Jornal Estado de Minas

COMPORTAMENTO

Relação entre irmãos: caminhos opostos, rotas de colisão



A relação entre irmãos é um laço rico para estudos sobre o comportamento humano e como afeta a vida de cada um, da família e, por consequência, do universo social em que está inserida.



Com sentimentos díspares, esse relacionamento se equilibra entre a harmonia e o desassossego, e em plena pandemia, que mexeu com todas as relações pessoais, aflorou em muitos lares o acirramento entre irmãos revelando questionamentos, discussões, cobranças, inveja, disputa, ciúme e desavenças. Questões que têm de ser apaziguadas para manter o controle da sanidade e garantir o melhor convívio possível. O que é saudável para todos.

A disputa entre irmãos, seja por ganhos afetivos ou materiais, sempre existiu. O marco mais conhecido pode ser retratada pela história de Caim e Abel, relatada no início da “Bíblia”, no livro de Gênesis. Consta que após serem expulsos do Jardim do Éden, Adão e Eva tiveram seus dois primeiros filhos: Caim e Abel. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim lavrador da terra.

De acordo com as escrituras, naquele tempo, eles praticavam atos de adoração ao Senhor sacrificando parte de suas produções. Em suas oferendas, Abel sempre agradava mais que Caim, já que oferecia sempre a melhor ovelha. Enquanto Caim o que restava da sua colheita. A história relata que Caim invejou tanto o irmão que o matou, o que teria sido o primeiro homicídio da humanidade.





Na vida real, nos consultórios de terapia, o que profissionais da saúde relatam é que irmãos e irmãs, que por uma razão ou outra são mais bem-sucedidos seja na vida profissional, social, intelectual, financeira, que os outros, cada um por uma circunstância diferente (seja por adoção, casamento, gerenciamento da vida, melhor trabalho etc.), se estranham, competem, se culpam e fazem cobranças.

Ou seja, em outra releitura, pode-se dizer que a síndrome de Caim e Abel existe até hoje. Um irmão ou irmã tem algum privilégio em relação ao outro e a crise está montada, inveja, ciúme, acusações, expectativa de ser ajudado... Problema que atinge muitas famílias.

Ana Maria, nome fictício, conta que sua história com os irmãos é o retrato fiel desta desarmonia. “Somos quatro irmãs. Sou a caçula. Com 8 meses, meus pais se separaram, eram hippies e não tinham dinheiro ou responsabilidade para nos criar. Além de problema com bebida e droga. Assim, cada filho foi para a casa de um parente. Fui morar com meus tios e três primos, que se tornaram meus pais e irmãos. De todas, a família que me recebeu era a que tinha melhor condição”.





Resultado? Ela conta que estudou, fez faculdade, passou em concurso público, tem casa, carro, viaja e, se não tem luxo, vive de maneira confortável. “Uma irmã casou, teve quatro filhos, é do lar, feliz e não reclama de nada, adora a vida. Outra nunca terminou de fazer nada que começou, vive no mundo da lua, não é formada e, ao viver com minha avó, se acomoda em administrar dinheiro que vem de um cartão de pensão da nossa avó. E há uma outra, a mais problemática, que tem três filhos, cada um de um casamento, em uma época enveredou para a droga, tem dificuldade de encontrar trabalho, começa um negócio e não dá prosseguimento. Não tem tempo ruim para ela trabalhar, mas quer tudo sempre muito e rápido e cobra dos outros por não conseguir.”


VIDA FÁCIL? 


Assim, conforme Ana Maria, as irmãs vivem de forma diferente. “Tenho trabalho e família estruturada, a outra tem família com marido e não precisa trabalhar, a outra se apega a um cartão de pensão e a outra vive de altos e baixos constantemente e, em vez de ver minha posição como positiva, me culpa pelo seu fracasso. É como se nós três estivéssemos bem, a vida muito fácil e ela não. Só age como boazinha quando precisa de um favor. Ela me faz sentir culpada por ter tido pais de criação que me deram carinho. A diferença entre nós, acredito, é a visão da vida. A forma como cada uma olha o cavalo arriado”, afirma.


“A minha família é diferente, mas ao meu ver todas tiveram oportunidades de estudo, eu vivo do meu trabalho e do meu estudo. Minhas irmãs desistiram de estudar, não persistiram, não pensaram no futuro. Às vezes, fio chateada, não tenho raiva ou revolta, mas é aquela situação. Compro uma churrasqueira e quero receber todos no fim de semana. Sei que não vou poder chamar uma das irmãs porque será um drama, ela vai reparar, comentar e, assim, vou evitando a convivência mais próxima”, diz.





