Apesar de todos saberem intuitivamente o que é a gratidão e a ingratidão, é difícil defini-las. A palavra gratidão vem do latim gratia, que quer dizer dom, presente, benefício, dádiva, bênção, ou, simplesmente, graça. Ao procurar essa palavra grega na Septuaginta (tradução da Bíblia hebraica para o grego, feita nos dois últimos séculos antes de Cristo), descobre-se que a palavra hebraica correspondente é hen, que quer dizer um presente inesperado recebido do rei. As informações são de Marcelo Galuppo, professor de filosofia do direito da PUC Minas e UFMG e escritor, que lançou o livro #Um dia sem reclamar, ao lado de Davi Lago, pela editora Citadel.
Já a ingratidão, define Marcelo Galuppo, consiste em não retribuir a graça ou o presente recebido. Ou pior, em esconder dos outros o fato de se ter recebido uma graça ou dom de um terceiro ou, ainda pior, nem sequer reconhecer que se recebeu uma graça, presente ou benefício. “O ingrato geralmente reivindica ter um direito sobre aquilo que, de fato, não tem direito nenhum.”
Segundo ele, o ego tende a ser ingrato, porque costuma se ver como causa de tudo o que ocorre na vida. Quando recebemos algo que não depende de nós, tendemos a reinterpretar os fatos para encaixá-los no esquema de interpretação (egoísta) do mundo: a outra pessoa não fez mais que sua obrigação em nos dar o que recebemos.
“Mesmo para aqueles que creem em Deus, muitas vezes eles encaixam Deus nesse esquema de interpretação. Um exemplo disso está no livro de Jó, na Bíblia. Os amigos de Jó acreditam que, se Jó está sofrendo, é porque ofendeu Deus e pressupõem, se você agradar a Deus, ele teria a obrigação de te dar coisas boas. O ingrato joga um jogo de soma zero (eu recebi isso, mas em compensação eu fiz isso). A pessoa grata, por outro lado, sabe que a vida não é um jogo de soma zero”, explica Marcelo Galuppo.
“Mesmo para aqueles que creem em Deus, muitas vezes eles encaixam Deus nesse esquema de interpretação. Um exemplo disso está no livro de Jó, na Bíblia. Os amigos de Jó acreditam que, se Jó está sofrendo, é porque ofendeu Deus e pressupõem, se você agradar a Deus, ele teria a obrigação de te dar coisas boas. O ingrato joga um jogo de soma zero (eu recebi isso, mas em compensação eu fiz isso). A pessoa grata, por outro lado, sabe que a vida não é um jogo de soma zero”, explica Marcelo Galuppo.
SEM RECLAMAR
Marcelo Galuppo destaca que gratidão é uma virtude e, como tal, admite uma gradação e, além disso, reconhece uma aprendizagem, uma pedagogia. “Aprender a ser grato tem várias consequências: torna-nos mais solidários, mais belos, mais felizes (há vários estudos que demonstram, por meio de ressonâncias magnéticas, que atividade cerebral ligada à felicidade é ativada pela gratidão), dá-nos uma vida mais plena, torna-nos mais humanos.”
O professor enfatiza que é possível desenvolver a gratidão tornando-se consciente de como se é naturalmente tendente à ingratidão. “Por exemplo, quando nos propomos a ficar um dia sem reclamar (e prestamos atenção a todas as formas de reclamar, ou seja, de demonstrar ingratidão, como usar a buzina porque o trânsito está lento e não para evitar um acidente, apertar várias vezes o botão do elevador ou simplesmente reclamar verbalmente), tornamo-nos conscientes de quão difícil é para nossa natureza não reclamar, quão difícil é reconhecer a dependência e a fragilidade. Esse é um dos sete exercícios de gratidão que Davi Lago e eu propomos no livro”, destaca.Aprender a ser grato tem várias consequências: torna-nos mais solidários, mais belos, mais felizes. Dá-nos uma vida mais plena, torna-nos mais humanos
Marcelo Galuppo, professor de filosofia do direito da PUC-Minas e UFMG e escritor
Marcelo Galuppo revela que um dos exercícios de gratidão propostos no livro consiste em buscar ao fim de cada dia um motivo de gratidão, mas parece que há dias em que não há nada a agradecer. “Na verdade, o problema não é com o mundo, que não nos deu oportunidade para ser gratos naquele dia, mas conosco, que não conseguimos identificar, reconhecer um motivo para ser gratos. Se a gratidão é algo que ocorre em nós, então agradecer é reconhecer que conseguimos reconhecer esses dons, pequenos e grandes, que recebemos a todo momento.”
