Ao destacar a tolerância, está em jogo a inclusão, fundamentalmente nas escolas, dos autistas. Tema precioso à psicanalista Maria Cristina Kupper, autora do livro “Arthur: História de um autista que viveu no final do século XIX”, da Editora Escuta, lançado em 2020: “As crianças que entram em contato com o autista aprendem a ver que há outros modos de funcionar, produz como efeito a tolerância em relação ao diferente, que vai se revelar no plano político inclusive. É um baita aprendizado.”
Por isso, a indignação de Maria Cristina diante de medida do presidente Jair Bolsonaro, em setembro de 2020, de criar classes especiais para crianças com transtornos de desenvolvimento, denominação ampla que inclui o autismo: “À época, fizemos barulho, fomos contra e, até onde acompanho, não está vigorando porque as crianças continuam indo às escolas regulares. Uma lei que não vai pegar. Realmente, é uma medida de grande retrocesso, assim como a homeschooling, ainda mais retrógrado, ao fazer a criança perder o contato com a escola, que é uma microssociedade que irá prepará-la para a sociedade futura”.
Para Maria Cristina, as relações entre as crianças, o aprender a conviver, é uma construção pessoal feita com os pares: “É a construção da personalidade psíquica. Brincar produz a construção de um modo de ser pelo contato de uma criança com outra criança, tem identificação e isso é insubstituível. A escola é muito importante, inclusive para os autistas, que aprendem coisas da infância sem os pais, aprendem quietinhos, a gente não vê, parecem que não estão olhando, mas aprendem, e isso só outra criança pode ensinar”.
As crianças que entram em contato com o autista aprendem a ver que há outros modos de funcionar, produz como efeito a tolerância em relação ao diferente, que vai se revelar no plano político inclusive. É um baita aprendizado.
Maria Cristina Kupper, psicanalista
Quanto aos professores, para a psicanalista, a melhor forma de engajá-los é apostar que os professores saberão lidar, deixá-los descobrir, assim como os pais fazem, claro, tendo um suporte, uma retaguarda da escola para conversar, fazer reajustes para que possam ter instrumentos e recursos para descobrirem os autistas. Ela enfatiza que é a forma mais eficaz.
Com a pandemia, a psicanalista conta que os autistas ficaram felizes com o mundo via tela: “Eles gostam da gente pela tela, sem a presença física, o que não quer dizer só deixá-los na tela. É um conforto para eles, protestam se precisam ir à escola, mas entram na rotina ao insistirmos. É importante dar a oportunidade, ter paciência porque aos poucos eles se acalmam. Se no início do ano não suportam o barulho do recreio, no fim estarão adaptados.”
Maria Cristina escreveu o livro em forma de diário e a história se passa no século 19. Segundo ela, além de gostar do período, era importante dar certa distância, para ficar mais fácil, palatável de enxergar e com liberdade para criar. E a história mescla fatos reais com imaginários: “É tudo misturado, detalhes, fragmentos. Não é nenhuma criança que tem hoje. Mas era importante ter verossimilhança para que o autismo se reconheça nas páginas do livro. Arthur começa a escrever? Como consegue? Estou apoiada em muitos escritores autistas pelo mundo, inclusive no Brasil.” E há um posfácio sobre o autismo no século 21, no qual a psicanalista destaca a teoria do prazer compartilhado, que lhe é cara: “O autista pode até sentir prazer, mas não sabe compartilhar.”
DIA MUNDIAL
No Brasil de agora, na bolha da polarização que parece ter entranhado em quase todas as searas da vida, Maria Cristina alerta que ela é fruto da intolerância, da educação que não formou as pessoas para a tolerância. Por isso, para ela, datas como o Dia Mundial do Autismo, celebrado em 2 de abril e criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2007, assim como o quebra-cabeça e o laço de fita com cores diferentes, serem dados como símbolos, são válidos, mas é preciso ficar em alerta.
“Grupos identitários são importantes porque defendem direitos que lhes são negados porque são excluídos e atacados. No entanto, é preciso prestar a atenção para não serem o oposto, já que tendem a ser intolerantes e reproduzirem o que sofreram anos a fio. Não pode responder intolerância com intolerância. Os grupos autistas têm fechamento e o principal é em relação à psicanálise. O que ocorre porque anos atrás, mais ou menos 1940, um psicanalista culpou os pais, mas na época revisou e declarou ter feito confusão entre causa e efeito. Isso foi há muito tempo, ficou no passado, mas alguns continuam apegados a isso. Ainda repetem a chamada 'teoria das mães geladeiras'. O livro é uma tentativa de desmistificar isso também”, afirma.
Maria Cristina é otimista com os avanços no Brasil no que tange à inclusão e mudança de olhar para os autistas. “No Brasil, o mais importante é que a participação de todos no movimento da inclusão está mais forte, até mesmo do que na França, país que acompanho de perto. Nossa taxa, antes da pandemia, era bem alta, 80% de crianças com TEA nas escolas. Fruto do trabalho de escolas inclusivas e de profissionais interessados em mudança.” A leitura do livro, mais do que recomendada, é uma maneira de cada um ter a sensibilidade de aceitar quem carrega a marca da diferença. E está tudo bem. É normal, todos somos diferentes.
SAIBA MAIS
Educação terapêutica
Em 1990, a professora Maria Cristina Kupper, dentro do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP, criou um centro de atendimento e pesquisas denominado Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. O centro teve como modelo a instituição Bonneuil-Sur-Marne, de Paris, descrita pela psicanalista francesa Maud Mannoni no livro “Lieu pour Vivre”, onde Maria Cristina estagiou. Hoje independente, o Lugar de Vida é um centro de educação terapêutica, conceito que a professora desenvolveu, que atende crianças e pais. Oferece ainda cursos de formação e dá assessoria a serviços públicos e escolas privadas: https://lugardevida.com.br/.