Normalmente, haja vista o conhecimento científico atual, as lesões do joelho – condropatia patelar, condromalácia, lesão na cartilagem, osteoartrite, entre outras – são tratadas com cirurgias invasivas ou com o uso de próteses. Porém, aos poucos, novas alternativas vêm sendo apresentadas, como é o caso da terapia biológica. Uma descoberta recente, e ainda em estudo por pesquisadores brasileiros, é o uso das células-tronco no processo de reparação e combate inflamatório.
Leia Mais
Terapia celular: pesquisadores descobrem novas células para tratamento de diabetesMitocôndrias: essenciais para as célulasHospital de transição pode 'desafogar' sistema de saúde e liberar leitosAdolescentes podem fazer cirurgias plásticas? O que dizem os especialistasFeluma Ventures propõe inovação em saúde e educação médica em Minas Gerais30% da população brasileira sofre de incontinência urinária, diz pesquisa“Os resultados foram favoráveis e bem positivos para o uso da terapia celular com o que denominamos de composto de engenharia de tecidos (CET), mostrando uma melhora nos parâmetros avaliados com relação ao reparo da cartilagem utilizando a terapia celular. Há estatísticas e dados que comprovam, mas ainda estão em fase de publicação”, afirma o pesquisador, que atribui a conquista ao desenvolvimento e aquisição de conhecimento do meio médico no que tange a terapia genética e biológica.
“Essa é a chave. Hoje em dia, esses tratamentos são para diversas doenças e são cada vez mais personalizados e dependentes da biologia. Antes, na ortopedia, por exemplo, os tratamentos eram relacionados a mecânica – placas, parafusos, prótese, entre outros –, o que ainda é muito importante. Agora, está havendo uma transição do conhecimento para o tratamento de doenças com o uso de terapias biológicas e personalizadas. E é essa a nossa contribuição.”
Com a terapia celular, então, há uma melhora no tratamento, com a possibilidade de reparo biológico sem progressão da doença e sem piora da função e da dor dos pacientes que sofrem com lesões no joelho. Nesse cenário, há, ainda, uma diminuição da necessidade de cirurgias de grande porte ou invasivas.
E por que as células-tronco? Elas têm duas características principais. Uma delas é que as células-tronco são capazes de se diferenciar em diferentes tecidos, entre eles, cartilagem, osso e gordura. Então, como elas têm essa propriedade de diferenciação, elas atuam, também, no reparo desses tecidos. Além disso, elas têm uma propriedade de imunoregulação ou regulação do sistema imunológico local.
“E o que acontece é que as células-tronco estando presentes nesse ambiente elas conseguem regular as outras células do sistema inflamatório, fazendo com que exista uma diminuição da inflamação local e que exista um estímulo para a produção de cartilagem. E isso é muito importante, porque é justamente este ponto que nos fez estudar essa ação das células-tronco no tratamento de lesões no joelho.”
“Isso porque, de fato, temos um grande problema a ser resolvido nesse cenário, já que, diariamente, pacientes, tanto no serviço público quanto no consultório, atletas e esportistas, tanto profissionais quanto amadores, têm dores nos joelhos decorrentes do desgaste da cartilagem. E essas lesões da cartilagem se acumulam ao longo do tempo e as pessoas podem desenvolver artrite ou artrose da articulação, e essas patologias são consideradas problemas de saúde pública, já que, hoje, não existe cura”, elucida.
Esses problemas, que afetam em maior escala pessoas mais velhas, são incapacitantes e debilitantes, tanto do ponto de vista de atividades esportivas quanto de rotina, causando perda de funcionalidade, dor e inflamações locais. Justamente por isso, quase sempre culmina em uma cirurgia de grande porte e invasiva que não tem 100% de eficácia e apenas repara a dor. Com a terapia celular, isso muda, e muito.
O ESTUDO
As pesquisas começaram com o estudo das células-tronco e suas propriedades em laboratório. Posteriormente, deu-se início ao estudo pré-clínico com porcos, que têm joelhos semelhantes aos dos humanos, utilizando membranas produzidas a partir de células-tronco mesenquimais, encontradas na medula óssea, tecido adiposo e revestimento da parede articular ou sinóvia. Agora, os pesquisadores aguardam aprovação para dar início a testagem em humanos.
