“Brainspotting é uma abordagem terapêutica inovadora, baseada em como o cérebro e corpo reagem e processam experiências traumáticas. O brainspotting trabalha com o que chamamos regiões subcorticais do cérebro. São áreas envolvidas com o processo de regulação, mas que estão fora do controle consciente.”
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Brainspotting: conheça a terapia usada para lidar com eventos traumáticosBrainspotting: habilidade natural do cérebro de se autoescanearA explicação é de Cíntia Satiko Fuzikawa, psiquiatra, professora-adjunta do Departamento de Saúde Mental (FMUFMG) e coordenadora dos ambulatórios de ansiedade e trauma do HC-UFMG. Ela afirma que os estudos científicos não são numerosos, já que o brainspotting é uma abordagem recente, mas os que existem mostram resultados positivos.
Segundo Cíntia Satiko Fuzikawa, o brainspotting foi descoberto durante uma sessão de terapia em 2003, portanto, desde o início foi usado para tratar a saúde mental. Chegou ao Brasil em 2008, quando seu descobridor, o psicoterapeuta americano David Grand, deu um curso no Brasil pela primeira vez. A pessoa escolhe o problema, dificuldade ou a questão que quer trabalhar.
O terapeuta vai perguntar se a questão traz algum tipo de incômodo (ativação) para o cliente no momento, qual a intensidade desse incômodo (avaliado em uma escala de 0 a 10) e onde a ativação é sentida no corpo.
O terapeuta vai perguntar se a questão traz algum tipo de incômodo (ativação) para o cliente no momento, qual a intensidade desse incômodo (avaliado em uma escala de 0 a 10) e onde a ativação é sentida no corpo.
A partir disso, o terapeuta vai ajudar o cliente a localizar um ponto no campo visual onde a ativação fica mais intensa ou presente quando o cliente olha para ele. Esse é chamado de brainspot. O cliente mantém seu olhar nessa direção enquanto observa o processo que ocorre espontaneamente. Podem aparecer imagens, pensamentos, sentimentos, sensações. Todos são acolhidos sem julgamento, no que David Grand define como “mindfulness focado”.
Nesse processo, destaca Cíntia Fuzikawa, os terapeutas conseguem acessar regiões mais profundas do cérebro, que estão fora de controle ou pensamento consciente, e a experiência traumática é “digerida”, diminuindo o incômodo causado por ela.
“Além disso, o cliente pode enxergar a mesma situação de outra forma, ter insights, fazer conexões dessa situação com outras situações de sua vida, outras experiências semelhantes ou outras situações onde se comporta ou sente da mesma forma.”
Mas, segundo ela, é importante frisar que, mesmo que o cliente não faça qualquer conexão consciente, pode conseguir modificar suas respostas ou reações diante de uma situação. É comum recebermos clientes que dizem: já sei todas as razões pelas quais ajo assim, só não consigo mudar. O que vemos no brainspotting é que, mesmo que o cliente não entenda racionalmente o que aconteceu, consegue se comportar de forma diferente.”
A RAÍZ DO TRAUMA
O brainspotting procura como alvo o trauma. E é a psiquiatra Simonetta Pacganella quem define o que é: “Trauma é uma ferida psíquica que o endurece psicologicamente e, então, interfere com sua capacidade de crescer e de se desenvolver. É aquela cicatriz que torna você menos flexível, mais rígido, com menos sentimento e com mais defesa (Gabor Maté)”. O trauma acontece em um indivíduo sempre que um evento físico ou emocional supera a sua capacidade de suportá-lo, e ele não pode contar com o apoio e a proteção que lhe seriam necessários. Nesse sentido, todos temos níveis variáveis de impactos de traumas.
Simonetta Pacganella enfatiza que, às vezes, um trauma pode provocar respostas cerebrais automáticas de defesa, limitando a vida e trazendo sofrimento intenso à pessoa, comprometendo seu equilíbrio emocional e físico. “Quando isso acontece, a pessoa deve procurar ajuda.”
