Jornal Estado de Minas

Acolhimento mais que necessário



Em 9 de outubro, foi comemorado o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos. Neste ano, o tema "Não deixe ninguém para trás – Equidade no acesso aos cuidados paliativos" referencia o significado da equidade nesse cenário. "O conceito se evidencia no atendimento aos pacientes de acordo com as suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa e menos a quem requer menos cuidados, alocando os recursos exatos para alcançar um resultado igualitário", diz Marcela Mascarenhas, médica oncologista e especialista em cuidados paliativos do Grupo Oncoclínicas.





Como a profissional enfatiza, a grande questão é: até que ponto essa equidade vem sendo efetivamente exercida?. Sabe-se que, dos 40 milhões de pessoas que precisam de cuidados paliativos no mundo, somente 14% têm acesso, alerta a médica. "Costumo brincar que encontrar um profissional paliativista é como encontrar uma agulha dourada em um palheiro, porque infelizmente ainda estamos muito aquém da nossa real necessidade", constata.

Para a especialista, as consultas médicas não devem ter a produtividade pautada em números de pacientes atendidos, e sim na qualidade desse atendimento. É necessário garantir que o paciente, quando sai da consulta, esteja acolhido, continua Marcela. "Que ele saiba que, caso tenha dor, essa dor vai melhorar. Que a família saiba que, mesmo no momento mais difícil da vida deles, não estarão sozinhos. Que esse sofrimento vai ser cuidado por todos nós da equipe", diz.





Que ele saiba que, caso tenha dor, essa dor vai melhorar. 
Que a família saiba que, mesmo 
no momento mais difícil da vida deles, não estarão sozinhos. 
Que esse sofrimento vai ser cuidado por todos nós da equipe”

Marcela Mascarenhas, 
médica oncologista e especialista em cuidados paliativos 



Para o paciente diante de uma doença que esteja causando enorme sofrimento, ter alguém que se importe com isso, segundo a oncologista, é uma forma de transmitir paz e conforto. "Precisamos fazer parte dos instrumentos que transformam a aflição em alívio."





SAÚDE PÚBLICA 

O governo de Minas Gerais estabelece diretrizes para cuidados paliativos na saúde pública, porém em muitos locais ainda não houve apoio e nem capacitação dos hospitais para garantir essa oferta, critica Marcela. A lei é clara, mas a prática é bem diferente. Pelo SUS, segue a médica, muitos serviços acabam contando com a boa vontade dos profissionais de saúde em atuar como paliativistas, sem ter subsídios para tal.

"Fazem-se as leis, mas infelizmente muitas vezes não se pode garanti-las. Vejo diferença no acesso e na valorização dos cuidados paliativos nos serviços privados em que atuo, onde há investimento adequado em recursos humanos, o que muitas vezes não ocorre no sistema público de saúde. E, como dizia Cicely Sauders, uma das nossas pioneiras: 'Cuidado paliativo não é uma alternativa de tratamento, e sim uma parte complementar e vital de todo o acompanhamento do paciente'".

Como uma reflexão sobre a atual campanha mundial de cuidados paliativos, fica o apelo para o acesso equitativo até 2030. "Precisamos lutar para uma mudança – é a mensagem que gostaria de deixar aqui. Sem dúvida nenhuma, a lei é uma grande conquista para Minas Gerais, mas precisamos também garantir que os profissionais da saúde vão conseguir atuar e que os pacientes, independentemente da sua condição financeira, realmente vão ter acesso aos cuidados paliativos", deseja Marcela.





As primeiras estruturações da medicina paliativista moderna datam da década de 1960, basicamente pelo trabalho da médica, enfermeira e assistente social Cicely Saunders, britânica pioneira na área, e sua contemporânea, a psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. No Brasil, onde esse tipo de atenção começou a ser observado a partir dos anos 1980, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconheceu a medicina paliativista como área de atuação apenas em 2011. É tudo muito novo, como diz o geriatra e médico paliativista Fabiano Moraes Pereira, coordenador da equipe de cuidados paliativos adultos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), lembrando que, por isso mesmo, muito ainda há que se compreender sobre o tema.

"O objetivo central dos cuidados paliativos é permitir a melhor vida possível para o paciente, apesar da doença que ameaça sua vida. Ajudar o paciente a viver e a valorizar a vida. Afinal, a morte é um processo natural. As pessoas acham que é ajudar a pessoa a morrer, dar um remédio para isso, mas não é assim. Muitas vezes acompanhamos o paciente por meses e até por anos, a fim de aliviar o sofrimento. E, assim, permitir que o indivíduo entenda a sua doença e crie mecanismos de enfrentamento. Isso se estende para a família, para quem cuida dessa pessoa, e quem vai perdê-la", conta.
 



