Jejum intermitente é uma estratégia terapêutica utilizada desde os primórdios da medicina e um hábito, ou melhor, uma tradição de algumas religiões como o islamismo, que prega o Ramadã, mês no qual os fiéis não se alimentam durante o dia. Nos últimos anos, milhares de estudos científicos relataram as vantagens e limitações do jejum intermitente para tratar a obesidade e outras disfunções metabólicas.
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Abril Amarelo alerta para o diagnóstico precoce do câncer ósseoAumento da atividade neuronal pode auxiliar no combate ao câncer de peleMenopausa e qualidade de vida podem caminhar juntasDia Mundial da Saúde: alimentação saudável é essencial para evitar doenças Dia Mundial do Parkinson: sinais da doença podem aparecer até 10 anos antesCom o sucesso do método, é comum o jejum estar "na boca do povo", porém, tratando-se de saúde, é preciso ter cuidado ao abordar e disseminar o assunto, o que não foi o caso de algumas falas do surfista Pedro Scooby no BBB22. O confinado disse que praticava o jejum de 16 horas, pois "as células começam a se consumir. Daí as células boas comem as ruins, as cancerígenas", disse Pedro.
Mas é realmente assim que funciona? Em resumo, a especialista esclarece que, embora existam evidências de que o jejum intermitente possa ser uma forma de diminuir a inflamação e o estresse oxidativo, assim prevenindo o câncer, ainda não há consenso científico sobre o assunto e mais pesquisas ainda precisam confirmar a hipótese.
Estudos pré-clínicos e ensaios clínicos mostraram que o jejum intermitente apresenta benefícios de amplo espectro para muitas condições de saúde, como obesidade, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, cânceres e distúrbios neurológicos.
"Modelos animais mostram que o jejum intermitente melhora a saúde ao longo da vida, resta determinar se as pessoas podem manter o jejum intermitente por anos e potencialmente acumular os benefícios observados em modelos animais. Os efeitos benéficos da prática envolvem trocas metabólicas e resistência ao estresse celular", conta Garcez.
A hipótese mais estudada é de que a restrição alimentar por longos períodos, em protocolos de 16 a 48 horas, pode estar relacionada com a modulação da autofagia, um fenômeno de degradação e reciclagem que as células utilizam para eliminar toxinas.
Um estudo brasileiro da UNIFESP, publicado em 2018, aponta a possibilidade de usar a manipulação dietética como um modulador de autofagia "bem como uma intervenção custo-efetiva para aumentar a resposta na desafiadora arena oncológica. Além disso, o jejum pode proteger as células normais da toxicidade dos agentes anticancerígenos, reduzindo os efeitos colaterais nos pacientes e aumentando os efeitos nocivos da quimioterapia, radioterapia e terapia direcionada em células tumorais", diz o estudo.
Em agosto do ano passado, uma pesquisa publicada na ACS (American Cancer Society) Journals concluiu que os efeitos do jejum intermitente em resultados de câncer clinicamente relevantes, como incidência da doença e prognóstico após o diagnóstico de câncer, são desconhecidos devido à falta de estudos em humanos.
"Estudos em humanos avaliando os efeitos do jejum intermitente na sinalização de crescimento da insulina e outros marcadores hormonais e inflamatórios pertinentes da carcinogênese parecem ser clinicamente insignificantes, pelo menos com os dados atuais, que muitas vezes carecem de poder estatístico e acompanhamento de longo prazo", destacou a pesquisa.
O trabalho, entretanto, mostrou que a obesidade, com suas alterações metabólicas, moleculares e imunológicas associadas, aumenta o risco e piora o prognóstico de muitos cânceres comuns, consequentemente, o controle de peso é crucial para pacientes com câncer e sobreviventes de câncer.
Efeito contrário
"Estudos mostraram evidências de que os programas de restrição calórica intermitente produzem perda de peso equivalente quando comparados com os de restrição calórica contínua, com 9 dos 11 estudos revisados mostrando nenhuma diferença entre os grupos em peso ou perda de gordura corporal. Mas é necessário pontuar que o déficit calórico (comer menos do que o corpo gasta) deve ser mantido. Se não houver um planejamento e o consumo de calorias for excessivo nos períodos de ingesta alimentar, pode haver ganho de peso e piora de perfil metabólico", pontua a médica.
Dessa forma, o jejum intermitente, como uma dieta restritiva, pode ser uma estratégia de restrição energética periódica ou alimentação com restrição de tempo, com periodicidade variável.
