Desde o momento em que um humano antigo inovador decidiu cozinhar sua carne na fogueira, há pelo menos 400 mil anos, até o advento da agricultura, de 10 mil a 15 mil anos atrás, as pessoas processam alimentos.
Nossos ancestrais faziam fermentação (essencial para o álcool e laticínios), moíam e assavam (pães e massas) e descobriram como conservar a carne salgando-a ou deixando em salmoura.
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O processamento de alimentos foi essencial para a expansão da civilização humana.
Mas como ele se tornou sinônimo de dietas com alto teor de gordura, açúcar e sal? E será que os alimentos processados %u200B%u200Bque consumimos hoje têm alguma semelhança com suas formas originais?
Cada uma das primeiras formas de processamento de alimentos mencionadas acima tem um propósito claro: cozinhar adiciona sabor e amacia os alimentos — tornando as raízes e legumes mais fáceis de mastigar e de se extrair nutrientes a partir delas.
Fermentar, moer e assar também tornam alguns alimentos mais acessíveis do ponto de vista nutricional e mais fáceis de digerir.
É muito difícil para nosso corpo extrair qualquer coisa útil de um grão de trigo, mas ao fermentá-lo para produzir cerveja ou moê-lo em forma de farinha, você consegue obter um alimento rico em calorias.
Técnicas como o salgamento e a pasteurização tornam os alimentos mais seguros e prolongam sua duração.
Isso permitiu que os humanos viajassem mais longe e sobrevivessem a invernos frios ou períodos de fome severa.
Ainda fazemos isso hoje. Grande parte do processamento de alimentos consiste em tornar os alimentos mais seguros e duradouros, o que é melhor para o meio ambiente, pois significa menos desperdício de comida.
Mas é claro que alguns alimentos processados %u200B%u200Bfazem muito mal à saúde. Em que momento isso aconteceu?
O 4º Conde de Sandwich talvez seja mais conhecido por dar seu nome ao que conhecemos hoje como duas fatias de pão com um recheio no meio. No entanto, também tem o dedo dele em algo básico nas refeições — o refrigerante.
As bebidas com gás surgiram na Grã-Bretanha há 250 anos. O conde de Sandwich detinha então o título de primeiro lorde do almirantado e supervisionava o bem-estar da Marinha britânica.
As viagens marítimas no século 18 eram lentas e terríveis. Podiam durar meses longe da terra e do suprimento de água e alimentos frescos.
As tripulações dependiam de seus suprimentos.
A água podia ser armazenada por semanas ou meses no porão (a dessalinização era uma ciência incipiente e ainda não era amplamente usada no século 18), onde apodrecia e ficava rançosa. Não é de se admirar que os marinheiros preferissem rum.
Em busca de uma maneira de tornar a água potável vencida mais palatável, Sandwich recorreu ao químico Joseph Priestley.
A água com gás natural de nascentes já era consumida por seus benefícios à saúde — Priestley queria fabricar a sua própria.
Em um panfleto de 1772, Priestley descreveu um método de produção de 15 minutos de um recipiente de "água impregnada com ar fixo [dióxido de carbono]".
Ele acreditava que a água com gás (carbonatada) — que ele chamava de água medicinal — poderia prevenir o escorbuto:
"Em geral, as doenças nas quais a água impregnada com ar fixo provavelmente serão úteis são aquelas de natureza pútrida", ele escreveu.
Ele estava errado. Mas esbarrou com algo razoavelmente útil: a água gaseificada é ligeiramente ácida, o que significa que é um pouco antimicrobiana e, portanto, fica rançosa mais lentamente do que a água fresca.
"As bactérias não são grandes fãs do ácido carbônico", diz Michael Sulu, engenheiro bioquímico da Universidade College London (UCL), no Reino Unido.
Com a aprovação do conde de Sandwich, a água medicinal de Priestley foi um sucesso.
Impulsionadas pela inovação, as águas medicinais decolaram. Os primeiros exemplos bem-sucedidos incluíam a água tônica, feita com quinino da casca da árvore da cinchona, que agia como um antimalárico.