A psiquiatra conta que observa em sua prática que, “muitas vezes, o brainspotting permite acessar e reprocessar mais rapidamente as raízes mais profundas das dores e queixas dos clientes. A posição ocular relevante confere uma grande precisão quanto ao conteúdo acessado, ativando determinados circuitos neuronais das regiões subcorticais do cérebro (áreas mais profundas), trazendo alguma memória na forma de imagem, emoção ou apenas uma sensação corporal. O contato com esse conteúdo, dentro da profunda sintonia entre cliente e terapeuta, é o que permite ao cérebro encontrar novos caminhos para o equilíbrio, para a regulação”.
Simonetta Pacganella enfatiza que o brainspotting é uma abordagem muito eficaz em casos de estresse pós-traumático, ansiedade, fobias, transtornos do impulso e dores crônicas.
“Quando e como utilizá-lo será preferencialmente determinado a partir da profunda sintonia entre cliente e terapeuta. É importante lembrar que sendo o brainspotting um processo que ativa os recursos cerebrais de autocura, pode ser utilizado também para a expansão da criatividade, ou para melhorar o desempenho esportivo ou artístico.”
“Quando e como utilizá-lo será preferencialmente determinado a partir da profunda sintonia entre cliente e terapeuta. É importante lembrar que sendo o brainspotting um processo que ativa os recursos cerebrais de autocura, pode ser utilizado também para a expansão da criatividade, ou para melhorar o desempenho esportivo ou artístico.”
Cíntia Fuzikawa destaca que uma vez que o cliente esteja focado no brainspot, o processo segue seu curso, e o terapeuta busca não intervir, a não ser quando essencial.
“Como existem bilhões de conexões neurais no cérebro, o terapeuta não tem como saber exatamente o que está acontecendo, ou qual será o caminho que essa pessoa encontrará para resolver a questão que trouxe. Mas a sintonia significa que o terapeuta tem uma atitude de presença e está atento ao cliente: ao que ele diz, ao que ele não diz, às reações corporais, às emoções que parecem estar presentes.
“Como existem bilhões de conexões neurais no cérebro, o terapeuta não tem como saber exatamente o que está acontecendo, ou qual será o caminho que essa pessoa encontrará para resolver a questão que trouxe. Mas a sintonia significa que o terapeuta tem uma atitude de presença e está atento ao cliente: ao que ele diz, ao que ele não diz, às reações corporais, às emoções que parecem estar presentes.
Essa sintonia ajuda a criar um espaço seguro, que afeta, positivamente, a neurobiologia do cliente, criando condições mais favoráveis para que ele possa trabalhar suas questões. Dizemos que o cliente é a cabeça do cometa, e o terapeuta, a cauda. O terapeuta acompanha, mas não conduz o processo.”
MEMÓRIA, INCONSCIENTE E FREUD
Conforme Cíntia Fuzikawa, o cliente pode ter questões bem específicas que queira trabalhar: fibromialgia ou dores crônicas, querer parar de fumar ou perder o medo de dirigir. Para Gabor Maté, médico canadense, todo sofrimento, seja físico ou mental, tem origem traumática. O processo de brainspotting é curativo, mas também diagnóstico.
“Quando trabalhamos com quadros como esses, frequentemente, chegamos a experiências traumáticas, muitas vezes precoces, que estão na base dessas dificuldades. Essas são também processadas com o brainspotting.
É importante frisar que o tratamento com o brainspotting em quadros orgânicos não exclui o tratamento médico/medicamentoso necessário. Pode haver casos em que se consegue diminuir a quantidade de remédios usados, mas isso deve ser feito sempre em acordo com o médico que acompanha esse cliente.”
O brainspotting trabalha com eventos dos quais a pessoa não se lembra de forma factual, como memórias de antes dos dois anos de idade. Cíntia Fuzikawa explica que nossas experiências ficam registradas no cérebro e no corpo.
Temos lembrança ou consciência de algumas delas, mas muitas, principalmente se forem traumáticas, estão armazenadas fora da consciência. Nesse sentido, não são conscientes. “É diferente do referencial freudiano no qual o inconsciente faz parte da teoria do funcionamento psíquico que ele elaborou.”
Temos lembrança ou consciência de algumas delas, mas muitas, principalmente se forem traumáticas, estão armazenadas fora da consciência. Nesse sentido, não são conscientes. “É diferente do referencial freudiano no qual o inconsciente faz parte da teoria do funcionamento psíquico que ele elaborou.”
