Em tempos de pandemia, este é um trabalho que ganha um significado ainda mais especial. Auxiliados pelas equipes de saúde, os médicos enfrentam um vírus fatal e se desdobram para acolher e tratar o paciente. Não há horários, não há fronteiras para quem escolheu a difícil missão de salvar vidas, tornando-se exemplo e referência para jovens que seguem os rumos de pais e demais familiares. Neste domingo, o Dia do Médico tem um sentido importante. A dedicação desses profissionais enaltece o esforço de quem, ao final de cada jornada, honra o fazer que se reinventa a todo instante, mas não perde a essência.
O exemplo dessa dedicação e entrega é acompanhado em casa. A medicina, muitas vezes, é um saber transmitido entre gerações. "É preciso roubar uma parte da vida para dedicar aos sonhos, ideais e realizações que não queremos que morram conosco." A frase inspiradora de José Salvador da Silva, fundador da Rede Mater Dei de Saúde, em Belo Horizonte, mostra que seu grande sonho é também o sonho de seus descendentes. "Sempre fui um sonhador. Menino, sonhei em ser médico. Quando jovem, depois de me formar, tive o sonho de construir um hospital", diz o ginecologista e obstetra que, aos 90 anos, passou para a família a maravilha sobre a profissão.
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Hoje, as filhas Maria Norma e Márcia, são diretoras da Rede Mater Dei de Saúde, e o primogênito, Henrique, é o presidente do grupo hospitalar. Renato, o outro filho, é o único que não seguiu caminho na medicina. Engenheiro, coordena uma construtora. Entre 10 netos, na terceira geração Felipe, Anna, Lara e Livia são médicos e integram a equipe na rede.
Henrique Moraes Salvador Silva, de 62, é mastologista. Teve formação na Inglaterra, Itália, Canadá e Estados Unidos, e está no Mater Dei desde 1985. Lidar diretamente com o ser humano e fazer o bem é algo que lhe dá prazer. Sobre a medicina, gosta do fato de poder exercê-la de várias maneiras. Primeiro, o atendimento ao paciente, depois a medicina acadêmica (é professor livre docente), a medicina de gestão, com o dia a dia no hospital, e a medicina de representação de classe - Henrique já presidiu a Sociedade Brasileira de Mastologia e a Associação Nacional de Hospitais Privados. "Dos meus pais, aprendi sobre o respeito ao paciente, o amor pela profissão e o compromisso em estar sempre atualizado", conta.
"Através da prática, da observação, do dia a dia, meus pais desde cedo me mostraram o quão gratificante é ser médico", diz Maria Norma Salvador Ligório, de 60, ginecologista e obstetra. A médica trabalha no Mater Dei desde a inauguração, em 1980. É vice-presidente administrativa e financeira. José Salvador e Norma são para ela referência de luta e trabalho duro.
"Desde a infância convivo com a medicina por causa de meus pais, e me encantei. Precisamos ter inspiração, mas é através da transpiração que chegamos aonde queremos." No âmbito de sua especialidade, conta que o que mais lhe fascina é ajudar a trazer ao mundo um novo ser. "É indescritível a sensação de entregar aos pais o filho que acaba de nascer", acrescenta. Para o filho, Felipe, Maria Norma ensina a importância de fazer o que lhe agrada, e fazer com amor.
Já Márcia Salvador Géo, de 57, é ginecologista, obstetra e uroginecologista. Atua no Mater Dei desde os 17, onde hoje é vice-presidente assistencial e operacional. Dos pais, apreendeu a missão de servir ao próximo, de ser desafiada a dar o melhor para os pacientes, a importância do conhecimento, para oferecer o que há de mais moderno na área, perseguindo preceitos éticos e filosóficos. "São exemplo de luta e perseverança. Profissionais que foram além, se destacaram e fizeram a diferença, seja na família, na vida dos pacientes, e na sociedade em geral. Ensinaram-me a nunca desistir dos sonhos. Que a vida é bem melhor se tiver um propósito, que a família e os amigos são essenciais para sermos felizes", pontua.
