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Estado de Minas Crença x conhecimento

Senhoras do tempo, as crendices afloram e desafiam a ciência

Perpetuadas por gerações, as práticas sem qualquer comprovação voltam a ganhar força em áreas de risco, como saúde e alimentação


13/03/2022 04:00 - atualizado 13/03/2022 08:38

Ilustração
(foto: Arte EM)
Bombardeada por questionamentos sem sustentação, pensamentos estruturados em senso comum e fake news, a ciência tem enfrentado tempos desafiadores após dois anos do combate à pandemia de COVID-19, que fez voltarem à tona, em diversas áreas, os sentidos, convicções, mudou hábitos e opiniões. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, as crendices são definidas como crenças ou noções sem base na razão ou no conhecimento, que levam a criar falsas obrigações, a temer coisas inócuas, a depositar confiança em coisas absurdas. Existem ainda as crenças em presságios e sinais, originadas em acontecimentos ou coincidências fortuitas.
 
Presentes em toda cultura, as crendices mantêm sua força permeando, além da saúde, temas como a alimentação, amor, profissão, e os conceitos opostos do bem e do mal, sorte e azar, não importando o que dizem a ciência e os médicos. Há quem ainda acredite que comer manga junto com leite faz mal, que comer à noite engorda as pessoas ou aquele que associa o fato de a orelha queimar ou ficar vermelha a sinais de que alguém o quer mal, assim como a coceira na palma da mão é entendida como bom presságio de dinheiro chegando. A lista de crenças pode não ter fim e elevar, por exemplo, os riscos à saúde.
 
Não é incomum a atitude de apostar em recursos da crendice popular em busca da solução para os problemas antes de buscar a assistência num posto de saúde. Chás, banhos, raízes, emplastos e benzeduras recebem aval e ganham credibilidade de boa parte da população.
 
Bruna Carvalho é coordenadora do curso de enfermagem da Faculdade Pitágoras
A enfermeira Bruna Carvalho recomenda aos profissionais da saúde aprenderem a lidar com os pacientes movidos pelos ditos populares e mostrar tudo o que pode fazer mal (foto: Arquivo pessoal)
A enfermeira Bruna Carvalho, coordenadora do curso de enfermagem da Faculdade Pitágoras, tem experiência em lidar com as crendices, mitos e superstições no contato com pacientes. Ela já ouviu muitas histórias contadas pelos clientes antes mesmo de o médico se apresentar. “As crendices populares são enraizadas na essência familiar. O que anos atrás vovó fazia sem comprovação científica e era um santo remédio familiar ainda se perpetua por gerações. Com a evolução da ciência, e principalmente da saúde baseada em evidências, os “ditos populares” foram deixando de ser a regra e se tornaram a exceção, visto que algumas crendices podem prejudicar a saúde”, afirma.
 
Um exemplo dessas crenças citado pela enfermeira é o uso de moedas para a cicatrização umbilical, evitando a formação de hérnia. A ciência sabe, hoje, que moedas são objetos ricos em bactérias e que podem provocar graves infecções no recém-nascido, o que tornou essa prática condenada por especialistas e as próprias mulheres antenadas.


Toda crença tem alguma validade?

Para Bruna Carvalho, a transmissão de crendices por várias gerações é uma prática universal, tanto assim que as famílias acreditam no bem presente e futuro daquilo que foi bom no passado. Isso ajuda a entender as tradições repassadas de avós para filhas, e assim por diante. “A população brasileira tem essa prática ainda mais enraizada que as demais sociedades, devido à miscigenação, principalmente, com os povos indígenas e africanos, que utilizam várias práticas culturais de curandeirismo”, destaca a coordenadora da Faculdade Pitágoras.
 
Ainda que ineficazes, Bruna Carvalho defende que as crendices sejam respeitadas. “As práticas populares sempre foram vistas como o primeiro recurso para tratar da saúde de um ente querido. Toda crendice é válida, e, muitas vezes, ela é associada à fé. Os profissionais de saúde devem estar habilitados para lidar com os “cuidados-crendices”, que, muitas vezes, podem causar danos e não benefícios ao doente. Devem demonstrar que a crença é importante, mas que vários estudos e pessoas provaram que naquela situação não terá efeito no auxílio no tratamento do paciente.
 
