Entre as teorias do desenvolvimento cognitivo e da inteligência, aquela considerada mais relevante pelos especialistas da área é a desenvolvida pelo suíço Jean Piaget (1896-1980), grande estudioso do desenvolvimento infantil. Segundo o biólogo, o aprendizado é construído pela criança durante sua relação com objetos e pessoas. Essa é a ideia-base da teoria chamada construtivismo.
Nesse ponto de vista, cada nova descoberta é assimilada e acomodada a partir do que a criança já conhecia do mundo, tornando-o cada vez mais amplo. Gradualmente, as relações se formam e tudo começa a fazer mais sentido. As ferramentas mentais para essa construção mudam conforme a faixa etária e também pe- rante o ambiente e os estímulos recebidos.
Para falar sobre como a criança percebe o mundo adulto, explica a doutora em educação pela Unicamp Flávia Vivaldi, é preciso entender como acontece o processo de desenvolvimento da inteligência do ser humano, desde seu nascimento. A partir da teoria piagetiana, um dos nortes é perceber como se comporta a pessoa que está diante de algo novo. No decorrer da infância, tudo é novo. “A interdependência sujeito/objeto é o que explica o desenvolvimento, mas é óbvio que existem fatores complementares que estão envolvidos nisso, em linhas gerais ligados ao processo de maturação do organismo. Precisamos do córtex cerebral para que haja o desenvolvimento das estruturas mentais", esclarece.
Francislaine Souza é mãe de Téo Souza Elias, de 9 anos, e Enzo Souza Elias, de 5. Ela conta que transmite valores importantes para os filhos por meio do diálogo, e em conexão com a escola, procurando abordar os assuntos que surgem no dia a dia tendo esses valores como referência, principalmente em cada ação, em cada atitude. “Tento mostrar o que está por trás da desigualdade, da política, busco ensinar o que é importante valorizar e quando as coisas são secundárias. É fundamental que eles saibam o quê e por que, explico cada coisa mostrando todos os lados da questão, e dando exemplos”, afirma.
Para o primogênito, a família é o que há de mais importante na vida, o que Téo considera ser pessoas que, além de estar ligadas por sangue, se ajudam umas às outras. Amigos são parecidos. “É quem se ajuda, mesmo não sendo da família, duas pessoas ou mais fazendo o que gostam, que têm coisas em comum, que se divertem juntas", descreve. O amor, na visão do menino, também passa por aí. “É quando duas pessoas se gostam, se amam, se unem, uma ajuda a outra, têm uma relação forte e, gostando de coisas parecidas ou diferentes, se respeitam.” Para Téo, felicidade é estar alegre e animado com o que aconteceu, está acontecendo ou vai acontecer – é o que ele toma como bom sentimento.
Sobre a natureza: "É onde estão os animais, é o ambiente natural, não tem poluição. É assim desde os tempos antigos, mesmo antes de existir cidades. A preservação é importante porque se destruir a natureza a gente não consegue viver”. Referindo-se à profissão dos pais, Téo diz que acha estranho e difícil – conta que não compreende muito bem o que eles falam, muitas vezes em outros idiomas. Mas sabe que é daí que vem o dinheiro. “Tem que trabalhar duro para conseguir dinheiro e comprar as coisas, mas não pode exagerar e comprar o que não precisa, e sim comprar as coisas para viver”, continua.
O momento em que duas pessoas começam a brigar é o que lembra, para Téo, a violência. E, logo, considera o respeito fundamental para não começar a violência. “Ter respeito é bom para não causar brigas, não fazer coisas ruins com os outros, sempre obedecer. Todos são diferentes. Se você não gosta, se não quiser brincar, tudo bem, não precisa brigar”, diz o garoto. A percepção dele sobre a igualdade é coerente com essa ideia. “Se é pobre ou rica, são pessoas, tem que respeitar.”
PRECONCEITO E POBREZA
Quando pensa no conceito de preconceito, Téo revela que não sabe bem o significado. Para ele tem a ver novamente com brigas e desentendimentos, ter pensamentos ruins e guardar rancor. E a pobreza? “É quando a pessoa não tem dinheiro bastante, não consegue crescer, não tem dinheiro para viver, fica na rua. Não devia existir”, diz o garoto. Sobre a solidão, para Téo signifca estar sozinho, sem ninguém, um sentimento ruim, que traz tristeza, vontade de chorar, pensamentos ruins, preocupações e medo.
Quanto à política, o menino percebe como sendo resumo de questões que interessam à cidade, as leis e os cidadãos, o que o presidente tem que fazer. Ele enxerga as redes sociais sob diferentes aspectos. “É bom e ruim. Podem te sacanear. Cuidado para não ser xingado ou ter os dados pessoais invadidos”, observa.
Na opinião de Téo, a pandemia de COVID-19 avançou sem controle porque as pessoas não se cuidaram e, por isso mesmo, a fala da importância da ajuda divina: "Deus é o criador de todas as coisas, pode fazer o impossível, e nos ajuda de vez em quando, como com os milagres que acontecem. Ter fé é a confiança que as coisas são possíveis, que você vai tentar até conseguir. É ter positividade."
O irmão Enzo fala da família com entusiasmo: “A família é que cuida das crianças, que dá comida boa para as crianças, dá segurança, tenta de tudo para fazer o bem e não o mal”, diz. Amor, pra ele, é significado de uma situação em que as pessoas não brigam, só ficam brincando. “Amizade é quando a pessoa está tentando brincar com a outra que não brinca, que não conhece e, quando consegue, viram amigos, sem brigar. No trabalho do meu pai, acho adorável ele conversar com os amigos. Também traz dinheiro, e eu amo dinheiro, quero ser rico na vida real”, confessa o caçula de Francislaine, sem esconder as risadas.
