Não é fácil lidar com a dor, com perdas, decepções, mas tanto as emoções negativas quanto as positivas têm funções e são úteis. Por isso, Renata Borja, psicóloga clínica especialista em terapia cognitivo-comportamental, explica que não podemos dizer que tristeza, raiva e medo são negativas, enquanto alegria é positiva. Essa é uma ideia completamente distorcida sobre as emoções. O correto seria dizer emoções construtivas e destrutivas, terminologia que não está vinculada a emoções específicas, mas à forma como as utilizamos e as expressamos. Portanto, bloquear emoções não é positivo, já que nos faz compreender que o problema está na emoção, enquanto na verdade está na reação que temos diante dela.
Conforme Renata Borja, entender a emoção como problema faz temê-la e tentar evitá-la em vão, o que acabará por aumentar a emoção e o desconforto: “As emoções podem ser destrutivas quando temos uma reação desproporcional à situação ou quando há comportamentos tão vinculados a elas que podemos ter dificuldade de diferenciar o que é emoção e o que é comportamento”.
Segundo a especialista, a raiva pode ser utilizada para um posicionamento sem que precise ser agressivo, e o medo pode ser usado como energia para produtividade. Tentar bloquear a raiva, o medo, a tristeza, a ansiedade pode gerar sérias consequências, uma vez que não é possível deixar de sentir. Essa atitude pode gerar culpa, cobrança, autocrítica severa e acarretar uma intensidade maior nas emoções que a pessoa quer “evitar”. “Ela entrará em um círculo vicioso negativo, promovendo mal-estar e estresse emocional.”
Para a psicóloga, o risco da positividade tóxica não está nas redes sociais, mas em como as pessoas as utilizam e como os outros compreendem o que está lá. A sociedade apresenta uma cobrança excessiva de sucesso e todos querem mostrá-lo na tentativa de serem reconhecidos como capazes, serem amados e valorizados. “Na realidade, queremos nos sentir pertencentes. E se existe uma valorização da aparência, do status, do poder e do sucesso financeiro, as pessoas querem mostrar isso na tentativa inútil de conexão. Muitas pessoas, portanto, podem se tornar escravas das redes sociais e criar falsas postagens na tentativa de se sentirem conectadas. Entretanto, essa falsa demonstração de felicidade as faz sentirem-se mal, principalmente quando se comparam com outros que julgam melhores, mais ricos, mais famosos e mais felizes”, diz.
OTIMISTA SEM SER TÓXICO
Renata Borja alerta que o problema não está no otimismo, mas ao achar que a solução está em se sentir alegre todo o tempo. E as redes sociais dão a falsa impressão. A pessoa teve vários momentos ruins durante o dia, mas a tendência é postar somente sobre os bons, ou até mesmo forjá-los. “Dizer para alguém deprimido que ela precisa ver que a vida é linda só vai fazê-la se sentir ainda pior. É possível ser otimista sem ser tóxico para alguém. Mas para que isso ocorra é importante valorizar a função e a existência de todas as emoções. Podemos compreender que o outro se sente triste e apenas acolher a emoção sem precisar obrigá-lo a se sentir feliz. Não é querer, ao ver alguém mal, que ela transforme a sua emoção e fique boa, isso só faz com que a pessoa em sofrimento se sinta mais inadequada, sozinha e incapaz.”
A psicóloga se lembra do filme “Divertidamente”, a emoção da alegria fica o tempo todo incomodada com a tristeza, como se ela fosse uma emoção inútil e prejudicial. Mas em um determinado momento do filme ela compreende que a tristeza é importantíssima para a conexão e a empatia. “Esse exemplo mostra que se queremos que alguém que amamos se sinta bem, temos que deixar os julgamentos sobre as emoções de lado. A alegria nessas horas pode ser tóxica e a tristeza pode ser fonte de conexão e resgate.”
Para Renata Borja, a positividade é muito importante. Esperança e otimismo ajudam a vencer desafios e a alcançar metas e objetivos. Falar coisas boas que estimulem, motivem e ajudem é ótimo, o que não é bom é cobrar de si e dos outros sentir somente emoções positivas, ou achar que os motivos são menores ou sem sentido.