Especialmente em países em desenvolvimento, existe muito a ser desenvolvido nesse sentido, pontua o médico. "Estamos começando a entender melhor, no Brasil ainda engatinhamos. É preciso que todos se inteirem do assunto para diminuir a falta de informação. Fazer com que todo profissional de saúde seja capaz de oferecer cuidados paliativos básicos", anseia Fabiano.




 
 
 
Equipe de cuidados paliativos adultos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), coordenada pelo geriatra e médico paliativista Fabiano Moraes Pereira (foto: Arquivo Pessoal)
 
PROCESSO LONGO 

Depois de 14 anos vivendo com Alzheimer, Iracy Soares da Fonseca faleceu em agosto, aos 86 anos. Todo o processo foi acompanhado de perto pelas duas filhas, as cuidadoras Geralda Aparecida, de 67, e Vanda Maria dos Santos, de 56. A decisão pelos cuidados paliativos aconteceu depois de o médico indicar que nada mais poderia ser feito para evitar sua morte, 12 dias antes do falecimento. As filhas contrataram os serviços da clínica Saúde no Lar, e a equipe esteve em contato direto com elas por todo esse intervalo. Geralda conta que, se a mãe fosse procurar atendimento pelo SUS, provavelmente ia padecer sem assistência, em suas palavras. Com os cuidados paliativos, os profissionais de saúde ofereceram todo o apoio necessário.

"Ela recebeu oxigênio, medicação, o soro, apoio para o banho. Trouxeram uma cama com um colchão excelente, com médicos e enfermeiros 24 horas por conta. Não teve dor, não teve uma ferida. Teve todo o suporte, e pôde estar em casa todos esses dias. E um suporte para nós também, que estávamos cansadas, preocupadas, com o emocional abalado. Ela recebeu todo o carinho, e a gente também. Morreu com dignidade", diz Geralda.

A abordagem dos cuidados paliativos também ajudou no processo de convivência com o câncer para a enfermeira Denise Salvador. Ela descobriu em 2019 um câncer no pâncreas já em estágio avançado, com metástase para o fígado e o pulmão. Além do tratamento mais convencional com a quimioterapia, a família procurou atendimento em medicina integrativa em São Paulo, e o médico de lá atuou em conjunto com a equipe de cuidados paliativos em Belo Horizonte, pela clínica Saúde no Lar. Depois do agravamento do quadro, Denise acabou falecendo em janeiro deste ano, aos 62 anos, não sem antes ter vivido bem até quando foi possível, ela que sempre esbanjou saúde.





 
 
A empresária Silvia Salvador e a mãe, Denise Salvador, que morreu de câncer este ano: equipe de cuidados paliativos esteve ao lado dela até o fim (foto: Arquivo Pessoal)

"Todo o tratamento dela foi feito com o foco na sua qualidade de vida, para ter conforto. No início, optou inclusive por continuar trabalhando, não queria se entregar para a doença", conta a filha, a empresária Silvia Salvador, de 33, sua grande companheira em toda essa experiência. Quando o câncer se tornou mais severo, em outubro de 2020, a escolha da família foi por suspender a quimioterapia, que nada mais fazia além de causar efeitos adversos graves e retardar a doença, cujo desfecho já era esperado, e voltar as energias totalmente para os cuidados paliativos. Começou o auxílio de oxigênio em casa, medicação para a dor, drenagem de líquidos que causavam inchaço na barriga, e medidas de alívio para outros reflexos do câncer.

A equipe de cuidados paliativos esteve ao lado de Denise até o fim. "Não queríamos que ela fosse para o hospital. Queríamos que ela morresse em casa", lembra Silvia. E, quando chegou a madrugada de sua morte, ficaram ali o tempo inteiro. Entre um lampejo de lucidez em meio à sedação derradeira, Silvia conta que a mãe acordou, olhou em volta, disse que se sentia bem, agradeceu por tudo o que foi feito por ela. E se despediu.

"Meu sentimento foi de tranquilidade pela passagem dela. Se tem como resumir tudo o que eles fizeram com esse tipo de cuidado, a palavra é dignidade. Dignidade para o fim da vida dela. Saber que foi plenamente atendida em suas necessidades, que fizemos tudo o que podíamos. Isso me ajudou até no processo do luto. Entender que não tem como mudar os planos de Deus, que o curso da vida deve ser seguido."


audima