Há um ano, o mundo aguardava, ansioso, a aplicação das vacinas antiCOVID-19, algo que iria acontecer a partir de dezembro, com o Reino Unido imunizando a primeira pessoa não participante de um ensaio clínico. Agora, com 37% da população global tendo recebido ao menos uma dose, novas substâncias estão sendo desenvolvidas em laboratórios - até sexta-feira, mais de 240, sendo 11 delas na fase final dos estudos, segundo a Regulatory Affaris Professionals, organização mundial que acompanha a regulação de produtos e serviços de saúde.
"A demanda global por vacinas para COVID-19 permanecerá alta na próxima década, devido ao surgimento de variantes letais do Sars-CoV-2, que escapam (das atuais)", diz Robin Shattock, que lidera o projeto de pesquisa de imunizantes para covid-19 no Imperial College de Londres. Neil King, pesquisador da Universidade de Washington em Seattle e cofundador da startup Icosavax, aposta no que chama de "era digital do desenvolvimento de vacinas", usando métodos computacionais para fabricar substâncias que agem em nível atômico, melhorando a eficácia e aumentando a imunogenicidade das pessoas vacinadas.
O laboratório de King, na Universidade de Washington, utiliza a inteligência artificial para prever como as proteínas se comportam e se dobram em formas específicas. O objetivo é, a partir dessa informação, produzir nanopartículas que imitam as características proteicas virais. "Em última análise, acho que o design de proteínas computacionais, em combinação com tecnologias novas e antigas, vai nos permitir fazer vacinas muito mais seguras e eficazes", diz.
A vacina da Universidade de Washington tem como alvo o domínio de ligação ao receptor, uma parte da proteína spike que se funde com as células do hospedeiro. Os pesquisadores criam sinteticamente essas estruturas que, anexadas a nanopartículas esféricas, estimulam uma resposta imunológica no mínimo 10 vezes maior, comparada às substâncias que usam spike inteira em sua fabricação. Segundo King, é uma abordagem totalmente nova, que será útil para a neutralização de outros vírus, além do Sars-CoV-2. Atualmente, o imunizante está na fase 1 de testes na Icosavax.
Abordagens avançadas
No Imperial College de Londres, a equipe chefiada por Robin Shattock aposta na segunda geração de uma tecnologia que já é inovadora, a das vacinas genéticas. Antes da covid-19, nenhuma substância do tipo havia sido utilizada; as primeiras foram as da Pfizer/BioNTech e da Moderna. A plataforma pesquisada por Shattock usa um código genético denominado RNA de auto-amplificação (saRNA), que treina o sistema imunológico no reconhecimento e na resposta às ameaças externas - nesse caso, o Sars-CoV-2.
Porém, há uma importante diferença em relação à abordagem de mRNA. Uma vez injetada no músculo, a mensagem genética faz cópias de si mesma (se auto-amplifica), gerando um número de "instrutores" bem maior. Isso significa, diz o cientista, que ela pode produzir respostas imunológicas fortes e consistentes em uma dosagem muito menor que de outras vacinas baseadas em RNA.
O primeiro ensaio da substância foi publicado recentemente na plataforma de pré-impressão da The Lancet - quando o artigo ainda não foi revisado por outros cientistas que não fazem parte da pesquisa. O estudo mostrou que a vacina de saRNA gerou resposta imunológica em 87% dos 192 participantes, mesmo em doses extremamente baixas. "Agora, estamos refinando a plataforma para desenvolver vacinas para uma variedade de outras doenças infecciosas, além da COVID-19", diz Shattock.
Múltiplos alvos
Outra plataforma promissora - não só para COVID-19, mas no combate a doenças como ebola, malária e tétano - é a da subunidade. Essa tecnologia, que consiste em usar os antígenos purificados ou sintéticos dos patógenos, precisa de um empurrãozinho para que o sistema imunológico reconheça o micro-organismo que se quer combater, são os chamados adjuvantes. Trata-se de substâncias químicas que aumentam a eficácia da vacina.
Na Universidade de Maryland, nos EUA, a plataforma é usada nos testes da NVX-CoV2373, desenvolvida pela start-up de biotecnologia Novavax. "A vacina contém antígenos proteicos que não podem se replicar ou causar a COVID-19. Mas os anticorpos gerados por ela ajudam a proteger o corpo do vírus real", descreve o infectologista Stuart Cohen, que lidera os estudos. Produzidas em reatores a baixo custo, as subunidades da proteína spike foram adicionadas a um adjuvante patenteado pela companhia. Ele é feito de saponina, derivado da casca de uma árvore chilena.
