Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

Órfãos da COVID-19: luto das crianças vai muito além das estatísticas

Há cinco meses, a decoração da casa da jornalista Maressa Souza, de 39 anos, está diferente. Desde a morte do marido, em maio deste ano, ela espalhou fotos dele pela casa em Juiz de Fora, na Zona da mata mineira, e trouxe seus instrumentos musicais para a sala. A estratégia é para que seu filho, Benjamin, de 4 anos, mantenha viva a memória do pai. 





Vítima da COVID-19 aos 38 anos, Matheus Raimundo de Sousa era fisioterapeuta, músico e um pai presente. Benjamin é uma das 579 crianças mineiras, com até 6 anos de idade, que ficaram órfãs de pai ou mãe por causa da pandemia do coronavírus.  

Leia: O que as crianças sentem em meio a um mundo doente com a COVID

Em Minas Gerais, de março de 2020 a setembro deste ano, os números obtidos pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) mostram que 19 pais faleceram antes do nascimento de seus filhos, número que parece inexpressivo em termos de estatística, mas infinito na dor de quem viveu essa realidade. E pior: seis crianças perderam o pai e a mãe em decorrência do coronavírus nesses seis meses. 

Os dados foram levantados com base no cruzamento entre os CPFs dos pais nos registros de nascimentos e de óbitos feitos nos 1.463 Cartórios de Registro Civil do Estado desde 2015, ano em que as unidades passaram a emitir o documento diretamente nas certidões de nascimento das crianças recém-nascidas no território estadual.

“Diante de dados tão relevantes proporcionados pelo portal da transparência do registro civil, o poder público poderá trabalhar com iniciativas de apoio e proteção às crianças brasileiras órfãs”, afirma Genilson Gomes, presidente do Sindicato dos Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado de Minas Gerais (Recivil), ao destacar que, ter conhecimento dessas informações, apesar de lastimáveis, é necessário.





Ao tratar da estatística nacional, os números são ainda mais expressivos. No mesmo período, ao menos 12.211 crianças, com até 6 anos, perderam pelo menos um dos pais para a COVID-19. 

De acordo com a pesquisa, 25,6% das crianças não tinham completado um ano. Já 18,2% tinham 1 ano; 18,2%, 2 anos; 14,5%, 3 anos; 11,4%, 4 anos; 7,8% tinham 5 anos; e 2,5%, 6 anos. São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná foram os estados que mais registraram óbitos de pais com filhos nesta faixa etária.  

Onde está meu pai? 


A vivência do luto é um momento sensível independentemente da idade. No entanto, para crianças de até 5 anos o processo é ainda mais delicado. “Até os 5 anos a criança não entende que a morte é algo definitivo”, explica Luciana Rocha, psicóloga especialista em luto. 

De acordo com a especialista, somente a partir dos 6 anos que a criança entende que eles não vão retornar. “Por isso é importante que se respeite caso a criança pergunte mais de uma vez onde está o pai ou a mãe e que o adulto explique quantas vezes for necessário”, enfatiza. 

No caso de Benjamin, que perdeu o pai em maio, psicólogos estão auxiliando no processo de luto. “Tenho convicção de que o Benjamin sofreu e está sofrendo muito com a ausência do pai”, comenta a mãe. Maressa conta que o filho é autista e que já contava com o apoio de especialistas há alguns anos.





“A gente foi contando algumas historinhas para fazer entender que ele não encontraria mais com pai dele”, completa. 

O pequeno Benjamin ainda chora ao pegar as fotos do pai e, segundo a mãe, a família ainda não conseguiu explicar para ele o contexto da morte. “O momento é de acolhimento e, de alguma maneira, estamos tentando trazer a presença do Matheus”, conta. 

A atitude da família de Benjamin, de acordo com a especialista, é o ideal para o momento. Para Luciana, é importante que a criança registre memórias sobre o pai ou mãe que partiu e que seja escutada. “É importante não desconsiderar que a criança faz parte daquele meio que, com a morte, foi alterado subitamente e repentinamente.” 

O processo de luto infantil é sofrido como qualquer outro. “A criança precisa ser escutada e, neste momento, buscar apoio é muito importante, e as famílias não devem ter vergonha disso”, conclui a psicóloga. 

Memória e infância 


Os traumas sofridos na infância ficam registrados na mente da criança até os 8 anos de idade, explica a psiquiatra infantil Jaqueline Bifano. A perda de memória também não é incomum nessa faixa etária e é essa, justamente, uma das maiores preocupações dos pais ou responsáveis: que a criança se esqueça do pai ou mãe. 





“Por orientação dos especialistas, todas as fotos ainda estão em casa e pretendo falar muito sobre o pai dele, lidar com isso de uma maneira que traga boas memórias para o Benjamin”, fala Maressa. 

A psiquiatra enfatiza que a manutenção da memória, a partir de comentários e lembranças físicas é essencial. “A perda de memória pode, de fato, acontecer. O importante é manter viva de alguma forma a imagem daquele pai ou mãe”, orienta.

Os números


Os dados de nascimentos, casamentos e óbitos estão disponíveis no Portal da Transparência do Registro Civil (https://transparencia.registrocivil.org.br/inicio), base de dados abastecida em tempo real pelos atos registrados nos Cartórios de Registro Civil do país, administrada pela Arpen-Brasil, cruzados com os dados históricos do estudo Estatísticas do Registro Civil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base nos dados dos próprios cartórios brasileiros.
 
*Estagiária sob supervisão da editora-assistente Vera Schmitz 
 




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