“Eu sabia que não era mais meu pai quem estava ali”, declara a professora Márcia de Queiroz Andrade, de 64 anos, ao relembrar a luta travada pelo pai ao ser diagnosticado há cinco anos com Alzheimer e sofrer com complicações recorrentes de um quadro clínico de pneumonia desde 2017. José Maria de Queiroz, o “paizinho”, como ela o chamava, ficou
internado
por dois anos recebendo apenas cuidados médicos tradicionais. Porém, em determinado momento, seria necessário que ele fosse submetido a uma traqueostomia.
“Ele estava muito debilitado, usava sonda, não falava e nem andava mais, e precisava de oxigênio para respirar. Era um quadro muito crítico. E quando nos foi pedida a autorização para que o procedimento fosse realizado, se necessário, perguntamos ao médico o que ele faria se fosse alguém da família dele. A
resposta
foi: ‘Eu não faria isso e recorreria aos cuidados paliativos’. E, realmente, no estado em que meu pai se encontrava, seria um sofrimento para ele e para a família, ao vê-lo passar por isso”, relata.
Por isso, o médico responsável pelo caso sugeriu a Márcia e seus irmãos que pensassem na ideia de que os cuidados paliativos fossem adotados como forma de proporcionar
conforto
ao pai. Naquela altura, em estado terminal e incurável, José Maria de Queiroz já não tinha mais tratamento. A pneumonia havia sido controlada e eram administradas altas doses medicamentosas para que ele suportasse a espera de uma decisão da família.
“O quadro estava muito triste, cada dia era uma coisa. Então, optamos por ‘sentir na carne’ os cuidados paliativos”, conta a filha. E o que são os cuidados paliativos? De acordo com o diretor clínico da Rede Paulo de Tarso, Vinícius Lisboa, caso seja possível, de fato, caracterizar o método, ele o identificaria como práticas que visam dar conforto e
dignidade
ao paciente quando ele apresenta uma doença de base incurável, com impossibilidade de tratamento satisfatório, seja clínico ou cirúrgico, como o caso de José Maria.
Assim, Vinícius Lisboa explica que os cuidados paliativos se baseiam em uma série de critérios para torná-los o mais confortável possível ao paciente. Além disso, como um dos objetivos centrais, a prática busca dar à família um acalento e um momento de resolução de conflitos, de arestas. “Existem técnicas, métricas aplicadas para uso desse
tratamento,
mas vai além disso. Envolve a filosofia do cuidado paliativo, que traz diversos benefícios para o paciente”, afirma.
“Estudos comprovam que sintomas controlados de forma eficiente podem, inclusive, trazer sobrevida ao paciente. Essa sobrevida não é uma extensão de maneira indiscriminada da vida, mas é algo propiciado pelo conforto que aplicamos a esse paciente. É a resposta que o organismo consegue perceber. Para o paciente, é o melhor
controle
possível de sintomas. Para a família, é a melhor elaboração possível desse momento específico”, elucida o diretor clínico da Rede Paulo de Tarso.
PRIORIDADE
Os cuidados adotados para os pacientes que recorrem à prática se dão em âmbito multifacetado. Isso porque todo o processo é feito com avaliação de
equipe interdisciplinar,
com formação em cuidados paliativos. Entre eles, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais e psicólogos. “Vale lembrar que a abordagem não é só da doença. É abordagem também do paciente, da família, inclusive envolvendo resolução de conflitos”, frisa Vinícius Lisboa, que destaca, ainda, o uso do método com o objetivo centralizado no tratamento de sintomas.
O cuidado do sintoma, então, passa a ser prioridade e não mais o cuidado da doença. Ou seja, o cerne da prática é aliviar os sinais do corpo – dor, vômito, sintomas neurológicos, processo depressivo – e não os seus atores, seja ele o câncer ou o Alzheimer, por exemplo. E, haja vista a enorme gama de doenças com
perspectivas
de evolução completamente diferentes, não existe um tempo- limite ao qual os cuidados paliativos devem ser incorporados.
Assim, uma pessoa pode se submeter ao método até o fim de sua vida, como foi o caso de José Maria de Queiroz, que recebeu todo o afeto da equipe até junho deste ano, quando faleceu, aos 92 anos. “Há neoplasias com sobrevida de poucos meses, mas há doenças neurológicas,
neurodegenerativas,
por exemplo, que podem chegar a mais de década de sobrevida. Desse modo, não há tempo estipulado, assim como não há procedimentos previamente delineados”, explica o especialista.
AMADURECIMENTO
Mesmo com a finitude dos tratamentos médicos tradicionais no controle da doença de seu pai, Márcia de Queiroz destaca ter observado uma
melhora
significativa no quadro clínico dele após a inserção dos cuidados paliativos. Ele, que já não mais se levantava da cama, passou a se sentar e tomar banho sentado. Com a fisioterapia respiratória, José Maria já não precisava mais do oxigênio. Ele ainda não falava nem se recordava dos nomes de suas filhas, mas já esboçava reconhecê-las.
“É um amadurecimento enorme. Já não tinha mais nada para ser fazer com paizinho, e ele sofria demais. Mas ainda bem que nos restava os
cuidados paliativos
. O preconceito com o método caiu por terra. Hoje, eu falo aos meus filhos e deixo isso como meu desejo: ‘Se eu tiver alguma doença terminal, sem chances de cura e/ou tratamento nenhum mais, quero ter o direito aos cuidados paliativos”, diz.
O QUE DIZ A LEI
De acordo com Resolução 41, de 31 de outubro de 2018, do Ministério da Saude, será elegível para cuidados paliativos toda pessoa afetada por uma doença que ameace a vida, seja aguda ou crônica, a partir do diagnóstico dessa condição. Conforme o quadro clínico, o método pode ser aplicado em hospitais e em domicílio, com acompanhamento profissional.
*Estagiária sob supervisão da editora Teresa Caram