A anestesia é um procedimento extremamente comum e necessário na área médica. Há o risco, porém, de uma complicação crítica: a anafilaxia. Trata-se de uma reação alérgica que ocorre minutos após a aplicação de medicamentos ou até horas depois. Caso se agrave, pode ser fatal. Em estudos laboratoriais, pesquisadores franceses identificaram mecanismos relacionados ao problema. As descobertas, publicadas na última edição da revista Science Translational Medicine, podem ajudar no desenvolvimento de novas medidas para garantir a segurança e a tranquilidade nas salas cirúrgicas.
Os autores do estudo contam que um grupo de cientistas, também franceses, publicou, em 2011, uma pesquisa mostrando como a anafilaxia está relacionada a respostas imunes desencadeadas pelo anticorpo IgE. Mais recentemente, os investigadores observaram que essa resposta não aparece em até 20% dos pacientes anafiláticos. “As descobertas nos levaram a supor que outro mecanismo poderia existir nesses indivíduos”, relata Sylvie Chollet-Martin, pesquisadora da Université Paris-Sud.
Ela e colegas analisaram amostras de plasma de 86 pacientes que tiveram anafilaxia em resposta a um dos três agentes bloqueadores neuromusculares (NMBAs) usados comumente durante a anestesia geral e de 86 indivíduos que não enfrentaram a complicação. Os cientistas notaram que os pacientes com reações anafiláticas graves registraram concentrações mais altas de outro anticorpo, o IgG, além de marcadores de ativação de neutrófilos — moléculas pertencentes ao sistema imune.
Para os pesquisadores, esses dados podem ajudar no melhor entendimento da reação anafilática. “Acreditamos que essas informações podem, pelo menos em parte, fechar a lacuna para o diagnóstico etiológico dessa alergia”, frisa Sylvie Chollet-Martin. “Os doentes com um mecanismo isolado de anafilaxia mediada por IgG foram, anteriormente, considerados como não alérgicos. Com essa classificação, eles podiam ser reinjetados com a mesma molécula e, dessa forma, experimentar um choque grave”, alerta.
COMBINAÇÃO DE DROGAS Rogério Ribeiro, anestesiologista do Hospital Anchieta, em Brasília, explica que, durante um procedimento anestésico, grande quantidade de medicamentos é administrada no paciente, sendo que muitos não são exatamente anestésicos. “Entre os anestésicos utilizados destacamos os locais, usados na raquianestesia, por exemplo; os hipnóticos, que fazem o paciente perder a consciência; e os analgésicos potentes, que impedem a pessoa de sentir dor durante a cirurgia. Porém, várias outras substâncias de uso comum na medicina também são utilizadas durante um procedimento anestésico, como antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e bloqueadores neuromusculares”, lista.
Segundo o especialista brasileiro, os casos de anafilaxia durante o período cirúrgico não são comuns. “Mas quando ocorrem, se dão principalmente devido aos bloqueadores neuromusculares, ao látex, composto presente em materiais usados na cirurgia, como as luvas, e aos antibióticos”, diz.
O uso de tantas substâncias dificulta a identificação da causa da anafilaxia. Por isso, de acordo com Rogério Ribeiro, os dados obtidos pelos cientistas franceses são muito importantes para a área médica. “Vale ressaltar que os principais bloqueadores neuromusculares foram testados. Até então, acreditava-se que a exposição prévia poderia ser um dos principais fatores para desencadear reações alérgicas graves. Esse trabalho vem sugerir que outras vias podem estar envolvidas, como a participação de outras células, os neutrófilos. Com isso, testes poderão ser desenvolvidos para diminuir a incidência da anafilaxia quando forem utilizados bloqueadores neuromusculares”, cogita.
MAIS SEGURANÇA A descoberta de novos mecanismos que desencadeiam a anafilaxia abre a oportunidade de desenvolvimento de abordagens que deixem os procedimentos médicos mais seguros. “Pensamos que a quantificação de anticorpos específicos pode ajudar a melhor diagnosticar a etiologia das anafilaxias na sala operatória e, assim, criar métodos mais específicos e seguros durante esse procedimento anestésico”, declara Sylvie Chollet-Martin.
Ela e os colegas pretendem dar continuidade ao estudo porque apostam que outros fatores relacionados à reação alérgica ainda precisam ser decifrados. “O próximo passo é entender melhor esses mecanismos imunológicos, explorar os outros atores potenciais durante a anafilaxia em humanos e também em camundongos. Pensamos que existem vários tipos de anafilaxia, e precisamos classificá-los”, adianta a cientista.
O anestesiologista Rogério Ribeiro também acredita que mais estudos sobre o tema são necessários. “É uma pesquisa de grande relevância para a comunidade científica, que trouxe novos conceitos e revelações. Essa descoberta poderá contribuir enormemente no desenvolvimento de testes a serem feitos em pacientes para diminuir a incidência desse evento grave. No entanto, obviamente, mais observações e pesquisas serão necessárias para colocar os futuros testes em prática”, opina.
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