Eu trabalho muito. Em parte, devido aos meus hábitos não muito equilibrados e, por outro lado, também trabalho com equipes do mundo inteiro. Por isso, eu admito que não desligo tanto quanto deveria. E me preocupo se meu filho irá perceber a situação.
Ele tem só 2 anos de idade, mas me vê nos meus aparelhos eletrônicos com muito mais frequência que o desejável. Muitas vezes, logo depois que ele acorda, já estou no computador; durante o jantar, às vezes me pego verificando meu telefone de trabalho, desviando minha atenção.
Ele já aprendeu a dizer "mamãe está trabalhando" e sabe pedir lanches ou brinquedos para o papai quando estou com a cabeça baixa. E, com o trabalho híbrido passando a ser padrão, ele irá me ver nesses aparelhos com mais frequência que se eu ficasse trabalhando apenas no escritório.
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Pesquisas já demonstraram que o comportamento e as práticas dos adultos podem influenciar a relação das crianças com seu trabalho no futuro, bem como a forma de seu desenvolvimento. E agora que muitos pais que trabalham não estão no escritório como antes, esses efeitos poderão ser exacerbados?
Especialistas afirmam que a maior exposição ao trabalho pode trazer desvantagens tanto para o desenvolvimento das crianças quanto para a forma como elas percebem o papel do trabalho na vida dos pais. Mas pode também haver vantagens ocultas - e os pais podem agir para amplificar a parte boa, em detrimento da ruim.
'Sua prioridade é o trabalho'
Pesquisas realizadas na última década demonstraram que as atitudes e comportamentos dos pais com relação ao trabalho podem ter impacto sobre seus filhos.
Em 2017, Ioana Lupu, professora da Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais (ESSEC, na sigla em francês), na França, publicou resultados de estudos que tentavam descobrir se as crianças imitam os hábitos de trabalho dos seus pais na idade adulta.
Observando funcionários dos principais escritórios de advocacia de Londres, Lupu encontrou uma quantidade considerável de trabalhadores imitando os padrões dos seus pais. Aqueles cujos pais trabalhavam por muitas horas ou eram provedores, por exemplo, apresentavam propensão a reproduzir esse padrão na sua própria vida profissional na idade adulta, seja consciente ou subconscientemente.
Outras pesquisas de Stewart Friedman, autor do livro Total Leadership: Be a Better Leader, Have a Richer Life ("Liderança total: seja um líder melhor, tenha uma vida mais rica", em tradução livre) e psicólogo organizacional da Escola Wharton da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, demonstraram que as crianças muitas vezes apresentam sofrimento emocional quando seus pais são psicologicamente muito dedicados às suas carreiras. Além disso, a divisão da atenção dos pais devido ao trabalho com seus aparelhos eletrônicos também causa prejuízos emocionais e até físicos.
Esses estudos foram conduzidos antes da pandemia, quando os pais estavam frequentemente nos seus escritórios. Agora que eles trabalham mais na frente das crianças, devido às configurações de trabalho remoto, os dois pesquisadores acreditam que esses efeitos poderão ter se intensificado.
As condições atuais são parecidas com "levar sua criança para um dia de trabalho", mas todos os dias, segundo Friedman - e ele acredita que isso é problemático. Em alguns horários do dia, as crianças estarão em frente a aparelhos eletrônicos ou com um livro, enquanto a atenção do pai estará em outro lugar. Quando os filhos veem os pais trabalharem, eles podem acreditar que estão fazendo outras tarefas com pessoas que são mais importantes que eles.
"Você está pegando o seu bem mais precioso, que é a sua atenção, e desviando da pessoa mais importante do mundo para você... e eles sentem isso", afirma Friedman.
Ele acredita que as crianças mais jovens podem ser especialmente afetadas quando os pais são "psicologicamente removidos da vida familiar enquanto estão fisicamente presentes". Lupu concorda, especialmente com o aumento do uso de aparelhos eletrônicos fora dos horários de trabalho padrão.
