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Estado de Minas Doença moderna

Pandemia acentua dependência tecnológica e distúrbio pode surgir

Isolamento social forçou uso de smartphones e tablets como mecanismo para relacionamento, abrindo caminho para a nomofobia


03/10/2021 06:00 - atualizado 02/10/2021 18:41

A nomofobia é considerada um transtorno da sociedade digital contemporânea
Estar o tempo inteiro conectado não deixa de ser uma característica inerente aos modos de viver da era moderna (foto: FunkyFocus/Pixabay )
A nomofobia é considerada um transtorno da sociedade digital contemporânea. Estar o tempo inteiro conectado não deixa de ser uma característica inerente aos modos de viver da era moderna, avalia a psicóloga Ana Carolina Gonçalves, mas ficou ainda mais em evidência com o distanciamento social exigido entre as medidas de enfrentamento da COVID-19. Boa parte das pessoas tem mantido relacionamentos e modos de comunicação exclusivamente por meio de smartphones e tablets.

A psicóloga Ana Carolina Gonçalces faz alerta sobre a nomofobia
Dependência do celular e reação à falta do aparelho são sintomas essenciais ao diagnóstico da doença, segundo a psicóloga Ana Carolina Gonçalves (foto: Arquivo pessoal)
O cerne da questão, diz Ana Carolina, é que os recursos que smartphones e tablets oferecem proporcionam prazer e recompensa. “Quando algo nos proporciona prazer, há liberação de dopamina no cérebro, e é nossa tendência instintiva querer mais, para que a sensação de prazer seja novamente sentida”, ensina a psicóloga.

Ela alerta que o hábito começa a ser prejudicial quando o uso do celular passa a ser a única fonte de prazer. “Quando todas as outras formas de obter prazer são substituídas pelo celular, quando o sujeito se interessa e se dedica mais às relações e situações virtuais do que às presenciais.” Nesse ponto, há um descontrole tendo em vista que a interação social presencial é trocada por aquela virtual, a que oferece mais prazer. “A maneira de retomar o equilíbrio é justamente permitir-se momentos de interação social presencial, diminuindo gradativamente a interação social única e exclusivamente pelo virtual”, orienta.
 
A jornalista Kalrhen Braga, de 40 anos, leva na bolsa tudo em dobro para não ficar sem o celular. Para onde vai, tem à mão dois carregadores de tomada, dois carregadores portáteis, duas baterias extras, dois fones de ouvido e dois chips. No trabalho com redes sociais e comunicação, sobretudo depois da crise sanitária, a casa virou escritório e tudo é feito pelo aparelho – envio de e-mails, mensagens e produção de textos, entre muitos outros afazeres. “Hoje, o celular é meu segundo filho”, compara.

Kalrhen se recorda da aflição que viveu num dia em que a bateria do celular chegou ao fim durante o percurso para uma reunião. Ela estava atrasada e não conseguiu avisar os participantes do encontro. “Quase perdi o cliente. Ainda bem que ele compreendeu”, lembra ela, reconhecendo o sentimento de aflição. Por mieo do celular, Kalrhen  se comunica com a família, os amigos, no Brasil e no exterior, acompanha as notícias do futebol e guarda os registros da filha. Com o dia corrido e as demandas do trabalho, admite que as interações virtuais se sobressaem aos encontros cara a cara. “Dificilmente me encontro com as pessoas”, afirma.
 
 
Celular é segundo filho para a jornalista Kalrhen Braga
A jornalista Kalrhen Braga leva na bolsa tudo em dobro para não ficar sem o smartphone (foto: Arquivo Pessoal)
Hoje, o celular é meu segundo filho”

 
Kalrhen Braga , jornalista
 

Histórico 

O termo nomofobia origina-se da expressão inglesa no-mobile phone phobia. Os sentimentos percebidos são justificados com o medo de não conseguir saber o que está ocorrendo no mundo ou de necessitar acionar alguém, ou ser acionado imediatamente e não ter como pedir ajuda, observa a psicóloga Ana Carolina  Gonçalves.
 
A doença não está propriamente relacionada ao tempo que as pessoas dedicam ao celular, e sim à maneira como usam o aparelho. “O comportamento manifesto da pessoa ao se sentir impedida de utilizar as funcionalidades do celular ajuda a identificar esse vício”, explica.

Quando os primeiros sinais de abstinência do celular aparecem, já é um alerta de que algo não vai bem, segundo Ana Carolina. São situações que vão desde angústia, vazio existencial (a vida parece não ter mais sentido), desespero, estresse, irritabilidade, náuseas, taquicardia, sudorese, tensão muscular e até mesmo crises de pânico. Outras consequências podem ser a falta de concentração, distúrbios de visão por causa da exposição excessiva à tela, sedentarismo, tendinite, problemas de coluna por causa da postura e má alimentação.

