Parece uma corrida com dois competidores. Numa pista, o ser humano avança iniciando a vacinação contra a COVID-19. Mas o coronavírus acelera, promovendo mutações mais contagiosas e capazes de reduzir a proteção das vacinas.
Nessa disputa, há duas estratégias igualmente importantes para os dois adversários: rapidez e adaptabilidade.
Enquanto, o vírus tenta se modificar para entrar com mais facilidade e em maior quantidade no organismo, o ser humano corre contra o tempo para imunizar o quanto antes toda a população e desenvolver vacinas que protejam contra as variantes perigosas.
Segundo pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil, nessa corrida contra o vírus, pessoas já vacinadas contra a COVID-19 poderão ter que receber uma dose adicional de imunizante.
Isso porque duas variantes do coronavírus, a encontrada em Manaus, batizada de P.1, e a da África do Sul, chamada de 501.V2, parecem reduzir a eficácia de vacinas por possuírem a mutação E484K, capaz driblar a ação de anticorpos produzidos pelo corpo. Uma terceira variante encontrada no Reino Unido também passou a apresentar a mutação E484K em algumas regiões do país, segundo análises da Public Health England, agência ligada ao Ministério da Saúde britânico.
"Pessoas que já se vacinaram poderão ter que tomar mais uma dose, quando adaptações das vacinas forem concluídas para proteger contra variantes", disse à BBC News Brasil o virologista Julian Tang, professor da Universidade de Leicester, no Reino Unido.
"Nessa mesma época no ano passado, tínhamos o vírus que surgiu em Wuhan, na China. Neste ano, já temos três variantes que causam preocupação. Nesse período do ano que vem, poderemos ter mais variantes. Então, é possível que a vacina tenha que ser atualizada todo ano para acompanhar esse ritmo", avalia.
O governo britânico confirmou neste domingo (7/2) à BBC que pretende disponibilizar para a sua população vacinas anuais contra a COVID-19, como ocorre atualmente com a gripe.
"Vemos como muito provável uma imunização de reforço no outono (no hemisfério Norte) e, então, vacinações anuais, como fazemos hoje contra a gripe, adaptando para variantes que se espalham pelo mundo", disse o secretário para vacinas Nadhi Zahawi ao programa Andrew Marr, da BBC.
Diversos fabricantes anunciaram que estão desenvolvendo novas vacinas capazes de aumentar a proteção contra variantes com as mutações E484K, embora pesquisas preliminares indiquem que os imunizantes disponíveis ainda oferecem alta proteção, de quase 100%, contra os casos mais graves da doença - aqueles que podem resultar em morte.
O maior problema parece residir na eficácia global das vacinas, que engloba casos leves, moderados e graves.
"O que apareceu nesses dados preliminares é que houve uma queda no percentual de pessoas que não tiveram nenhum sintoma. Mas não teve aumento no percentual de casos graves", disse às BBC News Brasil o virologista Felipe Naveca, que participou do primeiro sequenciamento da variante de Manaus.
"Se a vacina continua protegendo para as formas graves da doença, essas pessoas continuam protegidas para aquilo que é o mais importante da vacina. Agora, se os estudos demonstrarem queda de eficácia nesse sentido, provavelmente as pessoas já vacinadas terão que ser reimunizadas (com vacina adaptada) ou tomar uma dose adicional", completa Naveca, que é pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/FioCruz).
Nesse contexto, a vacina CoronaVac, por enquanto a predominante no Brasil, parece apresentar alguns pontos fortes (veja mais abaixo).
Mas o que exatamente se sabe sobre a queda da proteção das vacinas?
Vacinas já testadas contra novas variantes
As pesquisas mais amplas até o momento foram feitas com as vacinas Novavak e Johnson & Johnson. Um estudo, divulgado em 29 de janeiro, mostrou que a eficácia global (para impedir casos leves, moderados e graves) da Novavak cai de 95,6%, contra o vírus original, para cerca de 60%, quando aplicada na África do Sul, onde predomina a variante com mutação E484K.