Ana Maria confessa que lidar com esta situação já a incomodou mais, mas ressalta que o bom de chegar aos 40 anos é que a visão de vida se torna libertadora, passa a não dar importância ao que não precisa. “Tem ainda a espiritualidade e a terapia que, simplesmente, mudaram a minha vida. Fiz por anos e já até recebi alta. É um investimento para a morada da alma.”

ECONOMIA DE AFETO 


Psicólogo Ronaldo Coelho diz que, se quando criança há disputa entre irmãos, na vida adulta é possível se libertar de sentimentos da trama infantil criar uma relação de apoio mútuo, torcendo pelo sucesso um do outro (foto: Arquivo Pessoal)
O psicanalista e psicólogo Ronaldo Coelho destaca o papel da família, para além dos laços consanguíneos, que se faz pela confiança na ajuda mútua, no amparo nos momentos difíceis e delicados.

“A família, do ponto de vista simbólico, tem a ver com saber com quem contar, quem vai estar lá quando precisar. Costumo utilizar a metáfora de uma cena de circo onde na vida somos trapezistas e, desse modo, estamos o tempo todo nos lançando, quando não sendo lançados pela própria vida. A família seria a rede de proteção que fica embaixo para impedir que a pessoa se esborrache no chão, que ela sobreviva, caso não consiga alcançar o outro lado, é o amparo. Não à toa usamos sempre o termo “rede de proteção” ou “rede de amparo”. A família seria essa rede por excelência. Na sua falta, entraria o estado com seus aparelhos.”





No entanto, Ronaldo Coelho lembra que essa rede nem sempre está com todas as pontas amarradas. É o caso de um dos irmãos que não quer ajudar nos cuidados com o pai doente, o que tem mais dinheiro, mas não quer dar mais, e assim por diante.

“Sempre estaremos, neste ponto, falando da economia dos afetos. É claro que em uma situação difícil é perfeitamente possível um acordo entre as partes: de quem pode dar mais tempo, quem pode dar mais dinheiro ou outra coisa que for preciso. O que passa a ser verdadeiramente complicado é quando se percebe que outro não quer ajudar por economia dos afetos, e não pela falta de recursos materiais ou de tempo, por exemplo. Isso com certeza irá gerar mágoas e conflitos que podem resultar ou não em discussões, mas certamente será decisivo para o rearranjo das expectativas e dos laços familiares.”

Com o passar do tempo, o psicólogo enfatiza que é esperado que todos os seres humanos amadureçam. Se quando pequenos os irmãos vivem uma disputa pelo amor e atenção dos pais, permeado por sentimentos de inveja e ciúmes, é esperado que com o tempo (e porque não com a terapia?) eles possam cuidar desses sentimentos mais primitivos e conseguirem se libertar dessa trama infantil para seguirem seus respectivos caminhos.



“Quando isso ocorre, é possível verificar uma relação de apoio mútuo, os irmãos torcem pelo sucesso um do outro, a postura colaborativa toma o lugar da antiga competição. A família tende a ser concebida como um 'time'. Contudo, assim como em todo time, não há a possibilidade de se ter uma equipe realmente confiável se uma das partes não entendeu, seja cognitiva ou afetivamente, que ela também é peça fundamental para que o jogo aconteça, para que o outro também possa confiar.”


LIMITES 

Psicólogo avisa que há uma falsa ideia de que os limites são colocados para o outro, mas na verdade eles são colocados para nós mesmos (foto: alex starnes/Unsplash)


Por isso, Ronaldo Coelho enfatiza que é necessário saber quem é que está ao seu lado na batalha e como você pode, afinal, contar com essa pessoa. Segundo ele, a única forma de evitar abusos numa relação é estabelecendo limites. Os limites, contudo, não são para o outro, e sim para si mesmo. Tem mais a ver com os seus limites, com o que pode fazer, até onde é saudável ir. Desse modo, ao outro cabe apenas ser comunicado.

“Há uma falsa ideia de que os limites são colocados para o outro. Na verdade eles são colocados para nós mesmos. É reconhecendo nossos limites que podemos comunicá-los de forma firme ao outro e nos sentir em paz com isso. É comum acontecer de se conceber o limite como o afastamento ou o rompimento de uma relação. Mas não é. Os limites são a condição do estabelecimento de uma boa relação, uma relação que não seja abusiva, que seja sustentável, onde ninguém se sinta lesado”, diz.





Ronaldo Coelho afirma que é evidente que irmãos de sangue não têm nenhuma obrigação de gostar um do outro. “Porém, é muito difícil não ter em quem confiar. Dizem que os amigos são a família que escolhemos formar. No caso de não ter nascido numa família que possa fazer a função de sê-la, temos a possibilidade de formar a nossa. Porém, vale sempre lembrar: para que esse time funcione você terá que fazer sua parte nesta história. Só fica sozinho no mundo quem não entende que a reciprocidade é o lema das relações que realmente valem a pena na vida.”

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