, cantar o hino...”
Então, Fábio não está ansioso ou inquieto ou mesmo angustiado para “matar” a saudade, mas como bem define, quando a liberdade de ir e vir chegar novamente, ao sair do isolamento, em vez de matar a saudade, o desejo é de criar novas lembranças para, depois, cultivar novas saudades.
ARRAIÁ DA PARAÍBA A vida pré-pandemia era agitada, muitas coisas acontecendo. O trabalho com marketing digital, às vezes, em home office funcionava bem. O investimento em uma palestra “Bate-papo sobre mídias sociais” ganhava corpo e repercussão. Edson Lima, analista de mídias sociais, estava apaixonado pelo que vinha criando quanto tudo parou: “Agora, tudo faz falta. O que girava em torno da palestra, a troca, ver gente. A ausência dos meus pais, Nelson e Primorosa, a distância do meu irmão, Marcos, logo agora que ganhei meu primeiro sobrinho há poucas semanas, o Gabriel, e sequer pude colocar no colo. Sou o caçula, ainda não sou pai e queria muito viver este momento de perto, demonstrar meu carinho, e não posso. O que me emociona”.
Edson é um ser agregador. Está sempre cercado de pessoas. Agora, ele e a mulher, Jéssica, só contam com a companhia de Filó, a shitzu: “Gosto de pessoas. Vivo rodeado de amigos, então, é muita saudade de sentar no bar com eles, de conversar; do almoço de família no domingo, todos juntos, fazer um churrasco, enfim, da convivência. Em junho, na casa do meu irmão, sempre fazemos o ‘Arraiá dos Paraíba’, não teremos este ano. O futebol, que não é nem o jogo, mas a resenha. A falta da felicidade que era esperar toda sexta-feira para, depois do trabalho, comer a dobradinha do Bar do Vicente, em Justinópolis. Tradição. Enfim, a saudade bate, o coração fica apertado. Tenho momentos de agonia porque não sabemos quando vamos estar juntos de novo, a sensação de perda é grande. Será que vamos recuperar?”, questiona.
Da poesia à autorreflexão
A saudade é uma palavra tão importante para expressar este sentimento no brasileiro, romanceada até, que a ideia de como ela seria interpretada filosoficamente, mais do que na psicanálise, é uma curiosidade. No entanto, Amauri Carlos Ferreira, professor de filosofia do Departamento de Educação da PUC Minas e do Instituto Santo Tomás de Aquino, ensina que a saudade não é um sentimento abordado no campo da história da filosofia se seguirmos a tradição do pensamento europeu e norte-americano.
“No entanto, temos uma referência filosófica a partir da tradição portuguesa e brasileira, que problematiza esse tema a partir de uma atitude filosófica fazendo a seguinte indagação: o que é a saudade?. Essa tradição se abre para uma compreensão de cunho ontológico, teológico e existencial, configurando a compreensão desse sentimento nas culturas espanhola, portuguesa e brasileira. Braz Teixeira, um estudioso, em seu livro A filosofia da saudade, procura tematizá-la dentro desse campo especulativo, trazendo a experiência desse sentimento em seu aspecto teórico e poético. O autor afirma que a saudade 'é uma forma de comportamento perante o que nem prolonga esse mesmo presente que ela vive, nem antecipa o futuro que ela deseja, pelo que a temporalidade lhe é retrotensa e não protensa'. É uma forma de reintegração do tempo.”
Amauri Carlos Ferreira revela que procura compreender a saudade na experiência de ausência do vivido, de tal maneira a entendê-la a partir de uma reflexão que esculpe no tempo um modo de viver que por não voltar mais, impulsiona a pensar o agora do corpo, o agora desse tempo. “Ao trazer de volta o vivido instaura uma melancolia que nos faz pensar. Nesse tempo de reclusão experimentado por todos nós, nesse sentimento do limite da ameaça de morte ou quase morte, conduz ao passado, atribuindo uma significação restauradora, abrindo um processo melancólico, como se o que foi vivido não tivesse o germe de sua decadência.”
Nesse processo da significação do passado, Amauri Carlos Ferreira enfatiza que a partir do presente a saudade funciona como unidade referência valorativa, já que aponta também para uma reflexão apurada sobre “a ignorância do saber científico, a imbecilidade política, a alienação religiosa, a divisão de classes sociais e os mecanismos perversos da sociedade de controle que sempre estiveram presentes no fazer da condição humana”.