"Por definição, esses aparelhos são muito envolventes", segundo ela. "Você pode dizer 'preciso de apenas cinco minutos para responder este e-mail e vou estar com você', mas isso dificilmente acontece." Lupu afirma que as crianças, que anseiam por atenção, podem ter reações emocionais negativas quando os pais desviam seu olhar. "Elas entendem isso como 'não sou tão importante agora', o que pode ser muito prejudicial se elas forem expostas a isso com muito mais frequência que no passado."
Lupu acrescenta que, muitas vezes, as crianças internalizam a forma como os pais priorizam o trabalho. "As crianças tendem a achar que as atividades em que passamos mais tempo são as mais importantes", segundo ela. "Elas poderão facilmente dizer que, como você está passando tanto tempo no seu trabalho e tão pouco tempo comigo, isso quer dizer que a sua prioridade é o trabalho."
E os limites menos definidos entre a casa e o trabalho podem ser "caóticos", segundo acrescenta Sara Harkness, professora de desenvolvimento humano e ciências familiares da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. "É estressante para os pais, mas também para as crianças", afirma ela.
Essa imprecisão dos limites indica que as definições entre quando os pais podem dar atenção e quando não podem estão incertas. Antes da pandemia, as crianças tinham períodos em que não esperavam atenção dos pais, como as atividades escolares ou extracurriculares. Elas também compreendiam que os pais no escritório ou no trânsito não estavam ativamente disponíveis para eles.
"Agora, com o trabalho em casa", afirma Lupu, "alguns pais podem estar presentes fisicamente, mas não mentalmente."
Friedman também observa os efeitos "indiretos". Quando os pais têm interações negativas no trabalho em frente às crianças, elas podem achar que são a fonte dessa tensão. Friedman afirma que, se as crianças virem um pai ansioso e com raiva, elas podem ficar confusas e preocupar-se com os motivos. " dizer 'eu fiz alguma coisa errada?'... e começam a sentir-se inseguras."
Existe também um componente de gênero sobre alguns desses efeitos, segundo Lupu. A influência negativa pode ser mais aguda quando vem das mães, devido à expectativa enraizada de que as mulheres geralmente dedicam-se mais ao trabalho doméstico e aos cuidados com a família do que os pais, de forma que as crianças esperam que elas estejam disponíveis para tarefas como o trabalho doméstico e a criação dos filhos.
Embora alguns pais venham se dedicando mais aos cuidados com a família devido ao trabalho remoto, geralmente é mais "aceito" que os homens tracem linhas rígidas além das quais eles não dedicam atenção para os filhos. Mas Friedman adverte que "os pais não têm 'passe livre'", pois eles ainda detêm influência significativa sobre a forma como o trabalho afeta os relacionamentos familiares.
Precedentes positivos
Mas trabalhar na frente das crianças não traz só desvantagens. Especialistas afirmam que certos elementos do trabalho remoto, bem como o comportamento dos pais em uma situação de trabalho em casa, podem ser benéficos para o desenvolvimento das crianças.
Embora a repercussão possa ser prejudicial quando as emoções exibidas são negativas, por exemplo, também pode ocorrer o inverso, segundo Friedman.
Se as crianças observarem os pais dedicando-se positivamente ao trabalho, usando seus empregos para exibir seus valores ou demonstrando que estão empregando seus "dons particulares e paixões para fazer o bem", isso pode estabelecer um precedente positivo para a forma como as crianças construirão seu relacionamento com o trabalho no futuro. Friedman afirma que as crianças podem não fazer essas associações de imediato, mas, ao longo do tempo, as observações podem ser significativas.
"Estar presentes e ver seus pais administrando os valores e a dedicação ao seu trabalho pode ser muito importante e valioso para as crianças", concorda Kim Ferguson, reitora de graduação e estudos profissionais da Escola Sarah Lawrence, em Nova York, nos Estados Unidos. E um filho que observa a ética profissional dos pais pode levar essa forte influência para diversas etapas ao longo da vida, acrescenta Tricia Hanley, diretora do Instituto de Desenvolvimento Infantil da Escola Sarah Lawrence.