A água tônica com quinino foi amplamente consumida pelos europeus a partir de meados do século 19 por esse motivo (embora as propriedades antimaláricas da casca de cinchona fossem conhecidas havia séculos pelos indígenas sul-americanos).
O que aconteceu a seguir é uma história semelhante a de muitos dos alimentos altamente processados %u200B%u200Bnas prateleiras do supermercado.
Os refrigerantes modernos com alto teor de açúcar são "fortemente vilipendiados", diz Sulu — bem longe de suas origens benéficas.
Da mesma forma, os cereais matinais estão muito distantes dos grãos que nossos ancestrais moíam, e o chocolate, as carnes, os laticínios e até mesmo o sorvete moderno seriam irreconhecíveis para nossos ancestrais.
Então, como chegamos a esse ponto?
A busca por extratos naturais para fortificar as bebidas com gás no século 19 levou a águas medicinais ainda mais exóticas. Várias empresas começaram a produzir bebidas estimulantes e cafeinadas com extratos da noz de cola.
A Pepsi-Cola, originalmente inventada na década de 1890 e chamada de "Brad's Drink", era um digestivo.
Acredita-se que seu nome seja uma referência à pepsina, uma das enzimas digestivas, ou à dispepsia, o nome científico da indigestão, e ao sabor de cola, embora a receita não contivesse noz de cola nem pepsina.
A Coca-Cola, aromatizada com noz-de-cola e folhas de coca, foi anunciada pela primeira vez como um "tônico cerebral ideal" no fim do século 19.
A combinação de cafeína e folhas de coca a tornava uma bebida estimulante.
As folhas da coca são mastigadas cruas ou preparadas no chá para liberar seus agentes psicoativos por indígenas sul-americanos há séculos. (A Coca-Cola diz que a bebida nunca conteve cocaína, que pode ser derivada de folhas de coca).
À medida que os consumidores começaram a pedir sabores, cheiros e cores consistentes, e as regras e regulamentos passaram a proibir certos ingredientes, os fabricantes de alimentos tiveram que adaptar seus produtos.
Foi a demanda por um condimento consistente de tomate, por exemplo, que levou ao desenvolvimento do ketchup da Heinz.
O sabor e a textura de um produto podem ser recriados com um extrato em vez de um ingrediente integral? Os avanços na química estavam tornando isso possível. E podiam deixar os alimentos mais baratos.
"O problema é que, no último meio século, um tipo diferente de processamento de alimentos foi desenvolvido", diz Fernanda Rauber, epidemiologista nutricional da Universidade de São Paulo (USP), sobre o que hoje chamamos de "alimentos ultraprocessados "
"Estas substâncias não seriam encontradas em nossa cozinha. Normalmente, contêm pouca ou nenhuma proporção de alimentos de verdade."
"Muito comumente, eles usam o que chamamos de aditivos cosméticos — cores, sabores, espessantes, emulsificantes, agentes gelificantes — para melhorar as propriedades sensoriais dos alimentos, para dar algo à substância que de outra forma não teria gosto de nada, apenas de amido puro", diz Priscila Machado, nutricionista de saúde pública da Universidade Deakin, em Geelong, na Austrália.
"O problema quando você pensa sobre essas substâncias é que isoladamente elas não adicionam nada particularmente nutritivo à comida. O alimento é mais do que a soma dos nutrientes que ele contém. Não há antioxidantes e fitoquímicos que encontragmos em alimentos integrais, se eles são retirados no processamento."
Mesmo quando os nutrientes são adicionados de volta, como cereais fortificados com ferro ou fibras, a comida pode não ser tão saudável quanto parece. Nutrientes adicionados não funcionam tão bem quanto aqueles encontrados em alimentos integrais, diz ela.
"São esses fitoquímicos — flavonoides, polifenóis — que oferecem benefícios à saúde", concorda Eileen Gibney, vice-diretora do Instituto de Alimentos e Saúde da University College Dublin, na Irlanda.
Se você checar a lista de ingredientes da Coca-Cola moderna, encontrará apenas "sabores naturais", cuja fórmula é segredo.
A Coca-Cola ainda continha extratos da folha de coca até pelo menos 1988, mesmo que a cocaína tenha sido removida muito antes.