“Assim como as vacinas precisam ter autorização, esses tratamentos que envolvem terapia celular também necessitam se submeter a uma análise da Anvisa e ter a aprovação deles para conduzir a pesquisa. É nessa fase que estamos. Na transição do pré-clínico para o primeiro uso em humanos”, afirma Tiago Fernandes.
No estudo, os pesquisadores analisaram a eficácia de membranas produzidas a partir de duas fontes de células-tronco mesenquimais. Uma delas é a membrana sinovial, uma fina camada de tecido que reveste a parte mais interna das articulações. Esse tecido é responsável por produzir o líquido sinovial, que tem o papel de lubrificação, evitando que as articulações sofram desgaste.
Em parceria, com Daniela Franco Bueno, do Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa, que estuda a metodologia para o tratamento de lábio leporino, malformação que afeta a região dos lábios e palato, outra fonte de células-tronco utilizada foi a polpa dentária.
Segundo o ortopedista Tiago Fernandes, o uso das células-tronco mesenquimais é mais vantajoso em comparação a outras. “As células-tronco embrionárias envolvem uma série de conflitos éticos e religiosos que dificultariam a pesquisa. Poderíamos usar também as células-tronco pluripotentes induzidas, técnica que permite, a partir de uma célula adulta, produzir células semelhantes às embrionárias, mas as pesquisas indicam um risco maior de tumores e precisamos de mais estudos para esclarecer esse ponto”, pondera.
Nesse cenário, as células mesenquimais têm a vantagem de se diferenciar em cartilagem, justamente o tecido alvo da pesquisa apoiada pela Fapesp. Além de Daniela Bueno, a pesquisa contou com a colaboração de Arnaldo Jose Hernandez, da FM-USP.
A TERAPIA CELULAR
Nesse cenário, uma alternativa é o implante autólogo de condrócitos, uma terapia celular que utiliza células da cartilagem extraídas do próprio paciente. Disponível na Europa e nos Estados Unidos, mas não no Brasil, essa técnica se inicia com a artroscopia, procedimento para a coleta de cartilagem saudável do joelho de uma área que não sofre carga.
“As células são isoladas em laboratório, multiplicadas e introduzidas em uma membrana. Depois de 30 dias, essa membrana com as células é levada para o centro cirúrgico, onde será recortada no tamanho do defeito da cartilagem e colada no local da lesão no joelho do paciente”, descreve Tiago Fernandes.
A pesquisa, inclusive, utiliza técnica semelhante à de implante autólogo de condrócitos: avalia o uso de células-tronco mesenquimais presentes na membrana sinovial ou na polpa do dente de leite que são capazes de produzir a sua própria matriz extracelular ou membrana. Os pesquisadores avaliaram inicialmente os processos de coleta, isolamento e crescimento das células extraída – haja vista a quantidade diferente das células-tronco em difentes partes do organismo humano, ela precisa ser multiplicada.
E essas células-tronco mesenquimais – usadas no estudo – podem ser usadas para tratar lesões maiores. Uma vantagem é que nessa técnica não há a necessidade do uso de banco de tecidos e busca de doadores, pois as células são obtidas no próprio paciente. O objetivo, porém, não é regenerar ou formar um tecido igual ao existente antes da lesão. “Buscamos o reparo, ou seja, recuperar função, de forma a devolver os movimentos ao paciente e tirar a dor”, esclarece.
Quanto às células-tronco extraídas da polpa do dente de leite, todo o processo de produção da membrana a partir dessas células é semelhante ao aplicado com as células extraídas da membrana sinovial. O dente de leite, prestes a cair, é extraído pelo dentista, encaminhado para laboratório e armazenado em nitrogênio líquido para se ter um banco de células. A diferença está na quantidade de células extraídas da polpa e no crescimento das células em laboratório para gerar a matriz extracelular que será implantada no joelho.
* Estagiária sob a supervisão da subeditora Ellen Cristie.