Além disso, a ampliação do trabalho remoto e híbrido também coincidiu com o aumento da flexibilidade.
Isso traz vantagens, segundo Sara Harkness, especialmente quando os pais que trabalham podem estar presentes para o almoço, comparecer a eventos extracurriculares ou até dar um lanche para um filho quando ele está com fome - algo que um emprego estruturado em um escritório em tempo integral não permitia. "Isso estabelece um precedente em que você pode envolver-se na vida do seu filho, mesmo se estiver também trabalhando", afirma ela.
'A mamãe está murmurando no closet'
À medida que o trabalho mudava, cada vez se tornava mais difícil definir limites - mas encontrar uma forma de traçar essas linhas pode ser a solução para reduzir os efeitos negativos.
Ioana Lupu chama essa abordagem de "segmentação": a criação de "regras e rotinas sobre o tempo e o espaço" quando pais e filhos estão juntos. Isso poderá significar a designação de um espaço físico para o trabalho, se possível - "um lugar onde, quando a mamãe está ali, ela está trabalhando".
Stewart Friedman concorda: "Isso cria aquele espaço privado, reservado. É por isso que sou a favor das pessoas trabalharem até no closet... poderão ouvir a mamãe murmurando closet, mas é porque ela precisa de privacidade no momento" e, quando ela terminar, ela irá sair e atender a todos.
Um componente importante da segmentação é também a criação de limites sobre o uso dos aparelhos eletrônicos depois de um certo horário, de forma que os pais possam dedicar total atenção às crianças.
Lupu afirma que a criação de rotinas é fundamental. De certa forma, colocar essas estruturas no lugar imita os limites definidos entre o trabalho e a atenção familiar que os filhos tinham antes da pandemia, devido às atividades programadas como a escola.
Além disso, Friedman, Lupu, Ferguson e Hanley concordam que os pais precisam ser ativos e iniciar conversas sobre essas mudanças e os novos comportamentos, mesmo se os seus filhos parecerem jovens demais para internalizar esses sinais ambientais ou se eles tiverem idade suficiente para ter consciência explícita dos padrões dos seus pais.
"É importante falar sobre os diferentes tipos de trabalho que eles fazem, o quanto de atenção ele exige, por que é importante e valioso e por que eles o fazem", afirma Kim Ferguson. "Não há problemas se eles trabalham para ganhar dinheiro para a família ter o que comer - mas então dizer 'eu não gosto do meu trabalho, mas é por isso que eu faço' ou 'eu gosto desta parte dele'."
Para crianças de todas as idades, Ferguson acrescenta que os pais deverão também informar por que estão tomando decisões de longo e de curto prazo sobre o trabalho. Eles devem, por exemplo, informar que um filho deve brincar em silêncio porque eles estão em uma reunião importante.
Mas todos os especialistas salientam que o trabalho remoto não está "condenando" as crianças a algo de ruim, especialmente porque cada criança tem sua própria personalidade e sua forma de processar o que ela vê. Lupu afirma que, embora muitas pessoas na sua pesquisa imitassem os hábitos profissionais dos seus pais, alguns participantes combatiam ativamente modelos de comportamento insatisfatórios e decidiram abordar o trabalho de forma diferente e mais saudável.
Ferguson aconselha que a melhor coisa que os pais podem fazer é compreender que essa configuração recém-criada irá se tornar a norma, pelo menos por enquanto, e que a solução é encontrar formas de fazê-la funcionar para o seu ambiente específico.
Mas essa questão é muito nova e, por isso, não existem muitas orientações a respeito. Tricia Hanley indica que os pais podem enfrentar diferentes questões, dependendo do gênero, da estrutura familiar e da posição socioeconômica.
Enfim, não importa se os pais estão em casa ou no escritório - as crianças se moldam com base no comportamento, nas ações e decisões dos seus cuidadores. A comunicação e os limites não se destinam apenas aos funcionários remotos. Esses precedentes estabelecem um modelo de como as crianças irão estabelecer sua relação com o trabalho no futuro e moldarão quem elas se tornarão nos próximos anos.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife
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