Para Márcia, a lição que fica é a da humildade, a crença na vida como bem maior, respeitar o tempo das coisas e saber que o tempo é finito, perceber que pequenos atos fazem a diferença. "Cada paciente te ensina muito e te faz um ser humano melhor. É um privilégio trabalhar com pessoas, ter um desafio novo a cada dia. Uma troca de energia que nos faz lidar melhor com os obstáculos. Achamos que estamos ajudando o paciente, mas quem sai melhor desta troca somos nós, os médicos." Para as filhas, Lara e Lívia, Márcia procura lembrar de ter um objetivo, e disciplina e foco para atingi-lo. "Que sonhem sempre, que tudo nesta caminhada vale a pena, principalmente quando a alma não é pequena."
Felipe Salvador Ligório, de 32, ingressou na Rede Mater Dei de Saúde em 2009, primeiro como estagiário de medicina. Atualmente, é diretor médico e atua na gestão e administração do grupo, auxiliando pacientes e médicos de todas as especialidades. Dos avós, da mãe, Maria Norma, e dos tios, teve referências profissionais e pessoais. "Me ensinaram a agir diante de situações difíceis e delicadas, sem esquecer o lado humano. A medicina exige dedicação e entrega. Sem esforço nada é possível.”
Felipe diz que admira a profissão desde cedo, pela influência mesmo da família. A escolha na hora do vestibular foi natural. "A vontade de servir ao próximo sempre existiu e percebi que a medicina me proporcionaria isso. Me sinto grato e honrado em poder ajudar as pessoas em momentos delicados. É um desafio e uma missão de vida."
MEDICINA COMO ARTE
Anna Salvador, de 29, é filha de Henrique. Ela entrou no hospital como estagiária em 2011. Como os familiares, também atua com ginecologia, mastologia e obstetrícia. O pai e os avós lhe apresentaram a medicina como uma arte. A arte em contribuir com o outro, e uma maneira sem igual de realização profissional. "Saber o que meus avós construíram e como influenciaram na vida dos pacientes para melhor é, para mim, o estímulo para crescer enquanto pessoa e ser uma profissional completa. A medicina me mostra como não temos o controle em muitas situações, mas um simples detalhe importa. E me pede a cada dia para me aprimorar."
Sobre o fazer da profissão, o encantamento são os laços edificados. Para Anna, nada mais importante que um abraço carinhoso de gratidão - faz valer todo sacrifício. "Optei pela medicina justamente por admirar tanto meus avós, meu pai e minhas tias. Desde a adolescência, tive a oportunidade de acompanhar meu pai nos partos que fazia. Me sinto privilegiada. Poder contribuir para a saúde das pessoas e presenciar uma vida nova é emocionante."
Lara Salvador Géo, de 27, é uma das filhas de Márcia. Depois de passar pelo Mater Dei, agora trabalha em outro hospital. É gestora. Não pratica a medicina assistencial. "Minha mãe e meus avós me apresentaram a medicina como uma profissão apaixonante, de doação, de troca, de respeito. Tenho orgulho em fazer parte dessa família. Eles são para mim a maior inspiração, um exemplo diário, não apenas profissional."
Lara diz que a medicina lhe faz ser uma pessoa melhor, perceber cada indivíduo como único, com sua beleza e singularidades. "Trata-se de enxergar o outro em todas as suas dimensões. É uma troca gratificante. Me sinto realizada e feliz em ver que, de alguma forma, estou impactando positivamente na vida do paciente."
Para Lívia Salvador Géo, de 26, outra filha de Márcia, a medicina pede para aprimorar o ouvir, em uma época em que muito se fala e pouco se escuta. "Nunca devemos desvalorizar a queixa de uma pessoa. É preciso ter um olhar holístico para realizar um cuidado amplo e adequado", diz Lívia, que ingressou no Mater Dei em 2016 e, para a residência médica que começa em 2021, escolheu também a ginecologia e obstetrícia. Lembra da forma amorosa com que os familiares sempre se referiram à medicina. “Não só minha mãe e avós. Meus tios e primos também me inspiram na carreira que quero construir. Estou começando e tenho muito a aprender, com a certeza que estou cercada por grandes médicos. A medicina é uma área cheia de possibilidades", afirma.