Vários regimes de restrição de ingestão calórica intermitente, reitera a profissional, ganharam popularidade nos últimos anos como estratégias para alcançar a perda de peso e outros benefícios metabólicos à saúde.
"Esses protocolos envolvem períodos recorrentes com pouca ou nenhuma ingestão de energia (por exemplo, 16 a 48 h), alternados com períodos intermediários de ingestão de alimentos. Entre as principais estratégias estão o jejum intermitente com restrição energética (diminuição de calorias na dieta) de aproximadamente 60% em 2 ou 3 dias por semana, ou em dias alternados e alimentação com restrição de tempo, com limitação do período diário de consumo alimentar para uma 'janela' (período em que se pode comer) de 10h, 8h ou menos, diariamente ou na maioria dos dias da semana".
Garcez enfatiza, no entanto, que o jejum intermitente deve ser alternado com uma dieta saudável, equilibrada e variada e qualquer outra dieta de grande restrição deve ser evitada. Também não há sentido em uma alimentação desequilibrada, com alto consumo de calorias liberadas, alternada com períodos de jejum.
Outro ponto importante é aproveitar a janela do sono para o jejum. O ideal é acompanhar o ritmo circadiano e fazer jejum no período noturno, para não alterar o ciclo diário de sono e vigília. Não há um período pré-definido para o jejum e ele pode ser feito no resto da vida, desde que o paciente não se enquadre em nenhuma das contraindicações (crianças, idosos, gestantes, diabéticos, portadores de insuficiência renal, pessoas com anemias, imunodeprimidos e na presença de doenças infecciosas).
"É muito difícil a manutenção de um protocolo de jejum intermitente por tempo indeterminado e contínuo. O melhor a fazer é ter um acompanhamento médico nutrológico para adoção dessa ou de outras estratégias", completa a especialista.
Outras dietas contra o câncer
Outros padrões de dieta também estão sendo testados contra o câncer. Em julho do ano passado, um estudo publicado na Neurology, revista médica da American Academy of Neurology, avaliou a segurança da dieta cetogênica, rica em gordura e pobre em carboidratos no tratamento de tumores cerebrais. O pequeno estudo demonstrou que a dieta era segura e viável para pessoas com tumores cerebrais chamados astrocitomas, que poderiam ser de baixo grau ou alto grau.
"Não há tratamentos curativos para esses tipos de tumores cerebrais e as taxas de sobrevivência são baixas, portanto, quaisquer novos avanços são muito bem-vindos. Todas as pessoas haviam completado o tratamento de radioterapia e quimioterapia. A dieta levou a mudanças no metabolismo do corpo e do cérebro, mas o estudo não foi desenhado para determinar se a dieta poderia retardar o crescimento do tumor ou melhorar a sobrevida, apenas para determinar a segurança, viabilidade e mudanças no metabolismo tumoral", destaca Gabriel Novaes de Rezende Batistella, médico neurologista e neuro-oncologista do HCor, membro da Society for Neuro-Oncology Latin America (SNOLA).
Segundo a médica nutróloga, nessa dieta, o corpo muda o que usa para obter energia - em vez de carboidratos, usa o que se chama cetonas. "Fisiologicamente falando, faz sentido diminuir o apetite através da produção dos corpos cetônicos, mas a prática traz efeitos colaterais relevantes e não deve ser iniciada sem o acompanhamento de um especialista. As refeições nessa dieta geralmente contêm proteínas de alto valor biológico, consumo de gorduras saudáveis e quantidades muito restritas de carboidratos complexos", elucida Garcez.
As células cancerosas dependem, em parte, da glicose e frutose, e de seu metabolismo, para se dividir, crescer e se manterem viáveis. Como a dieta cetogênica é pobre em açúcar, as células cerebrais normais poderiam sobreviver com cetonas, mas a teoria é a de que as células cancerosas não podem usar cetonas como energia e dependeriam de outras formas para sobreviver, no entanto, segundo Batistella, é absolutamente improvável que sozinha a dieta cetogênica seja útil no tratamento, assim como não temos qualquer evidência hoje de que compense sugerir este tipo de dieta para pacientes que tratam um tumor cerebral.
"Esperamos que mais estudos ajudem a determinar se essa dieta pode prevenir o crescimento de tumores cerebrais e ajudar as pessoas a viver mais, mas esses resultados mostram que a dieta pode ser segura para pessoas com tumores cerebrais e produzir mudanças no metabolismo do corpo e do cérebro com sucesso", finaliza Gabriel.
* Estagiária sob supervisão da subeditora Fernanda Borges.