Assim, segundo ele, esse sentimento de saudade tem esses dois mecanismos: considerar o passado como idílico cantado em verso e prosa pelos poetas na ausência do objeto desejado – apego ao passado; dar forma ao passado a partir do presente ao saber que ele não volta mais, abrindo possibilidade para uma reflexão sobre aquilo que nos toca e nos faz pensar – um saber autorreflexivo. A saudade teria no campo filosófico a melancolia que impulsiona a uma reflexão sobre o mundo, nós mesmos, ou o outro.
SOLIDÃO Saudade, do latim solitas, significa solidão, desamparo. Assim começa a visão de Lucas Soares Rodrigues, supervisor de ética e filosofia do Coleguium Rede de Ensino, sobre esse sentimento tão presente na vida de todos nos últimos meses. Ainda que possa sugerir um caminho pessimista, ele tem interpreta- ções positivas sobre o que nos aguarda logo ali: “Vivemos um momento que pode significar uma mudança nas relações pessoais, principalmente na cidade grande. O capitalismo e a divisão do trabalho, proposto por Adam Smith, criaram o que Émile Durkheim chamou de solidariedade orgânica, isto é, uma sociedade com relações mais impessoais”.
Ele lembra que, em centro urbanos, como BH, é comum uma família não saber nem mesmo os nomes de quem mora no mesmo andar do prédio. Em cidades pequenas, havia o famoso todo mundo conhece todo mundo e qualquer mínimo contato já levava a um cafezinho na casa de um dos interlocutores. No mundo contemporâneo, não há mais tempo para as pessoas, apenas no ambiente virtual (WhatsApp ou Instagram), ou seja, por meio de relações distantes e, muitas vezes, vazias e até falsas. “Agora, com essa obrigatoriedade de não poder encontrar, a saudade do pai, da mãe, do irmão, do amigo, do professor, do colega faz-se presente. O ser humano, muitas vezes, necessita presenciar uma ausência para dar valor.”
Em contrapartida, destaca Lucas Rodrigues, pode haver a análise da grande limitação das relações pelo meio virtual. “Nota-se que aulas remotas não são tão legais quanto presenciais; que conversar com um amigo ou familiar por meio de live não é tão prazeroso como na mesa de um bar ou na casa de alguém; assim como assistir a um show no YouTube não se compara a estar presente numa casa de espetáculo, diante do palco. Enfim, a saudade, tão pouco valorizada nos últimos tempos, bate mais forte no peito de cada um neste período de pandemia. Espero que saibamos modificar para melhor nossas relações.” (LM)
Playlist
Canções para curtir a saudade
Saudade é uma das palavras mais lindas e especiais da língua portuguesa. Ela pode se manifestar em inúmeras maneiras, mas na música ela se apresenta de forma arrebatadora, autêntica, verdadeira. Aqui, algumas sugestões de canções que exprimem a saudade, a maioria de um amor, mas que se encaixa em todas as lembranças. “Ainda tem o seu perfume pela casa, ainda tem você na sala, porque meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro” – Vambora, de Adriana Calcanhoto. E a sua, qual é?
- Gostava tanto de você – Tim Maia
- A sua – Marisa Monte
- Chega de saudade – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
- Dor de verdade – Marcelo D2
- Vento no litoral – Legião Urbana
- Saudade – Marcelo Camelo
- Dar-te-ei – Marcelo Jeneci
- Palpite – Vanessa Rangel
- Tanta saudade – Djavan e Chico Buarque
- Mesmo que mude – Bidê ou Balde
- Wish you were here – Pink Floyd
- Miss you – Rolling Stones
- I miss yoy – Beyoncé
Os dois horizontes
A pandemia do novo coronavírus colocou diante de todos muitos desafios pessoais. Entre eles, o isolamento social, que acarreta, querendo ou não, uma série de revisões. Diante de uma avalanche de sentimentos, a saudade é um afeto que se faz presente, seja de pessoas que se foram, daquelas que estão longe e não podem ficar próximas agora, de um hobby, de encontros, de um sabor, de ações, de um toque. A fase é também de descobertas, para uns mais dolorosa do que para outros.
Ricardo Dias de Castro, psicólogo social e professor do curso de serviço social da Estácio, lembra que a saudade é uma condição que acompanha todos ao longo da vida. Neste momento, privados de viver o cotidiano com pessoas, instituições e lugares que dão significado a esta experiência, a saudade vai ganhar uma gama a mais diante da restrição e do impedimento impostos pela pandemia para a saúde mental por causa de sentimentos saudosos, escapistas, negacionistas e a ideia de estar faltando algo. “Ela, assim, toma conta de sonhos e reflexões. Por isso, os fenômenos sociais da saudade e memória se tornam mais próximos pela restrição de ordem estrutural.”
