Há 58 anos, o homem ultrapassava a fronteira da Terra e, pela primeira vez, explorava o espaço. Depois da viagem histórica do russo Yuri Gagarin, em 12 de abril de 1961, mais de 550 pessoas vislumbraram o Planeta Azul a centenas de quilômetros de distância e, no caso dos astronautas que chegaram à Lua, a 384,4 mil quilômetros. Mas, se o organismo humano já experimenta alterações quando se vai do litoral à montanha, o que dizer das mudanças possíveis quando uma criatura moldada para viver no ambiente terráqueo passa uma temporada onde não há gravidade?
A Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) já deixou claro que viagens interplanetárias tripuladas estão nos seus planos e, inclusive, tem um programa para estudar o comportamento humano no vizinho Marte. Daí grande parte do interesse da Nasa em estudar, em detalhes, os efeitos que o espaço tem sobre a saúde dos astronautas. Conversando sobre isso com o astronauta Scott Kelly, o diretor do Centro de Epigenética da Universidade Johns Hopkins, Andrew Feinberg, recebeu do amigo uma sugestão: realizar um estudo em que os organismos de gêmeos idênticos seriam monitorados ao longo de um ano. Um ficaria na Terra. O outro, na Estação Espacial Internacional. Scott, que tem um gêmeo chamado Mark, também astronauta, se ofereceu prontamente para participar.
Os resultados do estudo Nasa twins (Nasa gêmeos) foram publicados na sexta-feira, aniversário da primeira viagem espacial, na revista Science, e apresentam uma análise integrada, molecular, fisiológica e comportamental das mudanças ocorridas durante a viagem espacial de um ano (entre 2015 e 2016).
LIMITE De acordo com a Nasa, essas alterações provavelmente estão dentro do limite que se espera para humanos que se encontram sob estresse, como durante a prática de exercícios físicos intensos. Depois de seis meses do desembarque, 91,3% da expressão dos genes do astronauta voltaram ao normal. A agência afirma que, antes de enviar humanos para missões espaciais de longo prazo, é preciso descobrir por que os 8,7% dos níveis de expressão gênica de Scott não retornaram ao que eram anteriormente, e como reverter essa alteração.
De forma geral, o conjunto de resultados mostra que não há nada extremamente preocupante em se mandar uma pessoa para o espaço, do ponto de vista da saúde. Porém, isso não quer dizer que o organismo de Scott foi e voltou da mesma maneira depois de 12 meses na Estação Espacial Internacional.
“O estudo dos gêmeos é, certamente, a visão mais compreensiva que já tivemos da resposta do corpo humano aos voos espaciais”, notou, em uma teleconferência de imprensa, Susan Bailey, pesquisadora da Universidade do Colorado, responsável por chefiar os estudos sobre os biomarcadores associados ao envelhecimento. “Nosso interesse específico estava nos telômeros, a parte final dos nossos cromossomos, que diminui à medida que envelhecemos. Eles podem servir como um biomarcador do envelhecimento acelerado ou de alguns dos riscos à saúde associados, como doença cardiovascular ou câncer”, explicou.
SURPRESA De acordo com Bailey, era esperado que o estresse inerente a uma missão espacial associado a exposições ambientais como radiação e microgravidade pudesse acelerar a perda de telômeros. Os pesquisadores avaliaram o comprimento dessa porção final do cromossomo antes, durante e depois da missão. “Foi bastante surpreendente que o que vimos foi um alongamento. Os telômeros de Scott ficaram maiores durante o voo espacial, comparado ao que eram antes e ao que voltaram a ser depois que ele retornou. A pesquisadora explicou que está buscando correlações entre as alterações dos cromossomos e os padrões modificados da expressão gênica observados por outra equipe de estudos.
Scott Kelly, diretor do Centro de Epigenética da Universidade Johns Hopkins, disse, na teleconferência de imprensa, que o ambiente espacial está associado a diversos fatores de risco para doenças cardiovasculares, devido a alterações no nível de atividade, nos hábitos dietéticos, na qualidade do sono e, principalmente, na exposição à radiação.
VISÃO Outro aspecto analisado pelos pesquisadores foi uma condição comum que afeta astronautas, chamada síndrome neuro-ocular associada a voos espaciais. Ela é caracterizada por mudanças na visão, que volta ao normal quando se retorna à Terra. “Mais recentemente, reportamos alterações que persistiram em alguns dos membros da tripulação depois de jornadas de longa duração na Estação Espacial”, contou Kelly. Em 2011, um grupo de pesquisadores anunciou uma série de problemas oftalmológicos observados em sete astronautas que não cessaram após a chegada à Terra. “Em Scott, documentamos uma distensão da veia jugular no pescoço e o espessamento da pele na testa. O deslocamento de fluido cefálico pode causar congestão venosa na cabeça e no pescoço, o que, por sua vez, é capaz de levar a um aumento na pressão profunda nas veias, talvez prejudicando a drenagem da coroide — os vasos sanguíneos que ficam imediatamente atrás da retina”, afirmou Kelly.
As alterações verificadas no astronauta não podem ser ignoradas e precisam ser mais investigadas, mas, de forma geral, os cientistas não viram contraindicações para uma viagem ao espaço, disseram. “O fato de que estamos vendo um sistema imunológico ativado, além de outras coisas estarem acontecendo, é esperado quando você é colocado em um ambiente anormal e, então, essas coisas são, essencialmente, respostas naturais ao estresse”, afirmou o geneticista Michael P. Snyder, diretor de genômica e medicina personalizada na Escola de Medicina da Universidade de Stanford.
MICROBIOTA DESREGULADA A pesquisa sobre a saúde dos astronautas também descobriu que um voo espacial prolongado afeta o microbioma intestinal. Durante a estada de um ano na Estação Espacial Internacional, o astronauta Scott Kelly teve uma mudança na proporção de duas grandes categorias de bactérias na microbiota. A diversidade de bactérias, no entanto, não mudou durante o voo espacial, algo que uma equipe de pesquisadores liderada pela Universidade de Northwestern achou positivo.
A saúde intestinal afeta a digestão, o metabolismo e a imunidade e, mais recentemente, mudanças no microbioma foram relacionadas a alterações nos ossos, nos músculos e no cérebro. “Não podemos mandar humanos a Marte sem saber como o voo espacial afeta o corpo, incluindo os micróbios que viajam com humanos para lá”, diz Fred W. Turek, pesquisador que liderou o estudo do microbioma. “O plano é enviar pessoas para Marte em 2035, então não podemos esperar até 2033 para obter essa informação”, disse.
Os pesquisadores observaram como a composição das bactérias no intestino de Scott Kelly mudou com o tempo e no espaço. Eles coletaram duas amostras fecais do astronauta antes de ele partir: quatro durante o ano na Estação e três depois que ele retornou à Terra. Mais de 90% da microbiota intestinal pertence a uma das duas grandes categorias: Firmicutes ou Bacteroidetes. Ambas contêm uma mistura de bactérias boas e ruins.
A relação entre esses grupos no intestino de Scott Kelly sofreu uma mudança pronunciada durante o voo espacial — o número de Firmicutes aumentou, enquanto o de Bacteroidetes diminuiu.