Já a vacina Johnson & Johnson, de dose única, mostrou uma eficácia de 72% para formas moderadas e graves da COVID-19 nos Estados Unidos, 28 dias após a injeção. Na África do Sul, esse percentual caiu para 57% e, na América Latina, para 66%.
Mas não houve casos de mortes. Ou seja, a vacina se mostrou 100% eficaz em evitar os casos mais graves da doença. Para esse estudo, foram analisados os resultados de 43,7 mil voluntários.
Atualmente, no Brasil, duas vacinas estão sendo aplicadas: a Oxford-AstraZeneca e a CoronaVac.
No domingo (7), a África do Sul suspendeu o início da vacinação com o imunizante Oxford-AstraZeneca, depois que um estudo preliminar, feito com 2 mil pessoas de, em média, 31 anos, revelou "proteção mínima" contra casos leves e moderados provocados pela variante.
A pesquisa, que ainda não foi publicada e revisada, foi feita pela Universidade de Witwatersrand, em Johannesburgo. Não foi avaliada a eficácia da vacina de Oxford em evitar casos graves e mortes, porque o público do estudo era jovem e sem comorbidades.
A equipe que produz a vacina Oxford-AstraZeneca anunciou que já está trabalhando numa versão adaptada do imunizante e que poderá disponibilizá-la "até o outono" do hemisfério Norte. Ou seja, até 21 de setembro.
A expectativa é que essa nova vacina funcione como uma dose de reforço às duas outras que as pessoas estão recebendo.
O Instituto Butantan, que fabrica a CoronaVac em conjunto com a biofarmacêutica chinesa Sinovac, disse à BBC News Brasil que "realiza estudos em relação à variante identificada no Amazonas, ao mesmo tempo em que a Sinovac avalia variantes encontradas na Inglaterra e na África do Sul".
As fabricantes de vacina Moderna e Novavak disseram que já estão desenvolvendo vacina ou dose de reforço capaz de responder à mutação E484K, enquanto a Pfizer está aprofundando estudos sobre o impacto do seu imunizante contra a variante da África do Sul.
Potencial vantagem da CoronaVac contra variantes
Apesar de a CoronaVac ter percentual menor de eficácia global que vacinas como Oxford-AstraZeneca, Pfizer e Moderna, a tendência é que ela tenha a eficácia menos afetada pelas variantes com a mutação E484K, segundo a especialista em microbiologia Ana Paula Fernandes, professora e pesquisadora do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnóstico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A mutação E484K afeta exatamente o principal ponto de ligação entre o vírus e as células, tornando o "encaixe" mais eficaz. Esse é o local onde os chamados anticorpos neutralizantes, produzidos pelo nosso sistema imunológico, se encaixam para impedir a entrada do vírus na célula.
Logo após se infectar, o corpo passa a produzir anticorpos para tentar combater o vírus. Alguns dos mais importantes deles são justamente os neutralizantes, que se colocam entre a célula e a proteína spike, impedindo que o vírus se fixe e se multiplique pelo organismo humano.
Grande parte das vacinas, inclusive Oxford-AstraZeneca, Novavak e Pfizer, focam em injetar no corpo humano genes da proteína spike do vírus para estimular a produção dos anticorpos neutralizantes. Já a CoronaVac é produzida a partir do vírus inteiro inativado.
"Quando você entra em contato com vírus inteiro inativado, várias células do seu sistema imune são ativadas e são produzidos vários outros anticorpos, não só esse que a gente chama de neutralizante" explica Ana Paula Fernandes, que também é coordenadora da rede nacional de diagnósticos, que une diferentes universidades e institutos de pesquisa do Brasil para responder à pandemia.
O Instituto Butantan também disse, em e-mail enviado à BBC News Brasil, que a CoronaVac, por ser produzida a partir do vírus inteiro inativado, deve gerar "uma resposta imune ampla" contra a doença.
