O cérebro é o órgão mais complexo do corpo humano, o que também faz dele um dos principais alvos de pesquisas científicas. Para decifrá-lo, cientistas têm buscado o auxílio de ferramentas tecnológicas. Com essa premissa, investigadores americanos desenvolveram uma mochila especial, equipada com um refinado sistema computacional, que consegue ler as ondas cerebrais do usuário. A solução dispensa o uso de fios, o que permite uma análise neural apurada durante a locomoção.
Os testes iniciais com o novo dispositivo revelaram alguns segredos relacionados ao rastreamento de objetos e de outras pessoas. As descobertas foram publicadas na revista especializada Nature.
A nova tecnologia foi desenvolvida por cientistas do projeto Brain Initiative (BI), que pertence ao Instituto Nacional de Doenças Neurológicas e Derrame (NIH, em inglês), nos Estados Unidos.
A iniciativa incentiva o desenvolvimento de dispositivos que auxiliem a compreensão da cognição humana. “Muitas das conquistas mais importantes nas pesquisas sobre o cérebro foram desencadeadas por avanços tecnológicos. É disso que se trata o BI. Ele desafia os pesquisadores a criar ferramentas e, em seguida, usar esses recursos para revolucionar nossa compreensão do cérebro e de distúrbios neurais”, afirma, em comunicado, John Ngai, diretor do projeto.
Os pesquisadores do BI, em parceria com cientistas da Universidade da Califórnia (UCLA), desenvolveram uma mochila eletrônica para ser usada exclusivamente em pesquisas neurocientíficas.
A nova ferramenta contém um sistema computacional robusto, que pode se conectar a eletrodos implantados cirurgicamente na cabeça de pacientes, sem a necessidade do uso de fios presos em uma base. Os especialistas explicam que essa característica é essencial para realizar experimentos mais complexos, em que o indivíduo analisado precisa se locomover.
“Até agora, as únicas maneiras de estudar diretamente a atividade do cérebro humano exigiam que o sujeito ficasse quieto, deitado em um enorme escâner cerebral ou ligado a um dispositivo elétrico de gravação”, detalha Nanthai Suthana, pesquisadora da UCLA e uma das desenvolvedoras da tecnologia. “A mochila liberta o paciente e permite estudar como o cérebro funciona durante a realização de movimentos naturais”, completa.
Nos primeiros testes, os pesquisadores observaram se o computador alocado na mochila conseguiria se conectar simultaneamente a vários outros dispositivos eletrônicos, como óculos de realidade virtual, rastreadores de olhos e monitores de coração, pele e respiração.
As análises iniciais foram bastante positivas e abriram as portas para a segunda etapa de estudo, focada na investigação da atuação do cérebro enquanto uma pessoa se locomove.
Epilepsia
A equipe trabalhou com um grupo de participantes com epilepsia resistente a medicamentos, com idade entre 31 e 52 anos, que receberam implantes neurais de eletrodos para controlar convulsões.
“Esses dispositivos residem em um centro de memória no cérebro chamado lobo temporal médio, que descobrimos ser, em ratos, o responsável pelo controle da navegação. Sabemos também que a atividade neural das células presentes nessa área, chamada de ritmos teta, é o que ajuda os roedores a saberem onde eles e outros animais estão. Queríamos ver se o mesmo acontece em humanos”, explica Suthana.
Para examinar o papel que o lobo temporal médio desempenha na navegação humana, os pesquisadores pediram aos participantes do experimento que colocassem a mochila e entrassem em uma sala vazia.
Cada parede era forrada com uma fileira de cinco placas coloridas e numeradas de um a cinco. Por meio de um alto-falante de teto, uma voz computadorizada pedia aos indivíduos que caminhassem até uma das placas. Assim que chegavam ao marcador, a voz pedia aos analisados que procurassem um ponto negro escondido em algum lugar da sala.
Enquanto isso, a mochila registrava as ondas cerebrais e os movimentos dos olhos dos voluntários. As gravações elétricas feitas pela mochila revelaram um padrão distinto na atividade cerebral: picos mais altos dos ritmos teta foram registrados quando os participantes buscavam a figura pedida, comparando aos momentos em que vagavam no meio da sala.
“Esses resultados apoiam a ideia de que essa atividade neural específica ajuda o cérebro durante uma navegação espacial, principalmente quando estamos a procura de algo”, enfatiza Ngai.
Os cientistas observaram resultados semelhantes quando os participantes assistiam a outra pessoa procurarem o mesmo ponto na sala. “Vimos que nosso cérebro usa um código comum para buscar elementos específicos, como objetos, e também a localização de outras pessoas quando estamos em ambientes sociais. É algo fascinante”, frisa Matthias Stangl, pesquisador na UCLA e também autor do estudo.
“Várias evidências indiretas já apontavam para esse papel do lobo temporal medial durante a realização desse tipo de tarefa, mas testar era difícil. Finalmente conseguimos dar validade às nossas suspeitas”, complementa.
Noção de espaço
A mochila tecnológica deverá ser usada pelos cientistas estadunidenses em estudos relacionados à locomoção humana. O principal objetivo do grupo é entender melhor como o cérebro de uma pessoa desenvolve a noção de espaço considerando a proximidade de outros indivíduos.
“As atividades cotidianas exigem que naveguemos constantemente em torno de diversos sujeitos que ocupam o mesmo lugar. Atividades como escolher a fila de segurança mais curta do aeroporto, procurar vaga em um estacionamento lotado ou evitar esbarrar em alguém na pista de dança, todas têm a mesma premissa neural, ao que nos parece. Agora, com a nossa mochila, temos como explorar a fundo essa questão sem nos limitar ao ambiente de laboratório”, diz Nanthai Suthana, pesquisadora da Universidade da Califórnia (UCLA).
Os cientistas também adiantaram que disponibilizarão essa nova ferramenta para outros estudiosos que desejarem aprender mais sobre o cérebro.
Os especialistas acreditam que a mochila e outras tecnologias desenvolvidas com o mesmo objetivo proporcionarão diversos ganhos para a neurociência nos próximos anos.
“Só em 2020, mais de 175 grupos de pesquisa receberam financiamento do governo americano para desenvolver ferramentas semelhantes a nossa. Acreditamos que o mapeamento dos circuitos neurais e o estudo do seu funcionamento contribuirão imensamente para avanços médicos, como na recuperação do movimento de pessoas paralisadas por lesões na medula espinhal”, justifica Matthias Stangl, também da UCLA. “É muito provável que, no futuro, programas de computador ajudem na estimulação de neurônios, e isso é impressionante.”
Para saber mais: Terapia com eletrodos
A epilepsia é uma desordem neurológica que gera crises recorrentes de convulsão e perda temporária de consciência. Para tratar esse problema de saúde, são usados medicamentos antiepilépticos, mas as drogas não geram efeitos em cerca de um terço das pessoas que sofrem com a enfermidade.
Para ajudar esse grupo de pacientes, especialistas da área médica recorreram à estimulação elétrica. Nessa abordagem, primeiro, foram utilizados eletrodos posicionados em cima do couro cabeludo. Eles emitem as descargas e estimulam áreas neurais específicas dos epiléticos, obtendo o resultado esperado.
Recentemente, foram iniciados testes com o implante neural das pequenas peças, com o objetivo de aumentar a força do tratamento. Os resultados obtidos foram positivos, mas estudiosos ressaltam que essa alternativa deve ser explorada apenas em casos graves da enfermidade.