No momento em que o mundo inteiro se volta para os problemas com o coronavírus, uma situação ainda mais grave é a epidemia da obesidade e diabetes, questão muitas vezes negligenciada, mas que perdura há anos, e em âmbito global. Nesta terça-feira, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) divulgou balanço sobre esses procedimentos no país.
No ano passado, foram 68.530 cirurgias, 7% a mais que em 2018, período quando foram contabilizadas 63.969 intervenções. O total de cirurgias registrado em 2019 representa 0,5% da população com quadro de obesidade grave, distúrbio que atinge cerca de 13,6 milhões de indivíduos com indicação de tratamento cirúrgico.
Na entrevista coletiva, a entidade sublinhou a necessidade de melhorar o acesso à cirurgia bariátrica pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e a cirurgia metabólica pelos planos de saúde. Quanto a essa última modalidade, um tratamento regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), está aberta consulta pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para obtenção da cobertura pelos planos de saúde.
Participaram da coletiva, transmitida pela internet, Marcos Leão Vilas Bôas, presidente da SBCBM, Gilberto Soares Casanova, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), Galzuinda Maria Figueiredo Reis, diretora de relações governamentais da SBCBM, Ricardo Cohen, coordenador do departamento de cirurgia metabólica da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), Leonardo Emílio da Silva, coordenador da câmara técnica de cirurgia bariátrica e metabólica do Conselho Federal de Medicina (CFM), e Vanessa Pirolo, coordenadora da ADJ - Diabetes Brasil.
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"Percebemos duas realidades distintas no Brasil. A população que pode arcar com a assistência médica, e a maioria das pessoas que têm apenas o SUS como alternativa, que são 75% dos brasileiros. Quanto à cirurgia bariátrica por videolaparoscopia, por exemplo, um tratamento menos invasivo e mais eficiente, o acesso pelo SUS é ínfimo", diz Marcos Leão. "O único tratamento comprovadamente eficaz a longo prazo para a obesidade e doenças associadas a ela, como o diabetes e a hipertensão, é praticamente inacessível para pessoas que dependem do sistema público e dos planos de saúde", continua.
A intenção da SBCBM é a que a cirurgia metabólica, indicada para diabetes, seja incorporada ao roll da ANS, visando os pacientes que não conseguem controlar a doença, que estejam na eminência de complicações mais sérias, e quando o tratamento clínico com remédios não é mais suficiente. De acordo com o presidente da SBCBM, mesmo com diversos estudos apresentados, a proposta recebeu parecer negativo da câmara técnica da ANS que analisou o processo. Agora, a entidade abriu uma consulta pública para ouvir a sociedade civil sobre o tema e decidir se incorpora ou não o procedimento aos tratamentos oferecidos.
Segundo o representante da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e coordenador do Centro de Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Ricardo Cohen, cerca de 72% dos pacientes portadores de diabetes não conseguem controlar a doença mesmo com o tratamento clínico medicamentoso.
"A obesidade e o diabetes são doenças crônicas e progressivas que evoluem como um câncer, em que se atinge um limite de eficácia dos remédios. Quando bem indicada, a cirurgia metabólica é capaz de controlar o açúcar no sangue e 90% dos pacientes deixam de utilizar insulina, 80% deixam de utilizar remédios e mais de 30% tem a pressão arterial controlada”, explica Ricardo Cohen.
Para Marcos Leão, é uma situação que extrapola a força de vontade e a disciplina para adesão ao tratamento. "São questões inerentes a doença, em si extremamente complicada. Para cada 13 pessoas submetidas a cirurgia metabólica, salvamos uma vida", acrescenta o presidente da SBCBM.
"É fundamental sensibilizar as autoridades, mobilizar as pessoas. Não negar a esperança para quem tem diabetes. Muitas vezes o poderio econômico das grandes corporações e o aparato político se opõem ao melhor interesse da população", critica Marcos Leão, lembrando que a cirurgia para o diabetes é plenamente regulamentada por uma série de resoluções, mas não está ao alcance pelo SUS e aos usuários dos planos de saúde.
"A cirurgia demonstra, tanto no Brasil quanto fora, que é extremamente eficaz também em relação a custos. O impacto orçamentário é adequado e capaz de ser absorvido pelo sistema de saúde. O setor seria impactado por apenas dez centavos por mês e por usuário", comenta Marcos Leão.
Segundo levantamento da SBCBM, no que concerne às informações de 2020, até agora os dados foram divulgados apenas no âmbito da saúde pública. Entre janeiro e junho deste ano, foram realizadas 2.859 cirurgias bariátricas pelo SUS. Em 2019, no intervalo correspondente, foram 5.382. A queda de 60% aconteceu devido à suspensão das cirurgias eletivas com o início da pandemia do coronavírus. As cirurgias vêm sendo retomadas após recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM), mas ainda em ritmo lento.
Na opinião de Ricardo Cohen, obesidade e diabetes são a grande pandemia. "São doenças ainda estigmatizadas. Muita gente acha que é culpa do paciente, mas a carga da herança genética é grande. A cirurgia aumenta a sobrevida, e com qualidade."
Para Vanessa Pirolo, o diabetes tem um impacto importante quanto a questões psicológicas. "Muitas pessoas não aceitam a condição e não aderem ao tratamento. É preciso criar a educação para o diabetes", diz. Galzuinda Reis pontua que o coronavírus refletiu no panorama da obesidade no Brasil. "A cada 10 pessoas no país, quatro ganharam peso durante a pandemia, quase três quilos em média, mas em outros casos até 12 quilos. São dados até junho de 2020", informa. A especialista atribui o aumento, além de outros fatores, até mesmo aos transtornos mentais e emocionais que se agravaram com a COVID-19.
Um problema negligenciado por anos, declara Leonardo Emílio. "Só em 2015 a Organização Mundial da Saúde reconheceu a obesidade como doença. É uma realidade cruel e não dá mais para tapar os olhos. Não fornecer os tratamentos mais eficientes pelo SUS é ferir o princípio da equidade, de que todos os cidadãos devem ter direito livre à saúde de qualidade."