Jornal Estado de Minas

Crença x ciência

Especialistas desvendam os mitos que representam risco à vida saudável

A nutrição é um dos principais alvos da propagação de tabus, mitos e crendices, na contramão das funções que os alimentos exercem para o bom funcionamento do organismo e de sua importância. O alerta é do médico nutrólogo Enio Cardillo Vieira, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele ensina que  alimentação adequada deve conter fontes de proteínas, gorduras, carboidratos, fibras, vitaminas e sais minerais.




 
Existem, também, substâncias na comida, as quais, embora não sejam essenciais, atuam na promoção da saúde, ou seja, previnem contra doenças. São os chamados fitoquímicos ou fitonutrimentos. Frutas e hortaliças (verduras e legumes), além de serem fontes de vitaminas, sais minerais e fibras, são ricas nesses componentes e devem ser ingeridas fartamente.
 
Mais de 100 mil substâncias químicas que desempenham papel em favor da saúde já foram isoladas de frutas e hortaliças. Muitas delas são precursoras de vitaminas; têm atividade na prevenção contra o câncer,  aterosclerose, hiperglicemia, e contribuem para o controle da pressão arterial, entre outras propriedades.
 
Contudo, isso não significa, avisa Enio Cardillo, que frutas e hortaliças curem as pessoas das doenças. “Muitas plantas contêm princípios ativos que são usados no tratamento de doenças. Esses princípios ativos existem em reduzidas quantidades nas plantas. O que os pesquisadores fazem é isolar os princípios ativos e, posteriormente, sintetizá-los”, explica.




 
Grave problema destacado por Enio Cardillo é que, de forma frequente, os próprios profissionais da área de saúde disseminam informações falsas sobre o poder dos alimentos. Em alguns casos, os consumidores ficam atônitos e passam a encarar os alimentos como “inimigos” que podem causar danos à saúde. Ao Bem Viver, o médico esclarece alguns desses tabus.
 

O que há por trás de histórias 

 
O mal da manga com leite

“Alguns tabus alimentares têm sua origem no tempo da escravatura. Os escravos colhiam frutas e as comiam, às escondidas, à noite. Nquele horário, eles tomavam leite insuficiente para aplacar a fome. Para evitar que os escravos 'roubassem' frutas, os senhores introduziam esses tabus. Como os filhos dos senhores das terras eram entregues aos cuidados de escravas, os tabus reverteram às famílias dos donos dos escravos.”


Misturar bebidas

“Existe crença segundo a qual misturar bebida destilada com fermentada aumenta o estado de embriaguez. O que sucede é que quem mistura bebidas acaba bebendo mais e a embriaguez é resultado do total de álcool consumido, e não da mistura. O fato de as bebidas terem sabores diferentes é que leva ao aumento da quantidade ingerida. O álcool não se multiplica no organismo. 




Na verdade, ele se adiciona.”


Açúcar engorda, ricota não

Carboidratos produzem 4 quilocalorias por grama (kcal/g); proteínas produzem 4kcal/g; gorduras produzem 9kcal/g. Ricota é constituída por proteínas; e doces são ricos em carboidratos. Portanto, ambos engordam igualmente. 
Não existe alimento que engorde ou que emagreça. Nosso organismo funciona como um fogão a lenha:
o que pusermos no fogo queima. 
O que engorda é a quantidade, 
e não qualidade.”

Limão irrita o estômago

“Não existe nada que irrite mais o estômago do que o ácido – ácido clorídrico – que o próprio estômago fabrica. O pH do limão é 4,5 e o pH do estômago é 1,5. Como a escala é logarítmica, esses valores indicam que a acidez do estômago é mil vezes mais forte do que a acidez do limão. Na verdade, algumas pessoas relatam que se sentem aliviadas de dores de estômago quando tomam limonada.”






A falácia da linhaça

“A linhaça virou alimento de moda. De onde veio isso? Sabe-se que os esquimós são protegidos contra diversas doenças, entre as quais se destacam aterosclerose, doenças autoimunes, asma e alguns tipos de câncer. O esquimó alimenta-se de peixes e de animais que ingeriram peixes e, por isso, existe uma recomendação segundo a qual devemos ingerir peixes marinhos duas vezes por semana. Os peixes de água fria são ricos em um tipo de gordura que contém ácidos graxos insaturados que pertencem à família dos ômega-3. Linhaça, nozes, castanhas, óleo de canola, óleo de soja contêm ácidos graxos ômega-3. O ácido graxo que existe nesses produtos vegetais tem 18 átomos de carbono e é chamado de ácido alfa-linolênico (ALA). Os ácidos graxos existentes no óleo de peixe contêm 20 e 22 átomos de carbono. São denominados ácido eicosapentaenoico (EPA) e docosa-hexaenoico (DHA), respectivamente. São eles que conferem proteção ao esquimó. Acontece que nossa capacidade de conversão do ALA em EPA e DHA é de menos de 1%. Portanto, se alguém estiver consumindo linhaça julgando que terá os benefícios conferidos aos esquimós, está enganado. 'Costumo dizer: o distribuidor e o vendedor de linhaça agradecem'”.


O ser humano é o único animal adulto que toma leite

“A tolice dessa assertiva é óbvia. Significa que se dermos leite a um gato ele não o bebe? Até aves tomam leite. Ficou clássica a observação de pombos na Grã-Bretanha que furavam as tampinhas de alumínio dos frascos de leite, como um exemplo de aprendizado e adaptação de animais a problemas inéditos. Se dermos queijo para um cão ele não o comerá? Outros animais não tomam leite porque não têm acesso ao mesmo. Leite é um alimento balanceado, contendo proteína de bom valor biológico, gordura, carboidrato, além de 
vitaminas e sais minerais.


