“Descobri meu problema renal em 1994 em um exame admissional. Eu não tinha sintomas e fui diagnosticado com uma doença chamada glomerulopatia mesangial proliferativa. Aos poucos, o rim foi perdendo a função e os primeiros sinais apareceram: dores de cabeça como indício para pressão arterial aumentada. Depois, vieram as náuseas, fraqueza, anemia, ânsias de vômito, dificuldade para comer carne e mal estar. Foi até que precisei fazer um tratamento substitutivo em 2005. No começo, foi a diálise peritoneal e nove meses depois mudei para a hemodiálise.”
É o que conta o professor aposentado e, agora, autor e tradutor, Jáder dos Reis Sampaio, de 55 anos, um dos cerca de 10 milhões de brasileiros que sofrem com alguma doença renal crônica, segundo dados do Ministério da Saúde.
No início, ainda nos primeiros meses após a descoberta, o maior desafio de Jáder foi aceitar a sua nova realidade. Ainda jovem, conforme seus relatos, era difícil entender que, mesmo sem sintomas aparentes, muitos cuidados eram necessários para se evitar complicações. Na época, o aposentado tinha consultas trimestrais com um nefrologista e as limitações eram quase inexistentes: controle médico, alimentar e de consumo de água e prática de atividades físicas. “Eu era feliz e não sabia”, lembra.
O período assintomático que Jáder teve é bem comum. É que a doença renal costuma ser silenciosa e evoluir aos poucos, tendo manifestação dos sintomas quando os rins já se encontram comprometidos. Entre os sinais dados pelo corpo estão o aumento do volume e alteração na cor da urina, fadiga, dificuldade de concentração, diminuição do apetite, sangue e espuma na urina, incômodo ao urinar, inchaço nos olhos, tornozelos e pés, dor lombar, anemia, fraqueza, enjoos e vômitos e alteração na pressão arterial.
“Muitas vezes, quando a pessoa procura o médico, já está no mais avançado estágio, fase em que as únicas soluções são hemodiálise, hemodiafiltração, diálise peritoneal ou transplante renal. Quando há diagnóstico precoce, tratamentos conservadores podem retardar a evolução da doença. Por isso, o acompanhamento médico é crucial, principalmente para idosos, hipertensos, diabéticos e pessoas que já apresentam perda de função renal em estágios iniciais”, explica a nefrologista Lizia Caldeira, da Fresenius.
Mas por que pessoas diabéticas, hipertensas e idosas devem se preocupar mais? Porque, segundo a médica nefrologista intensivista Lectícia Jorge, esses grupos de pessoas estão mais predispostos a perda de função renal. “Com o envelhecimento da população, a incidência de doença renal tem crescido – a partir dos 40 anos, é comum haver perda de funcionalidade do rim –, até porque, a princípio, a principal causa de disfunção renal é a associação com hipertensão arterial e diabetes mellitus, que são doenças muito prevalentes na população. Com isso, a doença no rim também fica sendo muito prevalente.”
Outro ponto de atenção é para aqueles que costumam fazer uso indiscriminado de anti-inflamatórios com frequência, pois a doença renal crônica pode ser causada pela ingestão em excesso de remédios sem prescrição médica.
Para além dos fatores de risco, há quem nasça com complicações no rim. Foi assim com o empresário Armando Barboni Filho, de 44. “Eu nasci com uma deficiência nos três últimos ossos da coluna. Eles nasceram diminuídos. Quando criança era difícil de notar. Já maior, na adolescência, foi a minha mãe que descobriu. Eu era 100% sadio, até que um dia cheguei do futebol, bebi água e deitei no chão da minha casa, e minha mãe viu uma ovulação na reta da bexiga, e percebeu, também, que havia uma dilatação. Procuramos um médico e ele diagnosticou como bexiga neurogênica, que seria uma bexiga paralítica.”
“Ela não fazia o movimento de encher e expelir a urina. Ela enchia, mas não conseguia expelir tudo. Uma bexiga normal expele 100% da capacidade da minha. Depois disso, o médico indicou tratamento que, hoje, acho agressivo, que é o auto cateterismo quatro vezes ao dia. E nada mais era do que eu mesmo passando uma sonda de alívio para esvaziar essa bexiga. Depois de um tempo, parei com esse tratamento e a urina acabava voltando aos meus rins, o que acarretou, cinco anos depois, na perda de 100% dos rins. O meu problema renal passou por um refluxo bilateral do problema que tinha na bexiga. Fui, então, para a hemodiálise, a qual faço até hoje”, conta.
Luta e amor à vida
Os rins têm inúmeras funções, dentre elas: filtrar o sangue, eliminando as toxinas do corpo, manter a normalidade da composição corporal, como os níveis de potássio e o pH, controlar a quantidade de sal e água do organismo, regular a pressão arterial, produzir hormônios que evitam a anemia e as doenças ósseas por meio da ativação da vitamina D, entre outras. “São órgão vitais”, descreve Lectícia Jorge.
Nesse cenário, a doença renal crônica se manifesta quando os rins param de desenvolver suas funções naturais. Ela é classificada em cinco estágios, de acordo com a progressão da doença, sendo o último o mais avançado e quando os rins param totalmente de funcionar. Nesse caso, segundo Lizia Caldeira, não há mais chance de cura, sendo necessário recorrer a uma terapia substitutiva, ou seja, diálise ou transplante. Os tratamentos são recomendados de acordo com a doença e avaliação médica.
