Em meio às enormes dificuldades enfrentadas pelas crianças na quarentena — desde o isolamento até a interrupção nas aulas presenciais —, ao menos a maioria das famílias teve um alívio: doenças infecciosas infantis simples, como resfriados, ou graves, como bronquiolite, que lotam hospitais pediátricos, deram uma trégua em 2020.
É o que mostram estudos científicos e relatos de hospitais e pediatras — que apontam como esse benefício indireto dentro de um período extremamente difícil pode trazer lições para redes, escolas, gestores e cidadãos comuns de olho no calendário escolar de 2021, em um momento de novos picos de contágio pela COVID-19.
Na França, o médico especialista em emergências pediátricas François Angoulvant e 12 colegas começaram a coletar informações sobre visitas a seis pronto-socorros infantis de Paris e arredores a partir de março, quando o governo francês determinou um lockdown parcial e o fechamento das escolas por conta da chegada do novo coronavírus à Europa.
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A partir dos dados hospitalares de mais de 871,5 mil pacientes entre 2017 e 2020, Angoulvant e seus colegas observaram que as visitas e internações em pronto-socorros pediátricos caíram, respectivamente, 68% e 45% durante os meses de lockdown na França.
Os resultados foram publicados em junho no periódico Clinical Infectious Diseases.
Infecções do trato urinário, que não são transmitidas pelo contato com crianças, foram usadas como grupo de controle — e não tiveram variação substancial durante a pandemia. Por conta disso, os pesquisadores acham improvável que a redução nos casos das demais doenças se deva a restrições nos transportes ou ao medo de levar as crianças aos hospitais.
Mais especificamente, notou-se uma queda substancial (de mais de 70%) nos casos de doenças virais e bacterianas altamente contagiosas entre crianças, como gastroenterite aguda, resfriado comum, otite aguda e bronquiolite, em comparação com o que seria esperado para aqueles meses do ano caso não tivesse havido a quarentena e o isolamento social.
Algumas dessas doenças não são apenas incômodas, como causam um grande número de internações em UTIs pediátricas.
"Em geral, hospitais ficam cheios de pacientes de bronquiolite, mas não vimos isso neste ano", diz Angoulvant à BBC News Brasil.
"É interessante porque não sei como vamos traduzir isso para depois (da pandemia de COVID-19), mas sabemos que temos como reduzir essa doença anualmente. Não é que eu ache que a sociedade deva viver em lockdown para sempre, mas isso levanta boas questões. As crianças estão menos doentes do que antes."
Os dados da França são consistentes com o que Angoulvant diz ter ouvido de seus colegas pediatras em outros países da Europa.
E parecem ter se repetido também no Brasil. Casos de bronquiolite e de outras doenças respiratórias e de contato caíram em índices semelhantes (em torno de 80%) neste ano em um dos principais hospitais infantis de São Paulo, o Sabará, informa à BBC News Brasil o infectologista Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, coordenador do serviço de infectologia pediátrica do hospital.
Em setembro, reportagem do jornal Agora São Paulo apontou reduções em internações infantis também em unidades de referência do SUS na capital, como o Hospital Municipal Menino Jesus e o Hospital do Servidor Público Estadual.
As lições: da higiene ao papel dos adultos na transmissão
E quais as lições disso para quando houver a retomada das aulas presenciais em larga escala?
Segundo os médicos consultados pela reportagem, o primeiro aprendizado diz respeito a tornar permanentes as medidas de higiene adotadas durante a pandemia, de forma a proteger não só as crianças, mas educadores e demais adultos em contato com elas no dia a dia.
"As medidas de higiene e distanciamento vieram para ficar e podem ser benéficas" mesmo depois que o novo coronavírus for superado, afirma Sáfadi.
"Isso inclui aprendermos a usar máscaras sempre que tivermos sintomas gripais, assim como já costumavam fazer os asiáticos, e manter as mãos longe do rosto quando elas não estão limpas."
Por sinal, lavar muito mais as mãos (preferencialmente com água e sabão em vez de apenas passar álcool) do que fazíamos antes também é um dos maiores ensinamentos da pandemia.
"Estudos mostram que, se atendentes de creches e berçários lavassem mais as mãos, reduziriam muito os casos de bronquiolite e gastroenterite nas crianças, porque (ao encostar em uma e depois em outra) passam o vírus entre elas", afirma o pediatra Daniel Becker, do Instituto de Pediatria da UFRJ.
"A COVID-19 traz agora para nossa consciência os conhecimentos sobre essas medidas de prevenção que podemos incorporar."
A dinâmica de transmissão da COVID-19 — com risco maior em lugares fechados e com aglomerações, e por meio não apenas de gotículas de saliva, mas também pelas partículas de aerossóis que ficam suspensas no ar — evidencia, ainda, o valor dos espaços abertos na prevenção.