Caminho natural
Médicos que seguem os passos dos pais, tios ou avós compartilham experiências no trabalho. Muito mais do que aprendizado e interação, exemplo e dedicação são levados para todas as áreas da vida
Cirurgiões plásticos, Marzo e Pedro Bersan são pai e filho. Aos 60 anos, Marzo trabalha no hospital Madre Teresa, em Belo Horizonte, desde 1986, e já fez parte da equipe médica do centro de queimados da Fhemig. Há mais de 30 anos, também mantém consultório próprio, e conta com o filho na equipe há cinco anos, tempo em que Pedro também se tornou companhia no hospital. Os dois atuam juntos nas intervenções cirúrgicas, discutem casos médicos e as melhores formas de conduzir os tratamentos em cada situação.
Pedro conta que aprende muito com o pai, para ele um verdadeiro professor. Ser médico foi um caminho natural. Marzo nunca o pressionou para que seguisse a carreira. "A informação está acessível a todos, mas a experiência vem com o tempo, não está nos livros. A medicina me ensina sobre empatia. Aprendi com meu pai sobre a importância de se colocar no lugar do outro, ter atenção com o paciente, o rigor para garantir a segurança nos procedimentos. Podem dizer que a cirurgia plástica é uma futilidade. Mas interfere diretamente na autoestima, na melhor percepção sobre si mesmo e nas relações interpessoais", ressalta.
A endocrinologista Patrícia Fulgêncio, de 48, é de uma família de médicos. Cresceu no hospital mantido pelos pais em Mantena, no interior de Minas Gerais. É diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia - Regional Minas Gerais (SBEM-MG), presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes - Regional Minas Gerais (SBD-MG), professora da Faculdade de Ciências Médicas e tem consultório particular.
Roger tem 73 anos. Na época de criança, lembra-se de que as maiores aspirações nas famílias é que se formassem médicos. Algo que foi intencionado pelos seus pais. Conta que sempre gostou da medicina, e logo seguiu o rumo. Hoje, o filho dá continuidade a essa história, e faz mais. "Há quase 50 anos, a medicina era muito artesanal. Hoje, meu filho está muito mais bem preparado", compara.
A esposa de Christiano, Pierina Formentini, de 34, também é ortopedista e traumatologista, especializada em ortopedia pediátrica. Conta que a interação com o marido é algo a acrescentar. "Discutimos as situações, falamos sobre as melhores condutas, orientamos um ao outro. Tranquilizar as famílias, transmitir a confiança de que tudo vai melhorar, acompanhar a evolução do paciente, é uma satisfação", conta a médica, que trabalha na Santa Casa de Belo Horizonte e no hospital São Lucas, no Santa Efigênia.
Acompanhar o trabalho de pais nas consultas ou atendimentos domiciliares desde cedo despertou vocação de médicos que decidiram seguir os mesmos passos na carreira. Aprendizado é diário
Com a pandemia, Agnaldo observa mudanças na sua forma de atuação. Costumava viajar para outras cidades, estados e até países diferentes para participar de congressos, concursos, conferências, bancas de pós-graduação, muito por causa de seu cargo de professor titular da cadeira de ginecologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nesse período de quarentena, as atividades passaram a ser pelas plataformas digitais. Na universidade, inclusive, as aulas presenciais acabam de ser retomadas.
"Lucas é cinco anos mais velho. Fui acompanhando seus passos, as histórias que contava sobre o curso, a faculdade de medicina. Foi um empurrão para eu não desistir”, lembra Tauana. Quando ingressou na escola de medicina, os incentivos recebidos do primo eram ainda maiores. "Muitas vezes, sofria com a rotina pesada de estudo e dedicação que o curso exige. Mas, como o Lucas tinha passado pelo mesmo caminho, me ajudava muito repassando materiais, me estimulando."