Há duas semanas, resultados de fase 3 da NVX-CoV2373 foram publicados na plataforma de pré-impressão medRxiv. O estudo, feito com 30 mil adultos com mais de 18 anos no México e nos EUA, mostrou que a substância oferece 100% de proteção contra a forma moderada e grave da doença, com eficácia geral de 90,4%. Segundo Cohen, uma das vantagens dessa nova tecnologia é que a vacina pode ser armazenada em estado líquido a uma temperatura entre 2 °C e 8 °C, dispensando a necessidade de freezers especiais, como os exigidos pelos imunizantes à base de RNA.
Duas perguntas / Victor Bertollo - infectologista especialista em medicina tropical do Hospital Anchieta
Quais os principais gaps das vacinas atuais que as futuras deverão preencher?
Temos de deixar claro que as vacinas para covid que foram desenvolvidas e já estão em uso demonstraram uma elevada eficácia e uma alta segurança. Porém, sempre há algo a se evoluir. Por exemplo, há as novas variantes surgindo, que podem impactar em maior ou menor grau as vacinas. Outro ponto é que temos diferentes componentes do sistema imunológico que precisam ser estimulados. Então, pode ser que a gente tenha novas plataformas que tragam uma proteção mais duradoura ou novos esquemas de vacinação que misturem vacinas e doses diversas, que vão complementar as diferentes respostas do sistema imune, o que traria uma proteção maior e mais duradoura.
Outro ponto é que, apesar de que as vacinas em uso atualmente são muito seguras, existe, sim, um risco de efeito adverso, mesmo que muito baixo. Podemos ter novas plataformas que façam esse risco ainda menor. Além disso, há alguns indícios da queda da proteção com o tempo, principalmente em idosos e imunossuprimidos. Então, podemos ter plataformas que aumentem a proteção e a duração dessa proteção, ao mesmo tempo em que conseguem direcionar a resposta imunológica para uma gama mais ampla de variantes.
Todos esses estudos e testes com tecnologias variadas podem ajudar no desenvolvimento de imunizantespara outras doenças?
Esse é um ganho muito grande para a vacinologia em geral. Com essas novas tecnologias sendo desenvolvidas, a gente valida plataformas que se mostraram muito boas e que poderão ser aplicadas para outras doenças. Podemos vir a atualizar plataformas usadas tradicionalmente ao mesmo tempo em que teremos um parque fabril e um leque de opções para novas pandemias que surgirão no futuro. Sem dúvida nenhuma, quanto mais temos globalização e interação entre povos, além da interação de humanos com animais, a tendência é haver novos vírus pandêmicos em potencial. Quanto mais plataformas e capacidade de produção de vacinas, mais preparados estaremos para novas pandemias.
Falta verba para estudo brasileiro
No Brasil, pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) lançaram uma campanha para viabilizar uma vacina com tecnologia 100% nacional e baixo custo de produção. O imunizante é desenvolvido desde junho do ano passado, mas faltam recursos para a conclusão dos testes pré-clínicos e o avanço para o estudo em humanos.
A tecnologia envolve a produção de partículas de um polímero biodegradável, revestidas por unidades específicas e sintéticas da proteína spike, utilizada pelo Sars-CoV-2 para acessar as células humanas. "O imunizante não é composto de um material que se multiplica dentro do organismo. O material que usamos não é vivo, ele só sinaliza que a proteína do vírus está lá, e o nosso corpo reage a isso. O que estamos vendo agora é quanto tempo dura essa proteção", explica Emanuel Maltempi de Souza, um dos pesquisadores responsáveis pelo projeto.
De acordo com o cientista, uma característica inédita do imunizante é que, além de transportar as proteínas, o biopolímero funciona como adjuvante, ou seja, aumenta a resposta imunológica, dispensando a adição de outras substâncias químicas. Isso reduz o custo da vacina. Outra vantagem econômica é a possibilidade de transportar a substância em pó para os locais de imunização, o que barateia a logística.
Para dar continuidade ao projeto, Emanuel Maltempi de Souza estima a necessidade de R$ 50 milhões para as fases de pesquisas clínicas (os testes em humanos). Considerando as despesas administrativas e estruturais, esse custo sobe para R$ 76 milhões. De julho, quando a campanha foi lançada, até 15 de outubro, haviam sido arrecadados R$ 1,41 milhão, sendo R$ 100 mil de pessoas físicas e jurídicas.
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