“Tenho meus limites. O primeiro deles é meu amor-próprio.” Começar com Clarice Lispector esta reportagem diz bem sobre o recado de hoje do Bem Viver aos seus leitores. A recomendação é que todos saibam se amar, se respeitar e, fundamentalmente, se aceitar com as qualidades e defeitos inerentes ao ser humano.
Mas o que ocorre, muitas vezes inconscientemente, é as pessoas se maltratando, sendo tóxicas para elas mesmas ao se verem no espelho e se menosprezar, diminuir, se acharem incapazes, fracas, medrosas, incompetentes... Com comportamento autodepreciativo, se esquecem de que o amor a si mesmo, como todos os amores, tem de ser cultivado.
Ao alimentar uma imagem distorcida, enviesada e crítica excessivamente de si mesmo, abre-se uma porta para sentimentos que machucam. O poeta egípcio Constantino Cavafis, sabiamente, constatou: “Não há navio que o leve de você mesmo”. É impossível fugir de você, por isso tem o livre-arbítrio para mudar o que é possível e seguir com o que não é. Conviver com a imperfeição é perfeito. É o que traduz e reflete o Homo sapiens.
Dizer para você “nossa, como sou burro”, “como sou feio”, “não faço nada certo”, “sou um fracasso” é um exagero e uma atitude dura demais. Muitas vezes, é uma defesa, uma proteção: critico-me antes que os outros o façam. Esses diálogos internos nocivos só o faz perder e sofrer.
É uma distorção de imagem. Você até tem direito a dias ruins, de se cobrar, se questionar, ficar em dúvida, frustrado. Mas que seja passageiro; se tornar comum é sinal de algo errado com a sua saúde mental.
Exaltar os próprios defeitos, colocar as qualidades em segundo plano, insegurança nas opiniões, dificuldade de aceitar limitações e até os elogios ou diminuir as conquistas são atitudes massacrantes que muitos repetem ao longo da vida. É necessário quebrar este ciclo. Não é fácil, mas possível. Exige um processo, é individual e particular.
APLAUSOS PARA A FUTURA MÉDICA
Mariana Pena, de 18 anos, estudante de medicina, revela que sua autoestima a compromete muito mais em relação ao psicológico e às suas ações do que em relação à aparência física. “Quando me olho no espelho, consigo ver várias características de que gosto muito, mas também comparo o meu corpo com as fotos que aparecem nas redes sociais, mesmo sabendo que meu corpo entra no padrão estético. Por causa disso, nunca achei que tinha problemas de autoestima, principalmente porque não gostar de uma coisa no corpo é supercomum. Não relacionava o meu sentimento de insuficiência frequente à dificuldade de me impor e à necessidade de agradar a todo mundo com a autoestima. Foi a partir das minhas sessões de terapia e do meu processo de evolução pessoal, que aconteceu na pandemia, que consegui perceber o quanto eu mesma me rebaixava de um modo tão natural.”
Mariana conta que, por mais que consiga perceber o quanto se desvaloriza, ainda sofre muito de baixa autoestima e tenta cada dia mais superar isso e se amar.
“Como a pandemia ocorreu durante a minha época de vestibular, e estava prestando para medicina, a minha evolução quanto à insuficiência e à necessidade de aceitação foi muito contrariada com a minha regressão na autocobrança excessiva e na diminuição das minhas conquistas. Um exemplo muito sólido foi quando tive a minha aprovação no primeiro vestibular que fiz. Passei na PUC-Minas, para medicina, em 11º lugar, e, mesmo assim, não me dei o direito de comemorar e aproveitar essa aprovação, porque, na minha cabeça, isso ainda não era suficiente, uma vez que ainda tinha mais três outros vestibulares para fazer, e um deles era o Enem.”
“Como a pandemia ocorreu durante a minha época de vestibular, e estava prestando para medicina, a minha evolução quanto à insuficiência e à necessidade de aceitação foi muito contrariada com a minha regressão na autocobrança excessiva e na diminuição das minhas conquistas. Um exemplo muito sólido foi quando tive a minha aprovação no primeiro vestibular que fiz. Passei na PUC-Minas, para medicina, em 11º lugar, e, mesmo assim, não me dei o direito de comemorar e aproveitar essa aprovação, porque, na minha cabeça, isso ainda não era suficiente, uma vez que ainda tinha mais três outros vestibulares para fazer, e um deles era o Enem.”
Agora, Mariana diz que fica triste em se lembrar de por que não foi capaz de comemorar tamanha conquista, digna de aplausos: “Consegui fazer com que fosse uma situação insuficiente para o meu ego. Até hoje, mesmo já cursando medicina e sendo capaz de perceber essa condição de baixa autoestima, sofro muito com essa autocobrança e com situações em que a preocupação com a opinião alheia se sobressai aos meus desejos. A baixa autoestima é um processo difícil de ser superado, principalmente porque ela engloba vários aspectos da autoaceitação e da autossuficiência. O que mais me ajuda a lidar com essa condição é saber que sofro de baixa autoestima e perceber que a maioria das situações que me sabotam são criadas por mim mesma”.
