Jornal Estado de Minas

SAÚDE

Transtornos alimentares: relação deturpada com a comida e o espelho


Mudanças no padrão alimentar, relação confusa com a comida e sentimento de não aceitação para com o corpo são alguns sinais bem característicos que indicam que algo não vai bem com a mente do ser humano no que diz respeito à alimentação.



Trata-se de um quadro de transtorno alimentar (TA), distúrbio emocional em que a pessoa apresenta alteração na forma como lida com a comida e, também, consigo mesmo e o seu eu frente ao espelho.  

Nesta quarta-feira (2/6), comemora-se o Dia Mundial de Conscientização sobre os Transtornos Alimentares. E, por isso, especialistas destacam a importância de se falar sobre esses distúrbios, uma vez que as consequências podem ser graves, como limitação de atividades e até óbito.

Para a psiquiatra Maria Francisca Mauro, inclusive, a data não é sobre problematizar o que comer, mas alertar aos que sofrem com algum transtorno que isso não precisa ser um segredo.

“Informar e conscientizar não criam problemas, mas possibilitam que esses gatilhos emocionais não sejam escondidos ou que barreiras o impeça de obter autoconhecimento e tratamento. Nestes quadros, ocorre uma perturbação na relação do indivíduo com a comida, ou seja, ele come muito pouco ou come de forma descontrolada, e também na forma como percebe seu corpo, achando que está ‘inadequado’, o que torna ‘pior’ quando comparado a outras pessoas", diz.

Para além de uma perspectiva cultural em busca da magreza, pessoas com esses quadros têm prejuízos para estudar, trabalhar e se relacionar. "Portanto, não se trata de ‘uma vontade’ ou ‘fase’, mas sim de um transtorno que precisa ser tratado.” 

Segundo ela, as principais causas para que um quadro de transtorno alimentar se instale na vida de um indivíduo são ambientais – influência da família e cultura, genética e características do indivíduo, perfeccionismo, baixa autoestima e susceptibilidade a pressões externas. Portanto, esses distúrbios são tanto biológicos quanto das circunstâncias que cercam aquela pessoa. 





“Por exemplo, pais extremamente preocupados quanto a aparência e alimentação podem impor uma alimentação muito rígida aos filhos e voltada para serem ‘magros’. Assim, a pessoa cresce acreditando que seu ‘valor’ está na aparência, para além do que sente ou é. Dessa forma, podem, após uma ‘dieta’, encontrar uma forma de obterem ‘sucesso’ e serem reconhecidos pela ‘força de vontade’. O que pode até ser reforçado na família como uma capacidade de ser determinado”, comenta. 

Assim sendo, Maria Francisca Mauro ressalta que os que são mais vulneráveis a desenvolver transtornos alimentares assumem essa obtenção de ‘sucesso’ pelo emagrecimento como fator motivador da vida, uma verdadeira obsessão pelo corpo e peso determinado.

“Algo que passa a valer qualquer preço. A partir disso, há consequências, que se dão de acordo com o nível de adoecimento da pessoa, como intensidade da alimentação – comer muito pouco ou de maneira descontrolada – e a forma como se sente perante essa mudança.” 

“Poderá ocorrer uma variedade de desdobramentos, desde um gradativo de deixar de ir à praia, piscina ou algo que sinta que vai expor seu corpo, ou mesmo, perder o controle para comer até algumas perdas de momentos importantes. Ainda, pode se ter um limite de inanição completa em que a pessoa pode chegar a morrer por se negar a comer. Importante entendermos que as nuances dependem da invasão que a doença toma na vida daquela pessoa”, pontua a especialista. 




 
Maria Francisca Mauro, psiquiatra (foto: Datz Comunicação/Divulgação)
 

Nesse cenário, Maria Francisco Mauro destaca a importância de se haver o reconhecimento da doença para a inserção de um tratamento adequado e eficaz o quanto antes, a fim de evitar danos graves. Segundo ela, é importante destacar que os principais diagnósticos alimentares são os quadros de anorexia, bulimia nervosa e o transtorno de compulsão alimentar. Porém, há uma dezena de transtornos alimentares capazes de interferir, e muito na vida do portador da condição. Entenda: 

Anorexia: é uma restrição de comida intensa, em que a pessoa come cada vez menos e se sente cada vez mais “forte” por conseguir deixar de comer. O peso entra em uma faixa de risco menor que o mínimo do índice de massa corporal (IMC) saudável de 18 Kg/m2. De acordo com essa faixa de peso corporal, a anorexia pode ser classificada quanto a sua gravidade.