Além do alto índice de confiabilidade, estudo aponta que 95% dos entrevistados acreditam que estes profissionais carecem de valorização, como maior remuneração e plano de carreira
Jéssica Mayara*
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelo Instituto Datafolha no segundo semestre deste ano, os médicos são os profissionais em quem as pessoas mais confiam. Os dados, recolhidos em entrevistas estruturadas via telefone em todas as regiões do país, apontam que 33% - nove percentuais a mais do que os índices apresentados em 2018 - das 1.511 pessoas que responderam o questionário têm na figura do médico, a profissão em quem mais depositam confiança.
O alto nível de credibilidade depositado nos médicos se deve, especialmente, no que tange à percepção das mulheres (42%), da população com ensino fundamental completo (42%) e com idade superior a 45 anos (37%). O olhar positivo para a categoria também é maior entre os que ganham até dois salários mínimos (41%) ou mais de dez salários mínimos (33%). Do ponto de vista da distribuição geográfica, os percentuais são muito próximos, com destaque para os estados do Nordeste (37%) e Sul (38%).
"A vocação por promover saúde, prevenir doenças e cuidar de pessoas consiste no cerne do exercício profissional do médico. Diante da pandemia instalada em todo mundo e que afetou pesadamente o Brasil, a luta de todos os profissionais, e em especial dos médicos, tornou-se ainda mais intensificada e percebida. Inclusive, por estarem na linha de frente nos serviços de saúde, muitos profissionais adoeceram e faleceram", avalia Camila Souza, coordenadora adjunta do curso de medicina do UniBH, ao comentar os índices e enaltecer a profissão. "São anos investidos para entrar, permanecer e conquistar o diploma em medicina, e intensos anos de residência médica e obrigação em manter-se sempre atualizado. Isso tudo faz da medicina uma profissão de altíssima responsabilidade social e de alto investimento, foco e abdicação pessoal e familiar", completa.
Justamente neste contexto de responsabilidade social é que a pesquisa trabalhou, também, no quesito de avaliação e confiança no trabalho médico durante a pandemia, haja vista ser esse o momento mais difícil da atualidade. "Acredito que, especialmente com a pandemia, as pessoas têm tido mais empatia com a profissão. Não é fácil estar na linha de frente e abdicar do contato com a família, mas a missão de estar a serviço da população sempre fala mais alto. Acredito que essa pesquisa só reforça o que nós temos visto neste momento de pandemia: o reconhecimento da população pelo trabalho dos médicos em um esforço contínuo para salvar vidas", comenta Rennan Tavares, professor do curso de medicina do UniBH.
Em relação a atuação dos médicos brasileiros no enfrentamento da pandemia de COVID-19, o levantamento apresenta os seguintes resultados: na opinião de 77% dos entrevistados, o trabalho desses profissionais é considerado como ótimo ou bom, os outros 17% consideram essa performance como regular e apenas 6% como ruim ou péssimo. Para Rennan, esses dados são de extrema importância para restaurar a imagem do médico, que se desgasta em razão da luta para salvar mais e mais vidas.
"A carga de adoecimento mental e físico, de sobrecarga dos sistemas e de subversão de todo o modus operandis da sociedade é cada vez maior neste momento. E, apesar disso, o médico precisa manter-se lúcido, atualizado, equilibrado e preparado para manter seu juramento de cuidar da saúde das pessoas, dos familiares e das comunidades. O médico não pode se eximir desse juramento profissional. Embora esses profissionais sejam humanos, sem o seu trabalho, toda a sociedade pode solapar nesse período de pandemia", opina Camila.
A pesquisa mostra, ainda, que para 99% dos entrevistados, esses profissionais carecem de condições adequadas para o pleno exercício de suas atividades. Enquanto isso, na percepção de 95%, os médicos merecem ser alvos de medidas de valorização, como maior remuneração e plano de carreira.
*Estagiária sob supervisão da editora Teresa Caram
O olhar do médico é o equilíbrio entre a ciência e o humanismo, a razão e o sentimento, a observação e a interpretação, a eterna busca pela paz mesmo na guerra contra os males que põem em risco o corpo e a mente
Cardiologista, PhD pela USP, pós-doutor pela Harvard Medical School, professor da Faculdade Ciências Médicas de MG,