“Não é porque eu tenho mais coisas que muitas pessoas que não posso sentir tristeza e que eu não tenho o direito de ter emoções negativas. Esses pensamentos são distorções, porque nos fazem ver as emoções como permanentes e situacionais. Não existem motivos específicos para que alguém seja mais otimista ou pessimista ou mais positivo ou negativo. Não existe uma forma certa ou errada de sentir. Existe uma individualidade que tem de ser respeitada.”
O PESSIMISTA É MALVISTO
Renata Borja reconhece que o pessimista é malvisto, não por ser pessimista em si, mas por ser “reclamão”. “Posso ser mais otimista, mas não preciso cobrar que os outros sejam como eu só porque isso dá certo para mim. Do mesmo jeito que não preciso ficar por aí reclamando da vida. Mas isso também não significa que eu tenha que me calar em nenhuma das duas situações. Todos têm momentos otimistas e pessimistas na vida. Momentos em que seremos melhores companhias e em outros não, e está tudo bem, mas isso não significa que deva deixar de conviver quando não está bem. Pode sair com as pessoas mesmo que a sua emoção não esteja em sintonia com a delas. A convivência ajudará a melhorar, desde que não nos cobre ou seja cobrado.”
A psicóloga destaca que respeitar emoções não significa deixar que elas o dominem. “Não é porque estou triste que tenho que reclamar com os outros, ou porque fiquei com raiva que devo me vingar de alguém, ou porque senti ansiedade que devo desistir de um objetivo. Posso dizer coisas boas mesmo estando triste, posso corrigir sem me vingar, e posso atingir metas utilizando a minha ansiedade. E se alguém não está bem, posso acolhê-lo nas suas emoções. E ajudá-lo sendo um ombro amigo.”
Renata Borja diz que a busca pelo bem-estar é um caminho e ele está, principalmente, na confluência de vários fatores, mas não necessariamente no excesso ou na perfeição. Sono de qualidade, atividade física, alimentação equilibrada, gestão emocional, flexibilidade. Ela lembra que Martin Seligman, da psicologia positiva, diz que o bem-estar tem cinco fatores: emoção positiva, engajamento, relacionamentos, sentido e realização. “Eu concordo, mas compreendo que para se ter emoções positivas precisamos nos permitir sentir emoções que consideramos negativas ou ruins, lembrar que somos imperfeitos e que a vida é cheia de sofrimentos, problemas, mas mesmo assim podemos aceitar nossa condição de humanos e acolher e validar as emoções que sentimos.”
A psicóloga, que lançou um e-book gratuito de bem-estar (https://bit.ly/cognitivaautocuidado), lembra que para se ter engajamento é preciso dar abertura ao aprendizado e valorizar mais o caminho, o processo, os fracassos e acreditar na capacidade do que é possível construir e se desenvolver errando e arriscando. O sentido está no amor, no exercício da espiritualidade e na noção de que somos únicos e precisamos nos dedicar a algo que nos faça sentir plenos. Para que tudo isso aconteça não é necessária uma situação perfeita. “O sentido pode ser encontrado mesmo nas situações mais doloridas. A realização se relaciona diretamente com a ação. Pode ser transformando o problema em desafio. O bem-estar, portanto, tem relação direta com a sabedoria de enfrentar as adversidades e sofrimento com os recursos que temos.”
FIQUE POR DENTRO
Instituto Feliciência
“A felicidade legítima é uma experiência intrínseca, dispensa o reconhecimento de terceiros. Sorrisos pasteurizados em fotos sob filtros, vozes cuidadosamente moduladas e falas que se assemelham a pregações são apenas artifícios, esses sim, tóxicos, daquilo que surgiu bem antes da internet: a vida de fachada e a venda de receitas mágicas”, esse é o alerta diante da positividade tóxica de Carla Furtado, mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e expert em felicidade interna bruta (FIB). Fundadora do Instituto Feliciência (https://www.carlafurtado.com.br/interna.phppagina?=sobre), centro de formação nos campos das ciências relacionadas aos temas bem-estar, saúde mental, felicidade, liderança e sustentabilidade, com atuação no Brasil e em Portugal. Essa “pura felicidade” só bloqueia as emoções negativas: “É importante observar que a psicologia positiva não orienta que se bloqueie ou evite emoções negativas. Do ponto de vista humano, isso nem sequer é possível e não seria recomendável. Emoções são comportamentos autônomos em resposta a estímulos. É sempre importante ressaltar que felicidade não é uma emoção, mas costuma ser confundida com a alegria.”