"A vacina que pode perder o maior nível de eficácia é a focada numa única porção da proteína spike, que é onde o vírus está mutando. Porque você tem um repertório menor de outros mecanismos para socorrer o seu organismo, já que sua resposta vai estar focada naquela região da molécula onde o anticorpo encaixa", diz Ana Paula Fernandes.
Mas como é que, mesmo focando exatamente na proteína que sofreu mutação para driblar anticorpos, essas vacinas ainda parecem apresentar grau importante de proteção contra variantes?
"É possível que anticorpos dessas vacinas continuem conseguindo se ligar (à proteína spike) ainda que com menor afinidade. Então, a imunidade não desaparece", explica professora da UFGM.
"E o nosso próprio sistema imune não coloca os ovos numa cesta só. Ele responde à vacina feita para o vírus original apostando em vários tipos de anticorpos, não só os neutralizantes, e ativando células de defesa do organismo, os linfócitos."
Essas hipóteses ajudam a explicar por que as vacinas têm eficácia reduzida contra infecções leves e moderadas, mas continuam garantindo proteção para casos graves.
Os anticorpos ajudam a reduzir a concentração e multiplicação do vírus no nosso organismo, garantindo quadros mais leves ou assintomáticos da doença. Quanto maior a carga viral, maior a possibilidade desenvolver sintomas mais graves da COVID-19.
E se tiver vacinada adaptada, quem deve receber primeiro?
Quando surgirem as primeiras vacinas adaptadas a variantes, os governos deverão tomar uma decisão: focar primeiro em vacinar a população que ainda não recebeu imunizante ou reforçar a proteção dos idosos e mais vulneráveis que já se vacinaram.
Para Ana Paula Fernandes, a melhor estratégia é focar em finalizar a imunização de toda a população para conter as altas taxas de circulação do vírus o mais rápido possível e evitar o surgimento de novas variantes.
Já o virologista Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, defende focar nos extremos da pirâmide: vacinar os extremamente vulneráveis (como idosos com comorbidades graves) e os jovens em idade de trabalhar e estudar.
"Assim, você alcança um meio-termo que garanta proteger os muito vulneráveis e reabrir a economia e as escolas", defende.
Por enquanto, as vacinas só serão oferecidas para maiores de 16 anos, porque não houve testes em crianças e adolescentes, mas a tendência é ampliar a faixa etária, quando esses estudos forem concluídos.
Outra estratégia possível para garantir maior proteção contra o vírus e as variáveis é combinar vacinas diferentes, lembra o virologista Felipe Naveca. Por exemplo, usar a CoronaVac, que utiliza o vírus inteiro inativado, com uma vacina focada na espícula do vírus, como a Oxford-AstraZeneca.
"Você estaria apresentando um vetor diferente na segunda ou terceira dose. O corpo não conheceria aquele vetor e geraria anticorpos variados. Estudos estão sendo conduzidos para verificar o grau de eficácia dessas combinações", ressalta Naveca.
Não há passaporte de imunidade agora
Em um aspecto todos os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil concordam: enquanto a grande maioria da população não tiver sido vacinada, devem ser adotadas medidas proteção e restrição de contato social, inclusive por quem já se vacinou.
Naveca, Tang e Fernandes recomendam, por exemplo, usar máscaras profissionais, como N95, em ambientes fechados, tentar circular apenas ao ar livre ou em ambientes ventilados, abrir o vidro do carro, principalmente se estiver em táxi ou Uber, evitar frequentar bares, restaurantes e outros locais de lazer que concentrem pessoas em local fechado, usar máscaras mesmo ao ar livre, lavar as mãos constantemente e usar álcool em gel.
"As medidas de controle devem ser intensificadas para conter o espalhamento das novas variantes e, principalmente, o surgimento de novas mutações. Quanto mais pessoas infectadas numa população maior a chance de aparecer variante", diz Ana Paula Fernandes.
"Até agora, as variantes têm um mecanismo de escape dos anticorpos, mas as vacinas ainda apresentam eficácia. (Mas) as mutações continuam e temos que minimizar o risco de uma que seja capaz de driblar totalmente as vacinas."
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