"O aerossol é uma fumacinha da nossa respiração que pode flutuar durante horas no ar. Precisamos lembrar disso quando pensamos em atividades escolares: o melhor é que sejam ao ar livre, porque ali o aerossol é dispersado com o vento", afirma Becker.
"Se a atividade não puder ser ao ar livre, que seja em salas bem ventiladas, (simultaneamente a) medidas de higiene respiratória e distanciamento social."
De volta ao estudo realizado na França, a lição mais importante destacada pelo médico François Angoulvant diz respeito ao papel dos adultos nessa cadeia de transmissão.
A continuação de sua pesquisa, ainda não publicada, aponta que, no fim do lockdown francês, entre junho e julho, infecções virais voltaram a subir em hospitais pediátricos, à medida que as pessoas relaxaram no distanciamento social e as aulas foram retomadas.
O mais importante, porém, é que as infecções voltaram a cair em outubro, quando a França voltou a adotar medidas de quarentena — mas manteve suas escolas abertas.
Para Angoulvant, o motivo disso é que, mesmo frequentando as escolas, as crianças estão interagindo com menos adultos por causa das medidas de isolamento social, impedindo que diversos vírus consigam circular em grande escala.
"Claro que depende do vírus. Para o Sars-CoV-2 (vírus que causa a COVID-19), vimos que as crianças são menos afetadas e menos contagiosas do que os adultos. Em outros vírus, é o oposto: elas são mais contagiosas e espalham mais. Mas mesmo assim acho que (a escola) não causaria uma grande epidemia, porque não se trata apenas de crianças infectando crianças, é o adulto ajudando nessa cadeia."
Isso, porém, desde que sejam mantidas as demais medidas de higiene e distanciamento, inclusive entre adultos no dia a dia, opina Angoulvant.
"Não sou tão otimista, porque vi o que aconteceu na França em junho, quando tudo voltou ao normal (e o distanciamento e o uso de máscaras foram relaxados). Mas acho que temos de aprender essas lições."
Crianças e COVID-19
No caso específico da COVID-19, o papel das crianças na cadeia de transmissão ainda não foi plenamente esclarecido, "mas as evidências até agora apontam que as pequenas (menores de dez anos) não foram identificadas como grandes vetores da doença", afirma Sáfadi, do Hospital Sabará.
"Hoje, os principais vetores são os adultos jovens. A maioria não evolui mal (ou seja, tem apenas sintomas leves da COVID-19) e assume atitudes de maior risco de contágio (como festas e aglomerações)."
Já as crianças maiores de dez anos parecem ter capacidade de transmissão parecida à dos jovens adultos.
De modo geral, porém, alguns estudos apontam que a interação segura entre crianças (e com crianças) parece ser menos preocupante do que se pensava no início da pandemia, segundo um artigo publicado em julho na revista Pediatrics, da Academia Americana de Pediatria.
O artigo compilou pesquisas científicas feitas na Suíça, na China e na Austrália nas quais crianças diagnosticadas com COVID-19 tiveram seus contatos rastreados para tentar identificar possíveis contágios futuros.
E poucos foram os episódios confirmados de transmissão criança-adulto. A partir do estudo suíço, deduziu-se que "as crianças mais frequentemente adquirem a COVID-19 de adultos do que a transmitem a eles".
"Com base nesses dados, a transmissão do Sars-CoV-2 em escolas parece ser menos importante na transmissão comunitária do que se temia inicialmente", diz o artigo, de julho de 2020.
"Isso seria uma outra maneira como o Sars-CoV-2 difere drasticamente do influenza (vírus da gripe), cuja transmissão em escolas é bastante reconhecida como um motor de doenças epidêmicas."
Em contrapartida, um estudo de agosto dos Centros de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA (CDC) analisou os dados de um acampamento de verão no Estado da Geórgia no mês anterior, em que 76% das crianças e monitores acabaram sendo infectados pelo coronavírus depois de uma semana de atividades e brincadeiras.
Um ponto-chave, aqui, parecem ser as medidas de higiene, ventilação e distanciamento social: segundo o estudo dos CDCs, as crianças do acampamento americano não usavam máscaras, os espaços internos não tiveram sua ventilação natural aumentada e os participantes faziam "vigorosos cantos e gritos de torcida" todos os dias, potencialmente espalhando gotículas e aerossóis contaminados.
No Brasil, a capacidade de escolas adotarem um conjunto semelhante de medidas preventivas — desde acesso a água potável e a higienização constante até prédios com áreas livres e boa ventilação natural — é justamente a preocupação de especialistas e professores, principalmente em um momento em que as internações e as mortes por COVID-19 têm crescido em grande parte do país e UTIs voltam a ficar lotadas.
