Desperdício de alimentos e excesso de resíduos eletrônicos têm mais em comum do que o fato de ir parar no caminhão do lixo. Além de ser problemas globais, eles podem ser a solução um do outro. Uma pesquisa do Instituto Politécnico Virginia Tech, nos Estados Unidos, propõe transformar itens como restos de frutas em fonte de energia sustentável para baterias recarregáveis.
“A demanda por essas baterias reutilizáveis disparou, e precisamos encontrar uma maneira de reduzir os impactos ambientais dos dispositivos”, explica Haibo Huang, professor do Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Faculdade de Agricultura e Ciências da Vida. “Essa pesquisa pode ser uma peça do quebra-cabeça para resolver os problemas de energia sustentável para baterias recarregáveis”, aposta.
"Muita energia já é gasta na produção e no transporte de alimentos na cadeia alimentar. Devemos recuperar o valor do desperdício de alimentos. Essa é a oportunidade perfeita, já que a produção de baterias busca materiais diferentes do carbono tradicional"
Haibo Huang, professor do Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Faculdade de Agricultura e Ciências da Vida, do Instituto Politécnico Virginia Tech, nos Estados Unidos
Para ajudar a reduzir o lixo eletrônico, a pesquisa aposta na biomassa gerada por restos de comida. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), cerca de um terço da produção de alimentos mundial – quase 1,3 bilhão de toneladas – é perdida. Nas nações industrializadas, perdem-se US$ 680 bilhões anualmente com esse tipo de desperdício.
Huang conta que estava jogando basquete com o colega Feng Ling, professor-associado do Departamento de Química da Virginia Tech, quando ambos tiveram a ideia de produzir energia para as baterias recarregáveis a partir de restos de alimentos. “Nós pensamos: ‘Por que não converter resíduos de alimentos em materiais de bateria, devido à quantidade de restos de comida que existem em todo o mundo?’. A maior parte disso vai para o lixo e, depois, para aterros. Só precisávamos resolver o lado da bateria.”
O problema é que, para fazer o ânodo de bateria (o terminal negativo), é preciso grafite, um recurso limitado e, portanto, não sustentável. Para solucionar essa questão, primeiro os cientistas testaram diferentes tipos de resíduos alimentares, a fim de ver se algum poderia ser usado no lugar do grafite. “Como engenheiro de processamento de alimentos, posso modificar a composição deles. Poderia, por exemplo, retirar as proteínas e lipídios, junto com alguns dos minerais, para ver como isso afeta o desempenho da bateria”, diz Huang.
Os pesquisadores descobriram que, quando certos elementos foram removidos, os compostos essenciais de celulose, hemiceluloses e lignina poderiam, após tratamento térmico, funcionar o suficiente para uma bateria. Os primeiros testes, que ainda não foram publicados em artigos científicos, demonstraram que a fibra dos resíduos alimentares foi a chave para desenvolver um material de carbono capaz de ser usado como ânodo de bateria.
“Nossa abordagem única de usar materiais de carbono derivados de resíduos agrícolas para hospedar metais alcalinos, como lítio e sódio, trará grandes avanços para o processamento de resíduos agrícolas e tecnologia de bateria”, diz Feng Lin. De acordo com ele, a pesquisa promoverá a utilização de resíduos agrícolas para a produção de carbono com valor agregado e, em última instância, dispositivos de armazenamento de energia.
Os dois cientistas sustentam que usam matérias-primas altamente ajustáveis, abundantes e econômicas para atender às necessidades no campo de armazenamento de energia. “Usar materiais de carbono derivados de resíduos para fazer os ânodos de metal pode reduzir significativamente o uso de metal alcalino por bateria”, afirma Lin.
GRANDES INSTALAÇÕES Nos próximos dois anos, os pesquisadores testarão ainda mais os resíduos alimentares transformados em carbono para otimizar a ciência da bateria. A etapa final será uma análise econômica sobre a viabilidade de implementação dessa tecnologia para garantir sua aplicação, quando lançada no mercado.
Inicialmente, os cientistas preveem que a tecnologia será aplicada nas soluções de armazenamento de energia acessíveis para data centers ou outras grandes instalações. À medida que ocorrerem avanços, eles esperam ser capazes de transformar resíduos em um carbono sem as impurezas encontradas hoje. “Muita energia já é gasta na produção e no transporte de alimentos na cadeia alimentar. Devemos recuperar o valor do desperdício de alimentos. Essa é a oportunidade perfeita, já que a produção de baterias busca materiais diferentes do carbono tradicional”, afirma Huang.
Embora ainda não seja possível, com a tecnologia da dupla, resolver o problema de ter que substituir as pilhas do controle remoto da TV, os pesquisadores acreditam que, com o tempo, essa finalidade será atendida. “Temos a oportunidade de resolver dois problemas urgentes em dois setores diferentes”, diz Huang.
