Legalizada em 33 países para fim medicinal ou recreativo, a maconha está no centro do debate de formuladores de políticas públicas e de especialistas em saúde, que tentam pesar os benefícios e malefícios em potencial da droga. Substâncias extraídas da planta são usadas há pelo menos 5 mil anos e, somente no século 20, ela passou a ser criminalizada, uma tendência que muitas nações e estados começam a reverter. Agora, estudo publicado na revista Jama Psychiatry, da Associação Médica Norte-Americana, promete acalorar a discussão, trazendo evidências de que o consumo de cânabis na adolescência aumenta o risco de depressão, ansiedade e comportamento suicida na idade adulta.
Trata-se da primeira meta-análise – uma revisão científica de estudos sobre o tema – a investigar essa associação. Embora trabalhos anteriores tenham encontrado relação entre uso da droga e doenças mentais como esquizofrenia, depressão e ansiedade em adultos, nenhuma pesquisa de grande porte havia relacionado o uso da maconha na adolescência e a ocorrência aumentada de importantes transtornos, além de suicídio, mais tarde.
Liderada por Gabriella Gobbi, pesquisadora do Programa de Reparo do Cérebro e Neurociência Integrativa (BraIN) da Universidade McGill, no Canadá, a equipe fez uma revisão de 11 estudos internacionais que, juntos, envolveram 23.317 pessoas de 18 a 35 anos e tinham como objetivo analisar casos de depressão, ansiedade, ideação suicida e tentativa de suicídio. Em sete deles, foi perguntado aos participantes sobre o uso de maconha durante a adolescência, o que permitiu à equipe canadense estimar a associação entre o consumo da droga nessa fase da vida e o risco de transtornos mentais na idade adulta.
“O cérebro está em desenvolvimento até os 25 anos de idade e, até agora, pouca atenção foi dispensada à avaliação do impacto do consumo da maconha no risco de depressão e suicídio”, observa Gobbi. De acordo com ela, a América do Norte concentra as maiores taxas de uso de cânabis na juventude: mais de 20% dos adolescentes norte-americanos afirmam usar a droga, enquanto que, no Canadá, jovens de 15 a 25 anos são a faixa em que há maior utilização da maconha (entre 20% e 33%).
No Brasil, o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) de 2012 indica que 1,5 milhão de adolescentes e adultos fumam cânabis diariamente, sendo que 62% tiveram o primeiro contato com a substância antes dos 18 anos. Já a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), coordenada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informa que, em 2016, 236,8 mil estudantes já tinham utilizado alguma droga ilícita — 6 mil a mais que o relatório anterior, de 2012. Ao mesmo tempo, o mundo enfrenta uma epidemia de depressão e suicídio. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2005 e 2015, houve aumento de 18,4% nos diagnósticos da doença. O suicídio é uma das principais causas de morte entre jovens: no Brasil, já é a segunda.
Cérebro
Na meta-análise canadense, os autores encontraram um risco aumentado de depressão e ansiedade de 7%. Já os casos de suicídio (ideação e tentativa) foram três vezes e meia maiores entre os adultos que, na adolescência, usaram maconha. “Esse é o primeiro estudo que lança luz sobre a associação do uso contínuo da maconha na adolescência e o risco de depressão e suicídio mais tarde. Não temos como saber se essas pessoas usam a droga porque são ansiosas e têm depressão e, assim como ocorre com o álcool, buscam na maconha uma forma de se acalmar momentaneamente ou se a droga é que provoca esse efeito”, destaca o psiquiatra João Armando de Castro Santos, especialista em dependência química do Instituto Castro Santos.
Mas existem pistas de que essa segunda hipótese é a mais provável. Além de o cérebro ainda estar se formando na adolescência, o especialista lembra que a droga age em áreas cerebrais relacionadas previamente a transtornos mentais. “Existia um remédio, o rimonabanto, que atuava no mesmo receptor da maconha. Ele foi retirado do mercado porque aumentava em três vezes o risco de suicídio”, exemplifica Castro Santos.
Estudos de neuroimagem também têm ajudado a visualizar o impacto da cânabis no cérebro adolescente. Um artigo europeu publicado na revista Jneurosci com jovens de 14 anos mostrou que regiões ricas em receptores canabinoides apresentam diferenças estruturais naqueles que fazem uso da droga. Mesmo os participantes que consomem modestamente a maconha — uma ou duas vezes por semana — têm volume aumentado nessas áreas.
Os autores demonstraram, além disso, uma associação entre o aumento da matéria cinza cerebral dos usuários com sintomas de ansiedade reportados por eles mesmos. “Dada a importância do papel do sistema canabinoide endógeno no desenvolvimento do cérebro na adolescência, os jovens podem ser particularmente vulneráveis ao efeito do THC, o componente psicoativo primário da maconha”, afirma Catherine Orr, pesquisadora de biopsicologia da Universidade de Swinburne, na Austrália, e um dos autores do trabalho, divulgado em janeiro.
Psicoses
Uma outra pesquisa, publicada, no ano passado, pelo Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo dos EUA, comparou a atividade cerebral de 30 jovens usuários de cânabis à de outros 30, do grupo de controle. Os primeiros apresentaram conectividade anormal em importantes regiões associadas à recompensa e à criação de hábitos. Essas mesmas áreas são conhecidas por estar alteradas em pacientes de psicoses.
Os autores do estudo canadense acreditam que o resultado poderá influenciar o debate público sobre a maconha. “Muitos jovens que consomem cânabis correm o risco de desenvolver depressão e comportamento suicida. Por isso, é muito importante que as autoridades sejam mais proativas nas campanhas preventivas. Esperamos que as descobertas estimulem as organizações de saúde pública a usarem estratégias para reduzir o uso de cânabis entre os jovens”, diz Gabriella Gobbi.
"Não temos como saber se essas pessoas usam
a droga porque são ansiosas e têm depressão e (…) buscam na maconha uma forma de se acalmar momentaneamente
ou se a droga é que provoca esse efeito”
. João Armando de Castro Santos,
psiquiatra e especialista em dependência química do Instituto Castro Santos