Entre os principais gatilhos para a nomofobia, a psicóloga cita baixa autoestima, necessidade de se sentir aceito e incluído em um grupo, dificuldade de relacionamentos presenciais, baixa tolerância à frustração, por exemplo. "Quando já existe algum grau de dependência, pode ser necessário consultar um psicólogo para iniciar terapia, que pode incluir vários tipos de técnicas para tentar lidar com a ansiedade gerada pela falta do celular. Ioga, meditação guiada e visualização positiva são alguns desses recursos", diz.

Saída é buscar uso equilibrado

A nomofobia ainda está sendo estudada e o tema merece mais pesquisas, na avaliação da psicóloga Renata Alvarenga. “Com as novas tecnologias e as oportunidades de interatividade presentes cada vez mais no nosso dia a dia, seja via computador, telefone celular, percebemos que isso afeta e modifica todos os nossos modos de vida. O uso de celular de forma desenfreada desencadeia o medo de ficar sem se conectar, se divertir, se comunicar”, afirma.

Considerando-se que as relações interpessoais na pós-modernidade são mediadas cada vez mais pelas tecnologias, trata-se de um desafio lidar com o celular, acrescenta Renata Alvarenga, já que o homem apresenta respostas emocionais e físicas ligadas a esse contexto. “O medo de ficar sem celular pode ter diferentes origens, mas talvez o desamparo existencial de o sujeito ter que se haver com a sua vida, com a sua trajetória. Em alguma medida, o celular e a tecnologia o distraem dessa condição de existir, construir e se responsabilizar pela sua própria história. Sem o celular, você se depara com você mesmo e com o outro. Isso é muito desafiador, mas também é muito importante. É o sujeito ter que pensar sobre suas questões, experimentar ser aceito ou rejeitado nas relações. Ter que viver", observa.
 
 
"Sem o celular, você se depara com você mesmo e com o outro. Isso é muito desafiador”

Renata Alvarenga , psicóloga
 
 
Existe uma relação que é natural, aquela que permite aproveitar as inovações tecnológicas para os relacionamentos sociais, para o trabalho, para o crescimento, ensina Renata. “Mas, ao mesmo tempo, existe a dependência que é patológica, que se configura quando os indivíduos não conseguem mais ficar sem o seu objeto de dependência, o celular ou o computador. Aí aparecem sintomas e alterações emocionais e comportamentais importantes”, diz.

Nessa linha de pensamento, Renata lembra que, nos relacionamentos pessoais, face a face, desconectar-se de alguém, como no fim de um relacionamento, por exemplo, é muito difícil e frequentemente doloroso, ao passo que, pelas redes sociais, basta bloquear ou parar de seguir a pessoa, o que pode ser mais fácil. “Buscar o equilíbrio, saber a hora de conviver presencial ou virtualmente com as pessoas, saber o impacto que temos sobre o outro, e o que o outro tem sobre a gente, é fundamental. Entender esses desafios da vida pós-moderna, identificar a hora de desacelerar, valorizar as práticas do dia dia é fundamental para a saúde mental”, ensina.


Ferramenta da 'modernidade líquida'
 
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman ilustra bem o desafio de lidar com as tecnologias, numa época em que as relações sociais, econômicas e de produção se tornaram frágeis
Uso sem limites da tecnologia compõe teoria da modernidade líquida cunhada pelo sociólogo Zygmunt Bauman (foto: Michael Cizek/AFP - 9/1/17)
 
A teoria da modernidade líquida, criada pelo spciólogo polonês Zygmunt Bauman (foto), ilustra bem o desafio de lidar com as tecnologias, numa época em que as relações sociais, econômicas e de produção se tornaram frágeis, fugazes e maleáveis, como diz o autor, da mesma forma que os líquidos. O conceito se opõe, segundo Bauman, às relações humanas e sociais sólidas, estuturadas junto à ciência e ao pensamento. A psicóloga Renata Alvarenga destaca que o sociólogo fala de uma sociedade em que as relações, com o passar do tempo, estão ficando cada vez mais superficiais. “As pessoas estão ficando com uma certa dificuldade de conviver umas com as outras. É um outro que muitas vezes é imperfeito mesmo, limitado, e daí surge a opção por essa relação virtual, em que não existe o olho no olho. Uma das características principais apontadas sobre as dimensões das relações chamadas reais e as relações on-line é essa diferenciação na dificuldade e na facilidade de se conectar e desconectar das pessoas”, pontua a psicóloga.


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