Todos precisam aprender a ser mais gentis consigo. A autoagressão, autopunição com as palavras, emoções e pensamentos negativos (aqui, deixo de fora casos graves como automutilação) são formas equivocadas de encarar a vida. É possível ser firme e dócil ao mesmo tempo. Então, como anda sua relação com o espelho? Como tem se avaliado? Tem comemorado seus feitos? Para Sigmund Freud, pai da psicanálise, a autoestima está diretamente ligada com o desenvolvimento do ego.
Em tempos atuais, a fragilidade do ego em lidar com as pressões externas e internas está presente na vida de muitos. Estar satisfeito com seu jeito de ser, pensar, com a aparência física não é simples. Buscar este equilíbrio demanda atenção, escuta, fala, vivência, respeito, empatia, gratidão, amor e tanto outros caminhos para não cair em armadilhas travestidas de culpa, medo, comparações, generalizações e opiniões próprias e alheias.
Para Cynthia Dias Pinto Coelho, psicóloga cínica e sexóloga, as pessoas que se desvalorizam sofrem com seus pensamentos, que podem limitá-las, amargurá-las, baixando suas energias e o bom astral, trazendo sempre a sensação de insuficiência. Não se trata de gostar de sofrer, mas de se perceber de forma negativa, pejorativa.
Em alguns casos, a autodesvalorização pode trazer consigo a morte de sonhos. Por se criticarem ou se desvalorizarem, acabam por não se sentir capazes nem merecedoras da felicidade plena e, por isso, abandonam as situações mais elaboradas, onde poderiam sentir-se realizadas.
Em alguns casos, a autodesvalorização pode trazer consigo a morte de sonhos. Por se criticarem ou se desvalorizarem, acabam por não se sentir capazes nem merecedoras da felicidade plena e, por isso, abandonam as situações mais elaboradas, onde poderiam sentir-se realizadas.
“O medo do novo e o sentimento de culpa também podem estar presentes, pois o sujeito não se sente capaz ou tem um medo inconsciente da frustração. E uma saída é sempre desqualificar o objetivo inalcançável, como a raposa, da fábula de Esopo, em 'A raposa e as uvas'. Por não alcançar as uvas, a raposa, numa atitude de desdém e de desprezo, diz que não vai comê-las porque elas estão verdes, quando, na verdade, ela não as alcança no alto da parreira por causa de sua baixa altura.”
OPORTUNISTAS QUE AGEM COMO COITADINHAS
Há um grupo, alertado por Cynthia Dias Pinto Coelho, de pessoas “oportunistas” que agem como coitadinhas para se dar bem: “Algumas pessoas se vitimizam para conseguir atenção e elogios, valendo-se da desvalorização de si mesmas como forma de obter ganhos secundários, como atenção, compaixão, benefícios financeiros e afetivos ou auxílios diversos. Elas assumem um comportamento de autodesvalorização para que o outro faça por ela aquilo que ela não quer fazer, por preguiça ou falta de vontade. Pode ser a criança que diz não saber o dever com frases como 'eu sou burra, não consigo aprender', para que alguém faça por ela a tarefa ou se sente ao lado para ensiná-la e fazer-lhe companhia. Ou quem se diz achar feia para ganhar elogios que lhe assegurem de sua beleza”.
Já Renata Feldman, psicóloga clínica, escritora e psicoterapeuta humanista com foco nas relações afetivas, traduz de maneira poética a dor da baixa autoestima: “Fechou a janela, tomou ar, foi se olhar no espelho. Vidro trincado, nudez revelada, algo se quebrara dentro dela. Não se reconheceu ali, parada, ensimesmada, sem saber o que pensar a seu próprio respeito. Chorou. Derramou sua dor sem música ou silêncio, sem maquiagem ou coragem, apenas chorou. Até embaçar o vidro. 'Espelho, espelho meu', nem sequer te sinto como meu. Não me aproprio de mim mesma, muito menos de você, pare logo com essa mania de me plagiar. Tudo o que ela queria era se olhar no espelho e parar de brigar com ele. Fazer as pazes, fazer graça, rir de si mesma um riso solto. Ajeitar o lado de fora porque o de dentro, só lamento. Queria abrir um sorriso mas a alma estava fechada pra balanço. Ranço. Ferida, moída, doía de tanto pensar. Sobrevivente de uma semente que não deu flor, catou o cobertor e tomou um copo de leite. Fome. Sede. Inanição. 'Espelho, espelho meu', há neste mundo alguém mais triste do que eu? Socorro, desse jeito eu morro. Chama a fada do dente, do cabelo, do coração, do corpo todo. Chama, urgente, um tanto de amor pra curar essa estima que caiu doente”.
E o escritor alemão Hermann Hesse, Nobel de literatura em 1946, nos presenteou com a seguinte lição de vida: “Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo”.