Em uma ação inédita, 233 revistas médicas, incluindo uma brasileira, publicaram conjuntamente um editorial pedindo a governos de todo o mundo que cuidem melhor de um paciente: a Terra. O documento foi divulgado a uma semana da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a última reunião internacional antes da conferência do clima, a COP-26, que acontecerá em Glasgow (Reino Unido), em novembro.
Os autores do artigo destacam que se trata de um "momento crucial para exortar todos os países a entregar planos climáticos ambiciosos e aprimorados para honrar as metas do Acordo de Paris", o tratado sobre mudanças climáticas adotado por 195 países em 2015.
Mais de um século de emissões de gases de efeito estufa provocadas por atividades humanas, como a geração de energia, a industrialização e o desmatamento, causam sintomas gravíssimos ao paciente: nunca a temperatura esteve tão alta, o que desencadeia fenômenos extremos, derretimento de geleiras, aumento do nível do mar e desertificação de florestas, entre outros.
No editorial, os autores destacam que, há anos, a ciência mostra que não é só o planeta que adoece; as consequências das mudanças climáticas para a saúde humana são severas e já perceptíveis. "A base de uma sociedade saudável é um meio ambiente saudável", comenta Raffaella Bosurgi, editora executiva da revista Plos Medicine e uma das signatárias do texto.
"Os profissionais de saúde estão na linha de frente da crise da covid-19 e unidos para alertar que um aumento de temperatura acima de 1,5°C, além de se permitir a destruição continuada da natureza, trará a próxima, e muito mais letal, crise. Nações ricas devem agir rápido e fazer mais do que ajudar os países que já sofrem pelas altas temperaturas. 2021 tem de ser o ano do curso das mudanças mundiais - nossa saúde depende disso", afirma, em nota, Fiona Godlee, editora-chefe da revista The British Medical Journal, uma das publicações médicas mais importantes do mundo.
"Nos últimos 20 anos, a mortalidade relacionada ao calor entre pessoas com mais de 65 anos aumentou em mais de 50%. As temperaturas mais altas causam desidratação e perda de função renal, doenças dermatológicas, infecções tropicais, resultados adversos para a saúde mental, complicações na gravidez, alergias, morbidade e mortalidade cardiovascular e pulmonar", diz o editorial. "Os danos afetam desproporcionalmente os mais vulneráveis, incluindo crianças, populações mais velhas, minorias étnicas, comunidades mais pobres e aqueles com problemas de saúde subjacentes."
Os riscos das mudanças climáticas à saúde humana são bem documentados e vão de óbitos por calor ou frio extremos ao surgimento de novas doenças infecciosas. Recentemente, um artigo, publicado na revista BMJ, que fez a revisão de quase 100 pesquisas científicas sobre o tema identificou 10 categorias para descrever problemas de saúde associados às mudanças climáticas, encontrando impactos negativos na gestação, no sistema respiratório, na saúde mental, em alergias de pele e no status nutricional, entre outros. Por sua vez, um documento científico divulgado, no ano passado, pela agência ambiental da Organização das Nações Unidas enfatizou que, para evitar a próxima pandemia causada por micro-organismo zoonótico (transmitido por animais, como o coronavírus da COVID-19), é preciso parar de degradar o meio ambiente.
"De todas as doenças infecciosas humanas novas e emergentes, cerca de 75% saltam de espécies de outros animais para as pessoas", diz a publicação da ONU. "A frequência de micro-organismos patogênicos que saltam de outros animais para as pessoas está aumentando devido a atividades humanas insustentáveis. Pandemias, como o surto da COVID-19, são um resultado previsível e previsto de como as pessoas obtêm e cultivam alimentos, comercializam e consomem animais, além de alterarem o meio ambiente."
Novos padrões
No artigo conjunto publicado, ontem, pelas 233 revistas, os cientistas alertam sobre a necessidade de mudanças nos padrões de consumo, inclusive de alimentos. "Para cortar emissões, restaurar a agrobiodiversidade e parar com a destruição do mundo natural, precisamos mudar os padrões dietéticos globais para alimentos mais locais, frescos ou minimamente processados, e baseados em plantas", diz o climatologista brasileiro Carlos A. Monteiro, um dos 19 autores do editorial e editor chefe da Revista de Saúde Pública, da Universidade de São Paulo (USP).
O editorial ressalta que uma ação global suficiente para enfrentar os desafios das mudanças climáticas só será possível se países ricos se comprometam a cumprir o compromisso, ainda pendente, de fornecer US$ 100 bilhões por ano para ações de mitigação e adaptação, incluindo as voltadas aos sistemas de saúde. Os autores destacam que o dinheiro deve vir na forma de doações, em vez de empréstimos.
A iniciativa da publicação foi da Aliança Saúde nas Mudanças Climáticas do Reino Unido. Em nota, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, comentou sobre o tema do editorial. "Os riscos impostos pelas mudanças climáticas podem superar os de qualquer doença. A pandemia da COVID-19 vai acabar, mas não há vacina para a crise climática. O relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), um consórcio de cientistas de todo o mundo), mostra que cada fração de grau mais quente ameaça nossa saúde e nosso futuro. Da mesma forma, cada ação realizada para limitar as emissões e o aquecimento nos aproxima de um futuro mais saudável e seguro."
O que dizem os signatários
"Fazer o melhor pelos pacientes exige que os profissionais de saúde compartilhem mensagens difíceis todos os dias. Hoje, a comunidade da saúde se reúne para dizer aos líderes mundiais o que eles ainda não ouvem: ações emergenciais na crise ambiental devem ser tomadas para proteger a saúde. Pelo bem da nossa saúde e pelo bem do futuro, as nações ricas devem fazer mais para apoiar os países que mais sofrem." Marcel Olde Rikkert, editor chefe do Dutch Medical Journal, da Holanda.
"O meio ambiente e a saúde estão inextricavelmente interligados. As mudanças climáticas estão nos colocando em perigo de várias maneiras, incluindo seus impactos críticos na saúde e na prestação de cuidados de saúde. Como médicos e profissionais de saúde pública, temos a obrigação não apenas de antecipar novas necessidades de cuidados, mas também de sermos participantes ativos na limitação das causas da crise climática." Eric J. Rubin, editor chefe do The New England Journal of Medicine, dos EUA.
"A mudança climática não é mais teórica. É uma emergência de saúde real, e não há lugar para se esconder. O impacto tornará a COVID-19 algo pequeno. Os profissionais de saúde têm um papel importante a desempenhar nesta emergência, promovendo mudanças no sistema de saúde para reduzir drasticamente as emissões e os resíduos, defendendo politicamente e educando nossos pacientes e o público. Nossos filhos, e os deles, dependem de nós agirmos agora, não amanhã." Nicholas Talley, editor chefe do Medical Journal of Australia, da Austrália.