Portanto, em vez de criticar, os profissionais de saúde devem conhecer melhor e aprender a lidar com tais práticas.” Ela alerta que as pessoas precisam entender que é necessário ter conhecimento sobre o que faz mal, as práticas que afetam a saúde e o que será, definitivamente, um 'placebo do bem'.
 

Do leite fraco à gripe após banho noturno 
 
No trabalho da enfermeira Bruna Carvalho, a maior parte dos mitos está relacionado à amamentação. Ela alerta para várias crendices: “Camomila é melhor que leite materno para cólicas – mesmo o bebê estando em aleitamento exclusivo; o leite materno é fraco, não sustenta o bebê, deve-se utilizar leite de vaca e fórmulas; não amamentar porque o seio vai cair; colocar óleo de mamona ou pó de café no coto umbilical para cicatrizar; não dar banho na criança nos primeiros dias, pois ela pode morrer; o uso de folhas novas do olho da goiabeira, goiabeira vermelha, no tratamento das crises diarreicas. Tudo isso é mito.”
 
A enfermeira lembra ainda de algumas superstições que esbarram em fatos aos quais as pessoas devem prestar atenção. Uma delas diz que ler no escuro “estraga” a vista. Segundo Bruna Carvalho, trata-se de um mito, pois ler em lugares mais escuros não faz mal para a saúde dos olhos de maneira definitiva. Contudo, essa prática aumenta o cansaço da visão e provoca dores de cabeça.
Outra crendice supõe que ficar vesgo em ambiente de muito vento deixará a pessoa nessa condição de forma irreversível. “Enviesar os olhos de modo voluntário não causa danos. No entanto, se estiver ocorrendo de maneira involuntária, a pessoa pode ter estrabismo e é recomendado consultar um médico”, orienta a enfermeira.
 
E aquela crença no dito popular que associa a ocorrência de gripe à pessoa que dormir com o cabelo molhado? “A afirmação é verdadeira até certo ponto. Se estiver em uma condição aquecida e pisar em uma superfície gelada, isso pode, sim, causar uma alteração brusca de temperatura corporal e um efeito de 'friagem'. Mas gripes e resfriados (e a maioria das doenças respiratórias) são causados por vírus, e não por oscilações de temperatura”, diz Bruna Carvalho.
 
Se você acredita que ficar muito perto da TV prejudica a visão, saiba o que orienta a ciência. Em linhas gerais, trata-se de um mito, mas a necessidade de ficar próximo do televisor quando não se consegue ler a legenda dos programas ou a imagem fica desfocada pode indicar problemas de visão. Outro mito antigo assegura que faz mal à mulher lavar os cabelos durante o período da menstruação. “Esse mito data do tempo em que ficar com o cabelo molhado por muito tempo era considerado causa de resfriado. No entanto, lavar o cabelo durante o ciclo menstrual não causa nenhum mal à saúde. Nada mais é do que um hábito de higiene”, observa Bruna Carvalho.
 
Parte do folclore, crendice é aquela crença em coisas que a lógica não explica. Há pessoas que vão se espantar, criticar, gozar o narrador, mas há também quem acredite piamente, defenda e pratique o ensinamento de senso comum, mesmo que não traga resultados. A área de nutrição, em particular, convive com uma profusão de crenças sem amparo científico. O Bem Viver procurou outros especialistas que chamam a atenção para os perigos de mergulhar nesses ditos populares sem sabedoria. (LM) 
 

Novo olhar sobre as lendas

Os médicos americanos Aaron Carroll e Rachel Vreeman reuniram em livro um conjunto de mitos relacionados à medicina e as explicações das teorias que originaram cada um deles. A publicação se chama “Don’t swallow your bubblegum: Myths, half-truths and outright lies about your body and health”, com a versão em português “Não engula o chiclete – Mitos, meias verdades e mentiras descaradas sobre o corpo e a saúde” (foto). Lançada nos Estados Unidos, pela Editora St. Martin's Griffin, e na Grã-Bretanha, editada pela Penguin, a obra trata de lendas antigas que também fazem parte da cultura brasileira. Com bom humor, os autores oferecem coletânia atualizada de mais de 80 textos curtos, incluindo o mito do chiclete que fica grudado no estômago durante sete anos. No Brasil, o título foi lançado pela Editora Martins Flores, tem 232 páginas e custa R$ 49,90. 


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