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
Segundo Piaget, o desenvolvimento cognitivo começa desde o nascimento e se divide em quatro fases centrais: sensorial, simbólico, concreto e formal. O mote da teoria é como se dá o equilíbrio do organismo em meio às novidades, um fenômeno essencialmente universal, porque ocorre em todos os indivíduos da espécie humana. Segundo Flávia Vivaldi, surge em qualquer tempo, em qualquer lugar do mundo, podendo sofrer alterações em função dos conteúdos culturais específicos e o meio em que se está inserido.
Nesse raciocínio, de acordo com a educadora, a teoria que explica o desenvolvimento da inteligência leva em conta dois elementos básicos: os fatores invariantes e os variantes. “Primeiro, aquilo que recebemos como herança, uma série de estruturas biológicas, sensoriais, neurológicas, que são constantes ao longo da vida, e que vão predispor o surgimento das estruturas mentais, considerando que o indivíduo carrega duas marcas inatas: uma tendência natural à organização e à adaptação, entendendo que a adaptação é o resultado da inteligência, e a inteligência em si, que se trata de dar respostas a novos desafios, e respostas que sejam adaptativas”, ressalta Flávia Vivaldi.
Entre os fatores variantes estão os chamados esquemas de ação e mentais que constituem aquilo que é generalizável, que é comum nas diversas ações, sejam físicas ou mentais. "Se o bebê desenvolve esquemas motores de pegar um objeto, esses esquemas vão ser cada vez mais reorganizados para que, a cada hora, ele consiga pegar objetos diferentes", exemplifica. "E o que essa teoria deixa à mostra? Que a inteligência não é herdada, é construída nesse processo interativo entre o sujeito e o meio ambiente físico e social onde está", acrescenta.
Tempo de descobertas por etapas
Enquanto bebê, o processo de assimilação de mundo acontece pelas sensações, percepções e movimentos. Não existem ainda os conceitos, fase que se estende pelos dois primeiros anos de vida da criança, explica Flávia Vivaldi, doutora em educação pela Unicamp. Devido à chegada da interação social, não só com os adultos que cuidam dela, mas também com outras pessoas que estão ao seu redor, a criança entra em uma outra etapa de desenvolvimento – agora, é capaz de representar mentalmente o objeto, mas o que esteja ali, perto dela.
“No segundo estágio do desenvolvimento está a capacidade de imaginar e pensar em coisas que não estão presentes. São os desenhos, imitações, jogos simbólicos, faz de conta, imagem mental e linguagem (dar nome ao que está em sua mente). Antes dos 7 anos, não há a compreensão de conceitos, mas a imitação daquilo que a criança vivencia no seu contexto acerca desses conceitos”, diz Flávia.
A condição muito mais refinada de percepção costuma surgir a partir dos 7 anos. Nessa fase, segundo a especialista, a criança consegue fazer muitas operações mentais, porém que ainda restringem a sua capacidade de compreensão a um universo mais concreto. No terceiro estágio de desenvolvimento, a resposta que dará para o mundo adulto é o que ela vivencia, não só pela imitação, mas pela lógica que já consegue imprimir pelas suas operações mentais. Por exemplo, o dinheiro é representado pela cédula, pela moeda, mas a noção de dinheiro mais abstrata ainda não existe.
“Ou uma criança que tenha vivido a violência na pele, traduzida em um ato de racismo, terá muito mais condições de compreender o conceito de racismo do que aquela que nunca sofreu esse tipo de violência. A elaboração do conceito está ligada ao que é vivenciado”, observa. É aí também que a criança passa a ter maior capacidade de se colocar no lugar do outro e entender conceitos morais de certo e errado, enquanto outros aprendizados se constroem a partir da observação e pela tentativa e erro.
A pré-adolescência chega, a partir dos 12 anos, quando, aí sim, existe a condição de abstrações mais refinadas. “Nesse estágio, o sujeito pensa por hipóteses, não tem mais a necessidade do concreto. Consegue inferir, pensar sobre coisas que são verbalizadas. A abstração que existe em conceitos como religião, pobreza, Deus, violência, entre outros, é muito mais possível de ser ampliada na sua capacidade de compreensão, porque cognitivamente passa a coordenar perspectivas que não são palpáveis, pode traduzir esses conceitos de uma forma muito mais abrangente e elaborada”, diz Flávia Vivaldi.
Exemplo que se dá
Nesse turbilhão, o adulto precisa entender que o exemplo não se dá somente pelo que se fala, mas principalmente pela forma como se age. Ter autonomia de pensamento, autonomia cognitiva, é um grande desejo, segundo Flávia.
Ter condições de coordenar diferentes perspectivas e tomar decisões com base em princípios que sejam de relevância pessoal e coletiva, amplia horizontes. Ela lembra que cada pessoa tem seu ritmo e esse tempo deve ser respeitado.
“Isso não pode ser rotulado como mais ou menos inteligente. Quanto mais a criança puder conviver com os pares, não apenas com os adultos, mais terá condições de coordenar diferentes perspectivas e fazer escolhas cognitivas, considerando princípios que sejam relevantes”, diz. “É tudo que a gente deseja, mas é preciso oferecer condições para que a autonomia do pensamento e a autonomia moral sejam desenvolvidas, e isso só acontece se fizermos o exercício do respeito mútuo e da cooperação”, acrescenta.
Dar liberdade ao pensamento não significa deixar a criança dizer ou fazer tudo o que quer. “É preciso ser um adulto vigilante no sentido de permitir reflexões, trazendo sempre valores que mediem essa relação para um caráter ético.”