"Em escolas que tenham todas as condições adequadas, o que infelizmente não é a realidade no Brasil no momento, professores não serão grupo de risco maior do que outros profissionais", opina Daniel Becker.
"Por isso, eu e um grupo de pediatras estamos em campanha por adequações urgentes nas escolas públicas. Em escolas degradadas, sem condições de higiene ou água, sabão, papel toalha, álcool gel, equipamentos de proteção individual, poucos professores para muitos alunos, aí sim o risco é maior, porque não há condições para o respeito aos protocolos de segurança."
Considerando que as crianças podem estar entre os últimos grupos a receberem as vacinas, quando estas forem devidamente aprovadas, "se nada for feito, as crianças podem ficar mais um ano sem aulas, o que seria um crime contra a infância no Brasil", prossegue.
"É muito importante investir pesado em escola pública agora. Temos dois ou três meses para isso, mas estamos bem em um período de transição de governos (municipais). Mas é a coisa mais importante que o Brasil pode fazer neste momento."
Ao mesmo tempo, o grupo interdisciplinar Rede Escola Pública e Universidade fez, em agosto, simulações sobre a dispersão do vírus em ambientes escolares, usando São Paulo como exemplo.
Levando-se em conta que populações mais vulneráveis estão mais expostas ao vírus e a densidade de pessoas (alunos e funcionários) nas escolas, o grupo concluiu que seria necessário reduzir para muito além dos 35% de estudantes permitidos pelo governo em aulas presenciais para evitar altos índices de contágio.
"Além da inviabilidade prática, esta condição hipotética de reabertura 'mais segura' das escolas implicaria no aprofundamento das desigualdades educacionais em desfavor de estudantes e escolas em piores condições", diz a nota técnica do grupo.
Escolas pelo mundo
E como conciliar essas dificuldades com mais um fator: a alta de casos no Brasil e no mundo? Até o momento, diferentes países têm dado diferentes respostas.
Países europeus em geral têm mantido as escolas abertas (em alguns casos, sob protestos de professores), mesmo tendo endurecido seus lockdowns novamente e restringido serviços não essenciais. Em estudo de agosto, o Centro Europeu de Prevenção de Doenças reportou que o fechamento de escolas "dificilmente daria proteção adicional à saúde das crianças".
Em defesa das escolas abertas, o premiê irlandês, Micheal Martin, afirmou que "não permitiremos que o futuro de nossas crianças e jovens seja mais uma vítima dessa doença".
No Reino Unido, em 27 de novembro, o epidemiologista Michael Tildesley, membro do conselho científico governamental, admitiu que houve um aumento de casos de coronavírus em escolas em algumas partes do país, mas agregou que não há evidências de "uma transmissão em larga escala".
"Não estamos vendo casos das escolas se espalhando para a comunidade", afirmou. "Na verdade, há mais evidências do contrário: de casos na comunidade levarem a casos nas escolas."
Já Nova York, que havia sido a primeira grande cidade americana a reabrir suas escolas públicas, decidiu fechá-las de novo a partir de 19 de novembro, diante de um grande pico de novas infecções na cidade.
Na Coreia do Sul, escolas foram temporariamente fechadas entre agosto e setembro depois de quase 200 alunos e funcionários em Seul e arredores terem sido infectados.
'Bolhas de assepsia' e natureza
Enquanto permanece o debate em torno das escolas, especialistas defendem que o contato das crianças com a natureza seja mantido sempre que possível (e com as devidas medidas de segurança) durante a pandemia — também para o bem da saúde infantil. Nesse sentido, não é benéfico colocar as crianças em "bolhas de assepsia", livres de qualquer tipo de contato com micróbios, defende Daniel Becker.
"A maioria das infecções virais, passadas pela transmissão inter-humana, são consequência da vida em aglomerações nas cidades. Por um lado, isso é bom porque, na infância, essas infecções (nem todas: a influenza, por exemplo, pode ser muito séria) são geralmente mais leves do que na vida adulta", diz o médico.
"E temos de tomar cuidado para não colocar as crianças em bolhas de assepsia: as que nunca têm contato com a lama, com a terra, não brincam na areia ou com cachorros e com a sujeira natural tendem a ficar mais doentes mais tarde. A sujeira natural é benéfica ao organismo, melhora nosso microbioma e funções corporais. Temos de evitar aglomerações e manter distanciamento, mas não evitar nosso convívio com a natureza, que é fundamental para a saúde (física e mental) das crianças — traz alegria, aprendizado, coragem e capacidade de avaliação de risco."
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