Cíntia Fuzikawa assegura que o brainspotting é uma abordagem integrativa, ou seja, pode ser utilizada junto com outras abordagens ou técnicas que o terapeuta já tenha.
“Raramente os clientes nos procuram especificamente pelo brainspotting, pois é uma abordagem ainda pouco conhecida. O que geralmente acontece é o cliente trazer as questões que quer trabalhar e utilizamos o brainspotting para ajudá-lo. Ele pode ser utilizado com pessoas de qualquer idade, inclusive com crianças e adolescentes. As sessões podem ser feitas presencialmente ou on-line. Alguns processos são bem rápidos, até de uma única sessão, mas outros exigem várias sessões ou até anos de acompanhamento. Isso porque o cliente vai trazendo outras questões a serem trabalhadas ou porque apresenta questões traumáticas desde a infância, principalmente em casos de abuso, relações familiares conflituosas ou coisas assim.”
ESTUDOS CIENTÍFICOS*
Por ser uma abordagem recente, estudos científicos ainda não são numerosos, mas mostram
resultados positivos.
1 – Em 2016, foi feito um inquérito em Newtown (EUA), onde ocorreu um massacre numa escola primária em 2012. Foi perguntado a pessoas que receberam atendimento terapêutico como elas avaliavam a efetividade do tratamento recebido. A modalidade mais bem avaliada foi o brainspotting: 60% das pessoas atendidas consideraram a intervenção muito efetiva. (Newton-Sandy Hook Community Foundation, 2016)
2 – Em dois outros estudos, o brainspotting foi efetivo na redução de sintomas de estresse pós-traumático após três sessões (2017).
3 – Um estudo de 2021 mostrou que, após uma sessão de 40 minutos, houve aumento da variabilidade da frequência cardíaca em indivíduos ao pensarem em uma memória perturbadora.
4 – Um artigo de 2013 explora a hipótese de que ao trabalhar um ponto no campo visual, uma estrutura no mesencéfalo (colículos superiores) é ativada e é como se “uma pastinha no computador” – que é onde se aloja o evento traumático – fosse acessada e ao sustentar o olhar nesse ponto é como se essa “pastinha” ficasse aberta para que o cérebro possa então fazer a faxina, a digestão de todo o acontecimento. Esse estudo comprovou que o trabalho acontece nas estruturas subcorticais e não na cognição.
5 – Um estudo comparou brainspotting ao Eye Movement Dessensitization and Reprocessing (EMDR), que em português significa Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos, outra terapia de base cerebral no tratamento do trauma e comprovou que a melhora foi semelhante logo após o tratamento. A diferença é que as pessoas que foram tratadas com o brainspotting continuaram a perceber uma melhora mesmo após seis meses da primeira sessão. “Isso acontece porque o cérebro continua processando a experiência mesmo depois da sessão”, explica Priscila Fuzikawa.
Fontes: Cíntia Fuzikawa e Priscila Fuzikawa
COMO É UMA SESSÃO?
- Para entender como é um atendimento utilizando o brainspotting, assista a uma demonstração com comentários em:
- https://vimeo.com/674463591/0f0b1ee388
- Vídeo de palestra on-line sobre trauma gratuita: “Uma abordagem neurobiológica para o tratamento de traumas”, de Priscila Fuzikawa e Cíntia Fuzikawa, treinadoras em brainspotting, onde explicam o que é trauma, as consequências para a vida e possibilidades de tratamento. Link para a palestra: https://vimeo.com/585999966/056ce08e85.
TREINAMENTO EM BRAINSPOTTING
O brainspotting é uma terapia que pode ser utilizada integrada a outras abordagens terapêuticas. Em março e junho, Priscila Fuzikawa oferecerá um treinamento para quem se interessar. Para tornar esta terapia ainda mais acessível a toda a população, a treinadora também dará duas bolsas parciais para profissionais do SUS, SUAS e ONGs que atendem pessoas em vulnerabilidade social.
- Formação em brainspotting: treinamento totalmente on-line.
- Fase 1: de 25 a 27 de março de 2022
- Fase 2: de 3 a 5 de junho de 2022
- Carga horária: 21 horas
- Inscrições: https://www.inconnectionevents.com/