Jáder dos Reis e Armando Barboni tiveram que recorrer a esse tipo de terapia. Hoje, apesar das limitações, ambos se sentem bem e gratos pela vida, após tanta luta.
“Depois que os rins não conseguiam mais filtrar uma quantidade mínima de urina, comecei a fazer diálise, em uma modalidade que se chama diálise peritoneal, que é feita em casa, com uma máquina, que injeta um líquido no abdômem e o retira. Eram muitas horas dedicadas ao tratamento. Era muito difícil reenquadrar as atividades da vida ao tratamento. Eu continuava sendo professor da UFMG nessa fase, e foi muito bom poder trabalhar enquanto me tratava. Depois de nove meses, tive uma infecção no peritônio e não houve tratamento com remédios: tive que retirar o cateter que havia sido implantado para inserir e retirar o líquido da diálise peritoneal. Foi um susto”, conta Jáder.
Enquanto se recuperava da cirurgia do cateter, o agora aposentado conta que deu início a hemodiálise. Já são 15 anos se dedicado cerca de 12 horas semanais ao tratamento. “Estou bem adaptado, mas existem alguns mal estares que são comuns. Quanto aos hábitos, mudou muita coisa. Agora, tenho visitas mais frequentes ao médico e mais cuidados com a saúde. Não posso faltar nas sessões. E como são de três a cinco por semana, fica mais difícil de trabalhar, por causa dos horários de trabalho e da fraqueza, e de viajar, porque é muito difícil agendar sessões de hemodiálise fora da cidade.”
Foi, então, que, depois de cinco anos trabalhando e fazendo diálise, Jáder optou pela aposentadoria. Ele não conseguia “entregar” o trabalho com a mesma qualidade de quando estava saudável e não se sentia confortável com isso. Ainda, a mente sofreu um pouco nesta luta. O professor desenvolveu depressão quando perdeu a função renal. “Passei a fazer acompanhamento psiquiátrico e me sinto muito bem hoje. Com a aposentadoria, passei a priorizar a família, o cuidado com a saúde e dedicar um pouco mais à minha religião. Mas precisava de uma atividade que pudesse realizar dentro das limitações, então me reinventei bastante.”
“Me sinto uma pessoa em realização. Felizmente, muitas pessoas nem percebem que sou renal crônico, se eu estiver usando uma camisa de manga comprida, que oculte a fístula e os vasos do braço. Alguns até acham que estou mentindo, quando digo que faço hemodiálise. Creio que vivo em uma época na qual é possível ter uma boa qualidade de vida se nos dispusermos a enfrentar a doença e fazer o que é necessário para preservar a saúde que nos resta. E fiz um ‘acordo com Deus’ que iria viver para ver as filhas formarem. Do jeito que as coisas andam, vou rever o acordo e acho que desejo ver os netos crescerem, quando elas acharem que está na hora”, conta.
Para enfrentar o momento, Armando Barboni tem um “lema” de vida: foco em “coisas positivas”. “Faço hemodiálise e sou 100% seguro nesse tratamento. Minha vida inteira foi dedicada a ele. É agressivo, mas tenho consciência do bem que faz e levo uma vida quase normal. Levo o tratamento com dedicação e não com a cabeça voltada a ele. Na hora que termina o tratamento, esqueço ele e vivo. Hoje, eu faço o tratamento de segunda a sexta, por duas horas e meia ao dia, saio e venho para o meu escritório e trabalho normalmente. Vou, inclusive, dirigindo até a minha casa que é em Betim, 50km de distância.”
“Antes, na adolescência, eu sentia um incômodo, sim. Mas, hoje, estou mais feliz e satisfeito com a hemodiálise. Não consigo reclamar de nada. Sou uma pessoa ativa e, embora com 22 anos de hemodiálise se tem desgaste cardíaco, não tenho nenhum outro problema de saúde. Faço e luto pelo que quero e pela vida, e estou bem e feliz.”
Previna-se!
“Muitas das doenças no rim podem sim ser evitadas”, afirma Lectícia Jorge. Segundo ela, algumas iniciativas e mudanças de hábitos podem contribuir para evitar o aparecimento de doenças renais ou mesmo complicações de quadros já instalados. "É por isso que é tão importante dosar a creatinina, prestar atenção e realizar exames de urina. Porque o quanto antes se reconhece que tem alguma alteração, antes se consegue tratar.”
Por isso, a nefrologista recomenda a inserção dos exames indicados no check-up habitual da população – normalmente, realizado anualmente. Além disso, ela reforça a importância de se fazer uma alimentação adequada com menos sal e açúcar, praticar exercícios físicos, evitar que a pressão arterial fique alta, controlar o diabetes e não utilizar medicamentos sem prescrição médica.
O Ministério da Saúde também sugere que o paciente tenha consciência a respeito do histórico de doenças familiares, controle o peso, não fume, evite o consumo de bebidas alcóolicas e monitore os níveis de colesterol.
Conscientização
O Dia Mundial do Rim é comemorado, anualmente, na segunda quinta-feira do mês de março – neste ano, dia 11. A data é idealizada pela International Society of Nephrology (ISN), para aumentar a difusão de informações sobre as doenças renais, em prol da conscientização e do planejamento de estratégias de prevenção e gerenciamento das doenças.
* Estagiária sob supervisão da subeditora Ellen Cristie.