Aliás, Marcelo Galuppo conta que o livro, escrito a quatro mãos ao lado de Davi Lago, que foi seu orientando de mestrado e, desde então, se tornaram amigos, surgiu da concepção de ambos do que é a vida que vale a pena ser vivida. “O tema surgiu no fim de 2019, e em janeiro de 2020, antes, portanto, da pandemia, pudemos nos reunir e escrever juntos o livro. A COVID-19, no entanto, adiou a publicação para o fim do ano. O que foi um aprendizado para nós de algo que está no livro: não estamos no controle de todas as situações, somos dependentes. Na verdade, estamos, sem trocadilho, extremamente gratos pela publicação porque vemos que ela saiu no momento oportuno. Acredito que as pessoas agora vão fazer um balanço, e é importante colocar a gratidão nos haveres da vida, no lucro.”
BRASIL INGRATO
O professor conta que todas as pesquisas para o livro mostraram que sociedades em que a identidade individual estabelece o termo pertencimento ao grupo, em que o sentido de vida comunitária seja forte, são as mais propensas a desenvolver a gratidão. “Por uma série de razões de ordem histórica, o Brasil tem se tornado uma sociedade individualista. E sociedades em que o individualismo é estruturante tendem a ser menos gratas porque os indivíduos tendem a justificar a posição social, bens, cargos e postos a partir do conceito de mérito individual. O problema é que, como dizemos no livro, os seres humanos são como líquens (uma simbiose entre algas e fungos). Somos dependentes do momento em que nascemos até quando morremos. E somente por uma autoilusão é que nos parece que, entre esses dois extremos de dependência, não somos mais dependentes”, explica o professor.
E diante da pandemia e de tudo que a COVID-19 acarreta, é possível exercer a gratidão? Para Marcelo Galuppo, aqueles que sobreviveram têm um motivo óbvio para agradecer, mas aqueles que perderam um ente querido ou o trabalho talvez tenham dificuldades neste momento. “São experiências que envolvem profunda tristeza, mas o antônimo de gratidão não é tristeza, mas ingratidão. É um problema de autoconhecimento distinguir o que é questão de tristeza ou alegria, de gratidão ou ingratidão. Mesmo quem perdeu alguém em 2020, uma das experiências mais estressantes por que um ser humano pode passar, tem algum motivo para ser grato em 2020.”