Cerveja produz barriga

“Quando alguém diz isso, pergunta-se: o que o consumidor de cerveja come de tira-gosto, pepino ou tomate?. A causa do acúmulo de gordura em qualquer local é resultado de um balanço energético positivo. Geralmente, o consumidor de cerveja permanece horas no bar bebendo e comendo alimentos de alto conteúdo calórico, o que, claro, resulta em alto aporte de energia.”






Glúten engorda e faz mal

“Essa é uma das últimas tolices que circulam. O trigo é o rei dos cereais e o segundo mais consumido no mundo, só sendo superado pelo arroz, cujo consumo no Oriente é muito elevado. O trigo foi o primeiro grão que o ser humano domesticou. Isso foi há 10 mil anos. Portadores de doença celíaca são sensíveis ao glúten. Não há evidência de que cause danos em pessoas não sensíveis ao glúten.”


Azeite saturado após aquecimento

“O azeite de oliva contém um tipo de ácido graxo que pertence à família do ômega-9. O azeite de oliva é um dos fatores responsáveis pela proteção conferida aos povos mediterrâneos, cuja incidência de aterosclerose, de alguns tipos de câncer e de diversas outras enfermidades é bem mais baixa do que em outros países da Europa. Grécia, Itália, França (o Sul do país), Espanha e Portugal são países onde a longevidade é muito elevada. Nesses países, o azeite de oliva é usado para cozinhar os alimentos. Contudo, não é só o azeite de oliva que é responsável por essa proteção. Esses povos ingerem significativas quantidades de fruta, hortaliça e peixe, pouca carne vermelha e bebem vinho tinto em doses moderadas. Portanto, a chamada dieta mediterrânea consiste de todos esses componentes. Voltando ao azeite de oliva, para saturar uma gordura, isto é, para transformar um óleo em gordura sólida, há que se submeter o óleo a uma atmosfera de hidrogênio, sob pressão, usando-se níquel como catalisador. A gordura saturada é sólida. O azeite fica sólido após aquecimento? Agora, pergunta-se: onde existem hidrogênio, um cilindro para exercer a pressão e níquel como catalisador perto do fogão onde o azeite está sendo aquecido?. Além do mais, se o azeite fica saturado, como se explica o papel protetor do azeite entre os 
povos mediterrâneos?”
 
 
Banana prende o intestino

“Esse mito tem origem no fato de que, antes do advento dos antibióticos, um preparado de banana-verde era utilizado para combater diarreia infantil. Na verdade, frutas verdes como goiaba, manga, banana e caju contêm taninos que lhes conferem adstringência, o que é popularmente conhecido como ‘aperto’ na boca quando comemos essas frutas verdes. Taninos, realmente, prendem um pouco o intestino. Contudo, no processo de amadurecimento da fruta, a maioria do tanino desaparece.” 
 
O professor Bruno Viveiros afirma que não se pode correr o risco de negar a produção do conhecimento (foto: Isabelle Chagas/Divulgação)
 
 

Três perguntas para...

Bruno Viveiros
Professor do curso de História da Universidade Estácio, em Belo Horizonte

 
1 - Qual é o valor dos mitos, crendices e superstições que estão enraizadas nas culturas dos povos?

Os mitos são formas de entender e interpretar a realidade. Em um passado remoto, era a maneira encontrada pela humanidade para explicar experiências e vivências sem respostas imediatas ou de difícil entendimento. Com a modernidade, certos questionamentos feitos há séculos pela humanidade ganham explicações à luz da razão ou ciência. Essas, por sua vez, têm sua lógica própria, com critérios, argumentos que embasam o conhecimento. Ainda assim, continuam a existir questões que a ciência (sem nenhum tipo de negacionismo) ainda não é capaz de responder. Isso abre espaço para outras formas de explicação da realidade como mitos, crenças e superstições. Observo que crendice é um termo pejorativo que deve ser evitado.






2 - O que há de positivo e negativo na manifestação de crendices e mitos?

A manifestação de mitos e outras formas de interpretar fenômenos sem explicação aparente existem desde que o mundo é mundo. Por outro lado, o século 19, conhecido como o “século da razão”, foi responsável por tentar abolir, sem sucesso, o lado mágico, místico, transcendente do pensamento humano por meio de uma razão instrumental responsável pela criação de visões de mundo baseadas em normatizações, leis ou regras quase “aritméticas” de interpretação dos mistérios da vida na Terra. O risco que não podemos correr é negar a produção do conhecimento realizada com bases firmes e seguras, próprias do conhecimento acadêmico ou científico, como, por exemplo, tapar o umbigo de um recém-nascido com uma moeda não levando em consideração os procedimentos de assepsia e esterilização. Isso é ignorar procedimentos médicos e de higiene que ajudam a reduzir os riscos de infecção.


3 - Como cada sociedade cria suas crendices e mitos?

Cada sociedade cria seus próprios mitos a partir do medo, da insegurança, do fascínio diante de fatos, eventos e formas de vida que a razão desconhece, não compreende e não consegue explicar. O mundo natural, a noite, o perigo, a insegurança, os infortúnios, o risco diante da morte e a própria imaginação humana são fontes inesgotáveis da crença no sobrenatural, no maravilhoso, no fantástico.  (LM)