De combustível a solventes
A dupla da Virginia Tech não é a única a investir em resíduos orgânicos em compostos para outras finalidades, incluindo a geração de energia. Segundo relatório divulgado, há poucos dias, pela empresa de consultoria e marketing Visiogain, trata-se de um mercado promissor para os próximos anos, em diversos segmentos.
De acordo com o documento, a ideia de converter restos de alimentos em combustíveis e dispositivos úteis vem ganhando terreno de forma constante, impulsionada pelo avanço das tecnologias e pela necessidade global por fontes de energia limpa e redução da poluição. Segundo o relatório, esses processos podem ajudar a sociedade a formar as chamadas economias circulares, nas quais fluxos de resíduos indesejados são continuamente convertidos em fontes de energia e outras mercadorias úteis.
No Centro Biodesign Swette de Biotecnologia da Universidade Estadual do Arizona, nos EUA, a pesquisadora Anca Delgado utiliza bactérias cujas atividades metabólicas podem converter compostos químicos mais simples em complexos por meio de um processo de crescimento microbiano conhecido como alongamento da cadeia. Assim, ela pretende que os restos de alimentos possam gerar produtos como combustíveis de aviação, lubrificantes, solventes, aditivos alimentares e plásticos.
Em novo estudo, publicado na revista International Society of Microbial Ecology (Isme), a equipe de Delgado descreve, pela primeira vez, como os processos de alongamento da cadeia são realizados por micro-organismos em condições normais no solo. De acordo com ela, o trabalho promete lançar uma nova luz sobre esses processos mal compreendidos na natureza, permitindo aos pesquisadores aproveitá-los para converter fontes orgânicas em produtos valiosos.
PROCESSO NATURAL “Um dos meios mais inovadores e ecológicos de lidar com todo esse lixo orgânico é por meio da digestão anaeróbia, que também promete expandir o suprimento de energia mundial”, diz Delgado. Uma tecnologia emergente promissora, que emprega a digestão anaeróbica, é conhecida como alongamento da cadeia microbiana, processo metabólico usado por micro-organismos anaeróbicos para crescer e adquirir energia. Eles fazem isso combinando produtos químicos de carboxilato, como acetato (C2), com compostos mais reduzidos, como etanol (C2), para produzir carboxilatos de cadeia mais longa (normalmente C4-C8).
Examinando amostras de solo, a equipe da pesquisadora identificou os mecanismos desse processo para que possa ser reproduzido em laboratório, na geração de energia. “Os resultados desse estudo estão abrindo caminho para investigações sobre a atividade de alongamento de cadeia in situ. Do lado da biotecnologia, esse trabalho mostra que os solos podem ser excelentes fontes de micro-organismos alongadores de cadeia para biorreatores voltados à produção de produtos químicos especiais. Essas técnicas oferecem um duplo benefício para a sociedade, minimizando ou eliminando resíduos ambientais ao produzir bioquímicos ou biocombustíveis e outros recursos importantes, por meio da química verde”, diz Delgado. (PO)
Placas de gesso menos poluentes
Pesquisadores da Universidade de Bath, no Reino Unido, estão investigando se as propriedades naturais das bactérias podem ajudar no desenvolvimento de um novo tipo de placa de gesso que não agride o meio ambiente. Eles trabalham com a empresa Adaptavate, que fabrica materiais de construção sustentáveis. O material biodegradável Breathaboard usa resíduos de colheita compostáveis em vez de gesso, é mais leve e tem melhor isolamento térmico e acústico em comparação com a placa tradicional.
Se for bem-sucedido, o projeto-piloto, de seis meses, pode ser ampliado para o desenvolvimento da placa de gesso em escala industrial. “Os biofilmes são formados quando as bactérias se unem para revestir uma superfície, em oposição ao crescimento de aglomerados em forma de pontos em uma placa de Petri. Esse é um projeto realmente empolgante, no qual veremos se podemos explorar as habilidades naturais de formação de biofilme das bactérias para funcionar como um tipo de cola, que ajudará a melhorar as propriedades dos materiais de construção biodegradáveis”, diz Susanne Gebhard, professora sênior do Departamento de Biologia e Bioquímica que lidera o projeto em colaboração com o professor Kevin Paine, do Departamento de Arquitetura e Engenharia Civil da universidade.
“O gesso é o terceiro material de construção mais usado e é responsável por 3% das emissões de carbono do Reino Unido”, conta Jeff Ive, diretor técnico da Adaptavate. “O material é extraído ou produzido a partir de resíduos de usinas de carvão e está se tornando cada vez mais caro para produzir. Por ser à base de sulfato de cálcio, também precisa ser descartado com cuidado para não prejudicar o meio ambiente. Nosso Breathaboard é uma alternativa sustentável de baixo carbono às placas à base de gesso e pode fazer uma diferença real nas emissões de carbono da indústria da construção.”