A bebida fez sucesso por causa do sabor de coca, não por causa de seu efeito "tônico".
Sulu afirma que parte do processamento moderno de alimentos é feito por motivos estéticos, e não pelo motivo original, que pode ter se tornado redundante.
Assim como as bebidas com gás, o chocolate moderno está muito distante de sua versão original.
O chocolate é originário da antiga Mesoamérica, onde os grãos de cacau eram fermentados como uma bebida quente de sabor amargo.
Sabemos de uma maneira geral como esse chocolate quente era preparado ao analisar camadas de resíduos absorvidos no interior das cerâmicas dos antigos maias: os grãos de cacau eram moídos, mas não em um pó seco como poderíamos esperar hoje — e, sim, em uma polpa oleosa.
Após a fermentação, os óleos ficariam na parte de cima da bebida, e os grãos afundariam, criando camadas no interior dos copos.
Representações de consumidores de chocolate quente nas obras de arte dos antigos maias também revelam que a bebida pode ter sido destinada ao uso comum em cerimônias.
Os astecas foram responsáveis pela inovação seguinte em termos de chocolate, optando por tomar seu chocolate frio e temperado.
Separar a gordura da manteiga, moer e torrar a massa de grão seco para produzir cacau em pó foi uma inovação que veio depois e pode ter facilitado o armazenamento e transporte.
Ao secar o pó, o chocolate poderia ser comercializado como mercadoria ou transportado de navio pelos mares. Não precisava mais ser preparado apenas fresco para cerimônias.
Os químicos começaram a experimentar novas reformulações para o chocolate à medida que o mercado de confeitaria crescia.
Mas só na década de 1840 que alguém tentou produzir em massa uma barra de chocolate sólida misturando cacau em pó, açúcar e manteiga de cacau.
Hoje, a adição de açúcar contribui para muitos dos problemas de saúde que as pessoas associam aos alimentos processados %u200B%u200B(eles representam mais de 10% do total de calorias das pessoas).
Mas nem sempre foi o caso. O açúcar foi por muito tempo um produto de luxo.
Então, por que o açúcar refinado é adicionado em tanta quantidade aos alimentos processados, e por que não usamos mais açúcares naturais, como a frutose?
"Açúcares obtidos por síntese química, como xarope de milho rico em frutose e açúcar invertido, são ingredientes comuns de baixo custo em alimentos ultraprocessados", diz Rauber.
"Os açúcares são usados %u200B%u200Bem grandes quantidades pela indústria para dar sabor a alimentos que tiveram seus sabores intrínsecos processados %u200B%u200Be para mascarar sabores desagradáveis %u200B%u200Bno produto final. Esses açúcares não são usados %u200B%u200Bapenas como adoçantes, mas têm funções tecnológicas importantes nos alimentos, proporcionando textura, volume, cor e atuando como conservantes."
É verdade que as frutas contêm muito açúcar natural, "mas (o nível) é surpreendentemente baixo para a doçura que você obtém", diz Sulu.
Em comparação, os produtos de confeitaria processados %u200B%u200Bcontêm mais açúcares para alcançar a mesma doçura.
Grande parte do açúcar está lá para encorpar os alimentos processados.
O açúcar, a gordura e o sal têm sido tema de campanhas de saúde pública, mas, como diz Rauber, nem sempre é simples retirá-los de alimentos em que cumprem uma função química.
Veja, por exemplo, as emulsões adicionadas a alimentos com baixo teor de gordura para dar a sensação de gordura na boca, que é amplamente considerada como o "sexto sabor".
Podemos precisar nos acostumar a mais processamento — mas por razões de saúde pública — no futuro, conforme encontrarmos maneiras de manter os alimentos frescos e com sua melhor aparência sem esses ingredientes.
Encontrar novas maneiras de estruturar os alimentos será uma forma importante de processamento de comida no futuro, concorda Gibney, à medida que avançamos em direção a uma dieta à base de plantas.
"As dietas à base de plantas realmente vão desafiar o conceito de que vamos processar menos", diz ela.
"A natureza de ter que extrair nutrientes das plantas para criar produtos que os consumidores vão querer que tenham o mesmo sabor, textura e cheiro significará que precisaremos processar alimentos."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
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