Isolamento social. Quando teve início no Brasil e no mundo, muitos pensaram que seria mais passageiro. E, aos poucos, a rotina de brasileiros e pessoas de todo o mundo “virou de cabeça para baixo”. As crianças e adolescentes, então, de repente, passaram a ficar cada vez mais tempo em casa, sem contato com outras crianças e em sistema de aula remoto. A rotina simplesmente se desfez, dando espaço à ansiedade. E, assim, o ato de “beslicar” e comer se tornou quase uma válvula de escape.
Pedro Villarinho, de 13 anos, é a prova viva desse cenário. Segundo relatos da mãe do adolescente, a psicóloga Luciana Villarinho, de 49, o menino sempre manteve o acompanhamento médico com o endocrinologista em dia, haja vista a predisposição para a obesidade – filhos de pais obesos. Porém, com o início da pandemia, há quase um ano, o medo falou mais forte.
“Acabei interrompendo as consultas mensais. Além disso, ele sempre fez esporte e, com a pandemia, o futsal que ele praticava foi interrompido. Tudo foi suspenso. E isso acabou influenciando no ganho de peso. Afinal, ele é um pré-adolescente, preso dentro de casa, sem contato com os amigos, sem praticar esportes e sem sair de casa. É tudo sentado, é aula on-line, a diversão acaba sendo TV, videogame e celular. Então, tudo isso foi piorando o quadro de obesidade. E gera muita ansiedade ficar trancado em casa e, inclusive, reparei ele procurando comida mais vezes, também pela facilidade de estar em casa”, conta.
O mesmo ocorreu com Henrico Manzo, de 11. De acordo com a mãe do garoto, a assessora de comunicação Loida Manzo, de 44, desde que começou a pandemia e o seu home office, a família toda extrapolou na má alimentação. Eles, que já comiam mal, se renderam à praticidade dos industrializados e congelados.As pessoas passaram a ficar mais tempo em casa, na frente da televisão, sem ter nada para fazer. Assim, é mais fácil ficar %u2018beliscando%u2019%u201D
Cristina Targa, presidente do Departamento Científico de Gastroenterologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
Para a presidente do Departamento Científico de Gastroenterologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Cristina Targa, o comportamento adotado neste período tem muito a ver com os resultados. “As pessoas passaram a ficar mais tempo em casa, na frente da televisão, sem ter nada para fazer e, assim, é mais fácil de ficar ‘beliscando’. Outra coisa é que os industrializados são muito mais fáceis de ser consumidos a qualquer hora, não precisa preparar, não dá trabalho e está ao alcance da mão, e muitas famílias têm isso dentro de casa. Fora isso, a ausência da prática de exercícios físicos e falta de contato com outras pessoas contribuíram para agravar o quadro de obesidade pediátrica nesse período”, aponta.
RESSOCIALIZAÇÃO
No pós-pandemia, com os quadros clínicos de obesidade “em alta”, o risco de saúde pode acompanhar o gráfico em crescimento, haja vista o fato de o organismo estar mais debilitado e com hábitos ruins, oriundos do período de isolamento social. “A obesidade está totalmente relacionada à imunidade, já que a maioria das células do sistema imunológico estão presentes no intestino”, explica.
“Sendo assim, as gorduras guardadas nas células do tecido adiposo produzem proteínas que facilitam a inflamação e provocam o desequilíbrio da microbiota. Não à toa, já temos observado, no consultório, um aumento de casos de desordens gastrointestinais funcionais, decorrentes do desequilíbrio da microbiota intestinal, como distensão, dores abdominais e diarreias de repetição”, alerta Cristina Targa.
Justamente por isso, a dica de ouro do momento é melhorar os quadros de obesidade ainda no período de isolamento social para que, quando tudo voltar ao normal, a imunidade esteja em melhor estágio, assim como a saúde como um todo. “Pensar em melhorar a imunidade é pensar também em microbiota, porque ela está em maior parte no intestino, órgão que tem mais tecido imunológico. Então, quando queremos fortalecer a imunidade, temos que recuperar a microbiota e fortalecer as defesas, que são feitas por meio da microbiota saudável.”
E o que se pode fazer para melhorar a microbiota? Segundo Cristina Targa, o primeiro passo é comer saudável. Fazer exercícios físicos, diminuir o estresse e dormir bem também são grandes aliados. “É basicamente tudo o que não vem acontecendo durante a pandemia, onde todo mundo anda estressado, com alimentação ruim e não tendo a regularidade nos exercícios físicos. Então, mudar esses hábitos é muito importante, porque a microbiota – bactérias, vírus e todos os micro-organismos do nosso corpo – faz a nossa proteção, principalmente a intestinal.”
Além dos hábitos saudáveis, os probióticos também podem melhorar e intervir na microbiota. Eles podem ser naturais, consumidos na alimentação, e/ou farmacêuticos, que podem ser ingeridos em pó ou em comprimido.
Luciana Villarinho e Loida Manzo contam que deram início a alguns hábitos saudáveis logo depois da percepção de ganho de peso dos filhos. A psicóloga relata ter convencido Pedro a retornar à terapia, o que tem ajudado no controle da ansiedade e, consequentemente, da alimentação. Já Loida destaca que o filho Henrico tem buscado comer melhor, desde que percebeu o aumento de peso e se sentiu incomodado.
“Minha irmã mora nos Estados Unidos e começou a fazer uma dieta alinhada, acompanhada com psicólogo e nutricionista, e teve bons resultados. Ele começou a ver minha irmã indo bem e começou a fazer o mesmo acompanhamento. E o Henrico começou a perder peso e, hoje, tem uma rotina mesmo dentro do isolamento social, o que tem ajudado bastante”, diz a assessora de comunicação.
GATILHO
Traduzido para o português como efeitos do lockdown de COVID-19 no estilo de vida de crianças com obesidade que vivem em Verona, Itália, um estudo italiano concluiu que o isolamento social pode exacerbar sintomas em crianças que já têm diagnóstico de distúrbios gastrointestinais funcionais e ser um gatilho para desenvolvê-los em crianças suscetíveis. Além disso, o ambiente familiar hostil devido ao aumento do estresse das famílias – por insegurança financeira, adoecimento ou perda de entes queridos – e a violência doméstica também podem contribuir no desenvolvimento de desordens gastrointestinais funcionais.
*Estagiária sob supervisão da editora Teresa Caram