Um dos aracnídeos mais temidos por sua picada, que pode chegar a matar, o escorpião também é fonte de uma substância promissora no tratamento de duas doenças ainda desafiadoras pela falta de terapias-alvo. Na última edição da revista Science Translational Medicine, dois artigos de diferentes centros de pesquisa mostraram a eficácia de uma pequena proteína do veneno desse animal para eliminar os sintomas da artrite reumatoide sem os efeitos tóxicos dos medicamentos atuais e para matar células cancerosas do tipo de tumor de cérebro mais letal, o glioblastoma.
Tanto no caso da debilitante doença articular quanto no do câncer de cérebro, embora existam tratamentos, eles resultam em efeitos colaterais graves, que sobrecarregam o organismo e afetam estruturas saudáveis. Há tempos, o veneno de animais peçonhentos, como escorpiões, aranhas e cobras, vem sendo estudado por cientistas porque eles contêm uma quantidade muito grande de substâncias químicas com potencial de aplicações médicas variadas. Esses produtos do mecanismo de defesa de muitas espécies são peptídeos, biomoléculas que, assim como as encontradas em plantas, podem dar origem a medicamentos.
No primeiro estudo descrito na Science Translational Medicine, o veneno do artrópode foi usado para aliviar os sintomas da artrite reumatoide (AR), uma doença inflamatória que, além de limitações físicas, provoca dores crônicas nos pacientes. Estima-se que 1% da população mundial sofra do problema. Para controlar as manifestações dolorosas da AR, são usados diversos medicamentos, incluindo os corticoides, que, embora aliviem o desconforto, têm efeitos colaterais graves quando usados continuamente – catarata, glaucoma, osteoporose e diabetes são alguns deles. Outro problema é que, até chegar ao local da inflamação, esses remédios vão perdendo a eficácia, dispersados na corrente sanguínea.
Cientistas do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson, nos Estados Unidos, identificaram uma pequena proteína no veneno do escorpião que se acumula rapidamente na cartilagem das articulações. Quando ligaram os medicamentos esteroides a esses peptídeos, o resultado foi que o remédio se concentrou apenas nas articulações, evitando os efeitos tóxicos do anti-inflamatório corticoide no organismo como um todo. Além disso, como não se espalhou pela corrente sanguínea, a substância ficou muito mais concentrada onde precisava estar e, consequentemente, o resultado foi melhor. O estudo foi feito em camundongos.
“Para pessoas com artrite reumatoide, os efeitos colaterais do controle da doença podem ser tão ruins ou piores que a própria doença”, observa o pesquisador sênior do projeto, Jim Olson. “Os esteroides gostam de ir a qualquer lugar do corpo, exceto onde são mais necessários. Agora, encontramos uma forma de melhorar o alívio da artrite com efeitos colaterais sistêmicos mínimos”, diz. Segundo ele, embora a abordagem esteja distante de ser usada em pacientes humanos, revelou-se uma prova de conceito promissora.
AÇÃO LOCAL
O cientista usa plantas em seu laboratório para descobrir e desenvolver novos medicamentos. O estudo com o veneno do escorpião derivou de uma pesquisa de vários anos, sobre o que Olson chamou de optides, uma mistura de peptídeos e otimização. Essas pequenas proteínas são derivadas de organismos naturais, como escorpiões, cobras, violetas e girassóis. “Minha ideia era que esses peptídeos presentes em venenos ou toxinas pudessem ter uma biodistribuição realmente única no corpo humano. Se os animais usam o veneno para predação, essa substância precisa chegar a determinados lugares do corpo da presa rapidamente”, explica.
Há mais de 10 anos, o pesquisador descobriu uma miniproteína no escorpião amarelo da Palestina (Leiurus quinquestriatu) que se mostrou promissora para testes. Então, Oslo e outros cientistas do Fred Hutch passaram vários anos pesquisando uma forma de utilizá-lo em conjunto com medicamentos. A equipe testou um esteroide chamado triamcinolone acetonide, ou TAA. Os testes em camundongos mostraram que a substância era tão eficaz no tratamento da inflamação quanto a dexametasona, mais poderoso corticoide utilizado para artrite. Mas quando o TAA entra na corrente sanguínea, ele se torna inativo. Logo, não provoca efeitos colaterais detectáveis.
“É uma ideia bastante simples: pegar uma miniproteína que naturalmente vai para a cartilagem e anexar algo a ela para que você consiga a aplicação direcionada do medicamento. Porém, foi algo difícil de realizar”, relata Emily Girard, cientista da equipe no laboratório de Olson e um dos principais autores do estudo. “Tivemos que aprender e adaptar o comportamento da miniproteína, do ligante químico e da carga útil de esteroides para criar um produto que iria para a cartilagem, permanecer por lá o tempo necessário, liberar a droga na taxa certa e ter um efeito local, mas não sistêmico. Há mais coisa a ser feita, mas espero que esse trabalho resulte em uma terapêutica que ajude muitas pessoas”, acrescentou Girard.
De acordo com Oslon, embora esse estudo envolva esteroides, as miniproteínas podem transportar outros medicamentos à cartilagem. “Acreditamos que os esteroides têm um potencial importante como candidato ao desenvolvimento clínico e estamos explorando ativamente outras substâncias que possam ser levadas às articulações. O objetivo a longo prazo é fornecer moléculas que vão além do controle da artrite e realmente revertê-la”.
"Para pessoas com artrite reumatoide, os efeitos colaterais do controle da doença podem ser tão ruins ou piores que a própria doença"
"Minha ideia era que esses peptídeos presentes em venenos ou toxinas pudessem ter uma biodistribuição realmente única no corpo humano”
Jim Olson,
pesquisador sênior do projeto