No entanto, para além do peso precisa ser avaliado todo o contexto emocional e físico dessas pessoas. Esse distúrbio pode ter início em uma “dieta” mais pesada ou em algum problema na vida daquela pessoa em que ela “focou” no seu controle de peso para se manter “bem”. Precisa-se observar como era o funcionamento anterior e como o adoecimento alimentar impactou na sua vida. 

Bulimia nervosa: é um quadro que envolve descontrole com a comida e episódios de compulsão alimentar, que podem ser com uma grande quantidade de comida ou mesmo em pequena proporção. Associado a estes episódios, a pessoa desenvolve comportamentos para “compensar” o que comeu. Assim, a pessoa pode passar a jejuar, vomitar, mastigar e jogar fora o que comeu e realizar exercícios e inserir o uso de medicamentos para poder “não ganhar aquele peso do descontrole” na rotina.



A bulimia nervosa pode ser causada por uma “pressão para emagrecer”, pelo ato de condenação familiar pelo não emagrecimento, pelo ambiente de pressão por corpo e forma física e o hábito de realizar dietas. 

Transtorno de compulsão alimentar: as pessoas que sofrem com esse transtorno comem em excesso e em grande quantidade, assim como no quadro de bulimia, mas não realizam nenhum comportamento compensatório posterior à compulsão alimentar. Grande parte procura tratamentos para emagrecer, têm um peso superior do que as pessoas com bulimia e seu desconforto com o corpo não é tão intenso. 

Transtorno purgativo: caracteriza-se por alterações do comportamento relacionadas a “compensar” o que foi ingerido. Nele, ocorre uma busca constante por tentar eliminar o que não conseguiu restringir ao comer. Neste quadro, a pessoa pode fazer uso de medicamentos para perder peso, ter episódios de vômitos, praticar exercício físico em exagero ou alguma forma obsessiva que prejudica a sua rotina e cause sofrimento.  

Síndrome do comer noturno: neste quadro alimentar, a pessoa chega a ingerir em torno de 75% da sua ingestão calórica no período da noite. Há relatos de pessoas que ao longo do dia não têm fome, mas quando chega determinada hora da noite há uma necessidade de comer constante, de forma exagerada. Não há episódios de compulsão alimentar. Verifica-se dentro dos sintomas emocionais associados à depressão, baixa qualidade de sono e uma dificuldade para regularizar suas refeições ao longo do dia. 





Conforme a psiquiatra, há, também, alguns outros transtornos, não tão comuns, que ainda não são considerados como diagnósticos. Confira:  

Adição por comida: “Algumas pessoas se dizem ‘viciadas em comida’, como se tivessem uma busca ‘cega’ por alimentos, sem limites, e sem poder viver sem determinado tipo de comida. Elas afirmam que não conseguem se controlar mediante alguns grupos de alimentos, quando não têm acesso a eles ficam irritadas ou mesmo sentem-se mal emocionalmente. Na clínica e cientificamente, a adição por comida ainda está sendo mais bem investigada para que possa se delimitar se ela é consequência de um comportamento secundário a outro diagnóstico alimentar ou outro quadro psiquiátrico, como a depressão”, explica. 

Ortorexia: “A ortorexia é um termo grego que remete a um ‘comer correto’. Neste quadro alimentar, pode ocorrer um foco demasiado da pessoa em somente se alimentar de determinados alimentos, os quais acredita que são saudáveis. Entretanto, esta rigidez pode determinar uma verdadeira obsessão por comer daquela forma e dentro daquela crença. Ainda é um termo que tem controvérsias dentro do meio acadêmico, no entanto, cada vez mais é usado para configurar este tipo de comportamento alimentar.” 

Beliscamento: “Consiste em comer de forma distraída pequenas porções fora das refeições planejadas ou dos lanches, com ou sem descontrole alimentar. Este interesse se deve pelo aumento das cirurgias bariátricas ao redor do mundo e o impacto que este comer pode ter em um retorno de peso pós-cirúrgico. Alguns estudos vêm delineando que, para além de um aumento de peso, este comportamento também pode ser um marcador de ‘mais algum’ sofrimento emocional, como a depressão ou ansiedade”, diz. 