"O mais importante é que a saudade não precisa beirar a melancolia ou processo depressivo. Por isso, não é saudável lidar com o escapismo da realidade ou com a culpa por aquilo que não foi feito, vivido ou deixou de acontecer"
Ricardo Dias de Castro, psicólogo social
Para Ricardo Dias de Castro, a pandemia nos faz subjetivar o mundo a partir da materialidade e condição histórica que cada um vive agora pelo impedimento obrigatório: “Isso faz com que as pessoas se voltem para si, um movimento que potencializa sensações, sentimentos e afetos saudosos para o momento presente, mas também as convoca a pensar sobre si e suas histórias. A saudade também amarra aquilo que não viveu. O mais importante é que a saudade não precisa beirar a melancolia ou processo depressivo. Por isso, não é saudável lidar com o escapismo da realidade ou com a culpa por aquilo que não foi feito, vivido ou deixou de acontecer”.
Segundo ele, as novas tecnologias da comunicação e os meios digitais permitem endereçar a saudade, às vezes transformada em angústia, medo e ansiedade, como resposta social, que é coletiva, portanto, criativa, propositiva, inventiva e não só negacionista ou conformista.
Ricardo Dias lembra que é possível construir saídas singulares: “Resistir à saudade melancólica e tentar construir uma saudade que te faça encontrar na sua própria história e memória. Como disse Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, “toda dor pode ser suportada, se sobre ela puder ser contada uma história”. Assim, que a saudade seja producente e não o paralise, que não seja um sentimento de congelamento no espaço tempo de ser negado porque ele passa. Nada de ficar na busca de um mundo passado que não existe mais ou de um futuro incerto, a saudade pode ser propositiva e construtiva, é a possibilidade de a história individual ser conjunta com a coletiva e social compartilhadas. É construir condições de resistir e re-existir sendo sujeito. A saudade não é só para apassivar, mas ela pode direcionar a um novo projeto de si mesmo e de mundo, sendo operada a partir de perspectivas de transformação”.
RECOMEÇO Já Olinta Fraga, psicóloga clínica de orientação junguiana e mestre em ciências da religião, ao pensar no distancionamento social e suas consequências destaca que, de um lado, constatamos que não sabíamos conviver intimamente, e de outro, o quanto a vida social preenche o nosso tempo e favorece a permanência na ilusão sobre de fato quem somos. O viver contemporâneo estimula a vida fora do lar, ao ponto de aquele que não vive dessa forma ser visto como depressivo.
“Isso até pode ser fato, porém, nem tanto lá, nem tanto cá, o que constatamos? Não aprendemos a conviver intimamente. Ninguém conhece ninguém e muito menos a si mesmo. A convivência forçada nos fez topar com este estranhamento. Ótima oportunidade para rever modos de vida e tentar oferecer a esta geração uma chance de recomeço em novos termos.”
A psicóloga destaca o distanciamento de pessoas queridas, familiares e grandes amigos. “Experimentamos a ausência em forma de saudades, uma mistura de boas lembranças e um afeto contido que até então não sabíamos suas dimensões. A rotina tende a nos distrair de nossos sentimentos e somente a falta os resgata. A reclusão também traz a marca da saudade de lugares junto à natureza que nos ensejaram experiências significativas nos cinco sentidos. Espaços geográficos que um certo dia nos proporcionaram ocasião de estar naturalmente conectados, como se uma extensão de nós mesmos.”
No turbilhão da saudade, da falta, Olinta Fraga cita a importância da religiosidade, que exerce um movimento importante em nossa vida, porque nos ensina a interiorização e nos tira do centro do mundo, do narcisismo. Jung (Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço) nos diz que o homem necessita de “um mito operante” que dê sentido à sua vida, ou seja, algo que o transcenda, que não se explica, que seja reconhecido como sendo ser maior que nosso pequeno ‘eu’”. Para ela, o momento atual e tudo que tem acarretado, externa e internamente, “são oportunidades únicas para retomarmos ao convívio social mais amorosos, mais sensíveis”.
Como escreveu o mestre Fernando Pessoa, no poema intitulado Saudade: “Eu amo tudo o que foi/Tudo o que já não é/A dor que já não me dói/A antiga e errônea fé/O ontem que a dor deixou/O que deixou alegria/Só porque foi e voou/E hoje é já outro dia”.