Errar é humano. Afinal, a vida não vem com um manual de instruções ou uma “receita de bolo” sobre o que deve ou não fazer, nem sobre o que é certo ou errado. No entanto, em um mundo de exposição da imagem, em que redes sociais e programas de TV cada vez mais expõem vidas e atitudes, a cultura do pré-julgamento e do cancelamento contrapõe a premissa de que é aceitável cometer equívocos.
“Todos nós estamos sujeitos ao erro. Por mais que façamos de tudo para não errar, em algum momento vai acontecer. Somos falhos”, lembra a teóloga Suelen Souza. O psicólogo comportamental Leonardo Morelli frisa que, a princípio, é importante entender, antes de julgar uma pessoa, o teor do ato cometido. Segundo ele, o “equívoco” pode ser, de fato, um erro, um engano ou um acidente. “Em um exemplo simples, errar é quando sei que atravessar um sinal vermelho é errado e mesmo assim eu atravesso. Isso é um erro. Agora, quando eu tenho que atravessar a rua, o sinal está ficando amarelo e eu atravesso, estou, de certa forma, cometendo um engano por achar que podia passar e não dá.”
"Perdoar é entender e compreender a outra pessoa. É o lugar no qual se pratica a empatia e se coloca no lugar do outro e compreende o que aconteceu”
Leonardo Morelli, psicólogo comportamental
E quando esse erro, engano ou acidente atinge diretamente outra pessoa? Ou, mesmo que não atinja, ele toca em um ponto de empatia para com outrem? Nesses casos, de acordo com Leonardo Morelli, perdoar poder ser libertador, e isso de forma mútua, para ambos os lados. “Perdoar é entender e compreender a outra pessoa. É o lugar no qual se pratica a empatia e se coloca no lugar do outro e compreende o que aconteceu, pensando que talvez faria a mesma coisa. Quando isso ocorre, nós temos uma possibilidade muito grande de perdoar o outro. E esse perdão não faz bem só para quem cometeu o erro, mas para os dois lados, por trazer alívio. Na verdade, o perdoar é muito mais para quem perdoa do que para a outra pessoa, pois temos sentimentos e temos de lidar com eles: raiva, frustrações e angústias”, afirma.
O perdão liberta esses sentimentos. É uma espécie de cura para a alma. Mas, e quando esse errar transcende enganos e ações pessoais e passa a ofender ou até mesmo prejudicar o outro de propósito, de forma a “alimentar” desejos e anseios tidos como impuros? “Temos, então, que jogar esse ato em um crivo e entender quando ele tem como objetivo prejudicar o outro ou querer aquilo que o outro tem.”
A psicóloga Sônia Eustáquia elucida que, quando se tem consciência de um erro e ele se torna quase que uma espécie de vício ao ser replicado continuamente, transcende a normalidade do errar. “Quando não há arrependimento verdadeiro e eu sei que estou ferindo o outro, sei que estou agindo de forma agressiva e ofensiva, mas continuo agindo do mesmo jeito, então esse erro deixou de ser ‘humano’ e se tornou consciente. O indivíduo, então, escolhe errar e ainda procura justificativas para os atos. Pode ser que ele até sinta um remorso, mas, em pouco tempo, esse sentimento passa e nada muda.”
SEGUNDA CHANCE
Começar de novo, mudar e consertar erros ou simplesmente ter a chance de magoar mais uma vez? Ao pensar em dar uma segunda chance a alguém, talvez esses sejam os primeiros questionamentos para com a atitude do outro a serem feitos. Porém, segundo Suelen Souza, sempre se é possível dar uma segunda chance. “Penso que não é por merecimento. Isso se chama graça, um favor que não se merece. Jesus nos perdoa e nos ama mesmo sem merecermos e nos convida a fazer o mesmo ao próximo. Mas ele também espera uma resposta coerente ao perdão que nos foi oferecido. Assim, também nós, quando damos uma segunda chance a alguém, esperamos uma posição diferente.”
Para a teóloga, todos podem mudar, já que o ato de se conhecer e identificar erros e hábitos a serem mudados é uma escolha pessoal. No entanto, isso não é tão fácil quanto parece e demanda, além do perdão, tempo e esforço diário. “Cada um vive o seu processo. Há quem irá conseguir muito rápido e quem vai morrer lutando. O importante é não desistir de ser melhor. Mas, para mudar, é preciso arrependimento, reconhecer que errou e partir rumo às mudanças.”
Suelen Souza lembra, ainda, que perdoar e dar uma segunda chance a alguém não quer dizer que todos os erros daquelas pessoas foram esquecidos. Perdoar, segundo ela, é entender que o outro erra e, ao pensar no passado em que o ato foi cometido, qualquer que seja ele, as lembranças venham sem dor.
NA FAMA
E quando errar envolve ser julgado e até magoar milhões de pessoas? Um exemplo são os realitys shows, no qual a vida e o caráter das pessoas são julgados pelos erros cometidos em confinamento. Seja para com o público, um nicho específico ou até mesmo outro participante, atos equívocos ou compulsivos podem valer uma carreira ou o prêmio final do programa de televisão. Foi assim com tantos ex-participantes do “Big brother Brasil”, da Rede Globo, por exemplo, e mais recentemente com a cantora e rapper Karol Conká.
“Ter sempre a consciência de que milhares de pessoas estão vigiando cada um dos seus passos tem um peso. Querendo ou não, a pessoa atua como referência para um determinado grupo e, como referência, a responsabilidade sobre suas escolhas e atitudes é muito grande. Se a pessoa tiver essa consciência, ela se verá diante de dilemas éticos ao longo da fama, muitas vezes precisando agir sobre como escolheria se não fosse uma pessoa famosa”, avalia a psiquiatra Jaqueline Bifano.
De acordo com ela, para essas pessoas, determinadas situações implicam obrigação em mudar. “Como é um processo difícil e que não ocorre de uma hora pra outra, a ‘obrigação’ pode acabar gerando uma simulação pública da mudança. Publicamente, a pessoa pode agir como se tivesse mudado, escolher suas atitudes com mais cuidado e vigilância sem, no entanto, ter mudado de fato. Claro que não é uma regra. A pessoa pode sim mudar, como qualquer outra pessoa. Mas para mudar mesmo, só se for uma escolha pessoal, independentemente da pressão. Será no seu tempo, no seu processo, e isso é muito individual.”
Nesse cenário, o ‘cancelamento virtual’ surge como pressão por mudança, o que, para a psiquiatra, pode atrapalhar, e muito, o processo. “Isso, no mínimo, vai fazer a pessoa olhar para aquele comportamento. Ela pode se ressentir, se retrair, questionar seu próprio valor ou agir de inúmeras outras maneiras. Pode também começar a questionar o que foi que ela fez que gerou aquela reação pública. E pode, a partir disso, decidir que quer mudar. Mas uma coisa não necessariamente levará à outra. O mais provável é que o cancelamento atrapalhe a mudança, pois vai afetar a autoestima, a imagem de valor próprio, e pode desestimular e contribuir para que a pessoa entre num ciclo emocionalmente adoecido.”
*Estagiária sob supervisão da editora Teresa Caram