Vigorexia: “Reporta-se a um comportamento obstinado por uma busca de um corpo atlético, em que este se torna uma obsessão e limita outros interesses da vida daquela pessoa. É usado para enquadrar pessoas que, além dos benefícios da saúde do exercício, passam a realizá-lo de forma obsessiva, principalmente a musculação e uso de ‘medicamentos associados’, em busca do que acreditam ser o corpo perfeito. Há casos que chegam a colocar a saúde em risco para obter resultados que acreditam que os tornará mais felizes.” 

Drunkorexia: “Esse termo é utilizado para caracterizar um comportamento alimentar restritivo, em que a pessoa restringe o que vai comer para poder utilizar suas calorias permitidas para o consumo de álcool. Consequentemente, fica exposta a maiores riscos, como a embriaguez e um uso nocivo do álcool. Comportamento muito comum entre jovens com anorexia ou bulimia, em que passam a não comer para beber. Não constitui um diagnóstico isolado, mas pode ser agravante em comportamentos de risco destes quadros alimentares.” 

Fatorexia: “Esse termo é utilizado para enquadrar de forma leiga algumas pessoas que têm obesidade, mas não conseguem perceber seu tamanho corporal dentro da sua proporção real. Tem-se uma corrente de pessoas que relatam que seria o inverso da ‘anorexia’, mas o relatado por quem passa por esse transtorno é que somente em algum momento você percebe que está com um tamanho maior. Para poder avançar como uma categoria, ou agrupamento de pessoas que possivelmente sofrem com esta questão, precisa-se descrever melhor o que sofreriam e o que teriam sofrido de prejuízos. Ainda muito controverso”, comenta. 





CURA E PREVENÇÃO 


A dúvida que fica é: afinal, há cura? Ou seja, é possível se ver livre do transtorno alimentar? A resposta é sim, conforme a psicóloga Fabiane de Faria. “É possível, mas mesmo assim o paciente deve estar sempre alerta para que esses padrões de comportamentos não retornem caso aconteça algum fator externo na sua vida. Por exemplo, a pessoa está vivendo de forma saudável após o tratamento, mas a mãe ou pai morrem. O paciente se sente muito nervoso, desamparado e começa novamente a ter padrões compensatórios da emoção na comida.” 

“A manutenção é sempre mais fácil quando o paciente está confortável, mas quando existe alguma crise na sua vida, ele deve se manter em alerta para não retomar comportamentos que seriam um gatilho para o transtorno”, afirma. 
 
(foto: Datz Comunicação/Divulgação)
 

Nesse cenário, o atendimento médico é de suma importância, segundo a psicóloga. Isso porque é o psiquiatra o principal responsável pelo diagnóstico do transtorno – normalmente feito com base em relatos e em exames físicos e psíquicos do paciente.

Além disso, é o especialista mental que irá ditar o melhor tratamento e ajudar no controle emocional. Fabiane de Faria, inclusive, recomenda que a pessoa busque ajuda sempre que perceber pensamentos desajustados em relação a imagem corporal e padrão alimentar. 





“Está tudo bem fazer uma dieta, mas quando você não consegue flexibilizar e, por exemplo, falta no aniversário de uma amiga, é hora de procurar ajuda. Sempre que os comportamentos forem limitadores, estamos precisando de ajuda. Também é importante escutar as pessoas a nossa volta. Afinal, se todo mundo te fala o contrário do que você está achando sobre seu corpo, porque só você estaria certo?”, diz. 

A psicóloga destaca, ainda, a importância de buscar uma relação saudável com corpo desde sempre, a fim de evitar o aparecimento dos transtornos. “A prevenção acontece de forma natural, quando temos uma relação saudável com nossa vida alimentar. Nossa alimentação e nosso corpo é mais uma parcela da nossa vida, junto com outras coisas, como profissão, vida familiar, entre outros. Dessa forma, o nosso comportamento e pensamentos não devem ser centralizados no nosso corpo ou na nossa alimentação.” 

*Estagiária sob a supervisão da editora Teresa Caram