DEPOIMENTOS
ESTELIONATÁRIO AFETIVO
Luiza Helena Ribeiro Simonetti Cabral, de 45 anos, advogada, com a filha Eliza, adotada
“Aprendi desde cedo que o ingrato é um estelionatário afetivo! Meus pais tiveram origem humilde e conquistaram a estabilidade profissional com a ajuda de pessoas generosas que lhes deram apoio financeiro para estudar e para ter o mínimo para começar a vida. Na existência deles, tiveram a oportunidade de retribuir em dobro todas as bênçãos recebidas. Isso perpetua a corrente do bem que só a gratidão proporciona, pois o exemplo arrasta quem é tocado com afeto pelo outro. Neste ano conturbado, acredito que minha maior gratidão é por aqueles que combateram a COVID-19 na linha de frente, os profissionais de saúde. Muitos deles perderam a vida para garantir que todos tivessem acesso ao tratamento necessário. A obrigatoriedade do ficar em casa pra evitar a propagação do contágio acabou nos dando a oportunidade de colocar cada coisa dentro da sua devida ordem de prioridade. Os pais não puderam terceirizar a educação dos filhos, aprendemos a nos contentar com a presença exclusiva dos nossos, cozinhamos em família, desapegamos de tudo que era supérfluo, com a gratidão de ter superado com saúde o ano mais complexo de nossas vidas. Por toda essa superação, retribuímos ajudando os menos favorecidos, os asilados, os abrigados, pois o círculo de empatia precisa ser mantido para alcançar aqueles que ainda não experimentaram a energia que nos impacta quando cuidamos do próximo. Mas preciso também de falar da minha maior gratidão: Eliza, minha filha. Fez um ano da primeira vez que a ouvi me chamar de mãe. Neste ano conturbado, onde ficamos trancadas em casa a maior parte do tempo, pudemos nos conhecer de verdade e descobrir o quanto essa escolha foi a mais acertada na minha vida. Eliza não tem meu sangue, mas tem meu caráter, minha energia, minha prontidão de socorro ao próximo, a mesma lealdade aos amigos. E se ela tivesse nascido de mim, não seria tão parecida comigo (Você é melhor que eu), ainda tem a vantagem de não ter os meus defeitos. Eu a agradeço por ter me adotado como mãe, por me achar linda nos meus piores dias, por ser a irmã preferida dos quatro irmãos, a “menininha” do papai, por ter vindo assim tão maravilhosa, tornando meu dia a dia tão delicado e cheio de amor. Eliza é minha gratidão maior.”
NOSSAS RAÍZES
Vitor Maia Veríssimo, de 29 anos, advogado e mestrando em ciências sociais
“Todo mundo perdeu alguma coisa na pandemia. Algumas pessoas perderam pessoas queridas, outras perderam o emprego, outras, ainda, perderam, no mínimo, parte de sua liberdade. De toda forma, ninguém sai ileso deste ano. As marcas ficarão, mas creio que ficará também, evidenciado, o que sempre esteve ali antes da pandemia: os bons relacionamentos, afetos e carinhos que já cultivamos ao longo do tempo. O professor Marcelo disse uma vez em aula que 'a vida é mais difícil para alguns'. Eu nasci com uma imunodeficiência primária (de ordem genética) e quando as notícias do vírus se espalharam já imaginei que não teria um ano fácil pela frente. Mesmo ficando em casa – por ser do grupo de risco – em setembro peguei a COVID-19 e fiquei oito dias internado no Hospital das Clínicas. Durante a internação, vi de perto a rigorosidade dessa doença, coisas que não desejaria ter visto. Não acho que seja justo e honesto falar de um lado bom em um momento tão triste, tenso e perigoso para tantas pessoas. Mas tais momentos nos fazem buscar apoio no que já estava enraizado. No meu caso, o apoio do meu pai, do irmão e da namorada foi fundamental para atravessar não só o período de internação, mas toda a quarentena. Coisas simples, como fazer compras no supermercado ou buscar a comida do entregador na portaria do prédio, se tornaram tarefas de assumir riscos. E saber que existem pessoas dispostas a assumi-los por você é algo que transmite segurança, afeto, carinho, amor. Por isso, digo que o que mais salta aos olhos na pandemia, de positivo, já existia antes dela: os laços afetivos que nós construímos. E nesses tempos terríveis, são nessas coisas que podemos nos apegar e são elas também que nos fazem sentir agradecidos. Num cenário de incertezas, inseguranças e instabilidade, estar certo de ter as pessoas certas ao nosso redor nos faz lembrar que elas estão ali há mais tempo (em alguns casos, sempre estiveram). Para além do “novo normal”, aprendi a ser grato pelo “antigo normal”. Às pessoas que sempre estiveram ali comigo, à liberdade de sair sem riscos de contrair o vírus, os encontros com as pessoas, dos rotineiros aos especiais, as saudosas aglomerações. Coisas que já faziam parte da nossa vida e nos foram tiradas, mas que em breve retornarão, nos trarão um misto de nostalgia e novidade. Por essas, penso que é possível se sentir grato em tempos de pandemia: as pessoas que formam nossas raízes e nosso lar, os momentos simples que podemos desfrutar fora de casa, e os abraços dos amigos e amigas que nos esperam ao final deste túnel.”