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Marco Túlio de Aquino,
médico psiquiatra cooperado da UNIMED-BH, mestre em ciências da saúde e terapeuta cognitivo-comportamental
1 - Quais danos a positividade tóxica causa à saúde mental?
Importante dizer que sentir emoções como tristeza, ansiedade ou medo diante de tudo que estamos vivenciando é um sentimento universal e denota capacidade empática. O reconhecimento do nosso sofrimento e do sofrimento de toda a sociedade nos permite fazer escolhas humanistas diante das adversidades, nos proporcionando a possibilidade de acolher, compreender, intervir, se proteger, proteger o outro e ajudar efetivamente. Entender a origem ou os gatilhos para as emoções mais básicas, inclusive as negativas, nos permite escolher caminhos alternativos para uma mudança ou uma melhor aceitação do que se está vivendo. Emoções não bem trabalhadas podem ser gatilhos importantes para a manifestação de transtornos mentais que podem afetar a cognição, o controle do comportamento, podendo interferir, de maneira substancial tanto na capacidade de a criança aprender quanto na habilidade de os adultos interagirem com outras pessoas, seja na família, no trabalho ou na sociedade. Os transtornos mentais envolvem complexas etiologias, que incluem interações entre fatores de risco genéticos e não genéticos ligados ao meio em que vivemos e os seus estressores. A sua alta prevalência na população geral pode trazer grande impacto na qualidade de vida, principalmente quando não tratados ou tratados inadequadamente.
2 - Como não cair nesta armadilha de imaginar que tudo tem de estar bem sempre e acobertar o que há de negativo e ruim na vida e no mundo?
Podemos dizer que existem cinco aspectos que interferem na experiência de vida na presença de qualquer problema ou mesmo a ausência dele: os pensamentos, o ambiente, o estado de humor, o comportamento e as reações físicas. Importante ressaltar que essas cinco áreas estão interligadas e cada aspecto diferente da vida e da experiência de uma pessoa influencia todos os outros. Considerando esses aspectos, fica claro que os pensamentos influenciam o comportamento, humor e até as reações físicas. Nesse sentido, o “positivismo tóxico” não é a solução adequada para as grandes questões da vida. Se tentarmos ter somente pensamentos positivos quando experimentamos qualquer emoção mais intensa, usualmente deixamos de perceber sinais importantes de que algo está errado. É recomendável, ao contrário de negar, considerar o maior número de ângulos possíveis de um determinado problema para encontrar novas conclusões e soluções mais adequadas.
3 - Quem já tem algum distúrbio ou tendência a transtornos psiquiátricos, a positividade tóxica é um desencadeador desses quadros preexistentes, como depressão, ansiedade etc...
Para o filósofo grego Sócrates, somente após a falsidade ser afastada é que a verdade pode emergir. A emoção é um sinal importante para a identificação de situações de vida que devem ser no mínimo pensadas. Negar as emoções dificulta a identificação e a percepção das situações estressantes. Vários estudos demonstram que o estresse continuado e não bem identificado e trabalhado adequadamente está relacionado à piora dos quadros depressivos e ansiosos, além da piora de outras condições de saúde. Fazendo um contraponto, é importante esclarecer que pessoas com tendência depressiva ou ansiosa tendem a focar excessivamente nos aspectos mais negativos, levando também a uma visão distorcida da realidade. O ideal seria contrabalançar. Devemos aceitar e ser verdadeiros com todas as emoções, não ter receio de expressar que se está triste, irritado, deprimido ou ansioso. Reconhecer que não está em um bom momento e saber que isso pode ocorrer com a maior parte das pessoas em algum período da sua vida. Recomendo que ao perceber que está adotando um tipo de comportamento de negação das emoções, de forma repetitiva e automatizada ou está evoluindo com sintomas clínicos limitantes, ou mesmo somatizações, é importante procurar ajuda especializada.