O uso descontrolado de antibióticos tem gerado um grande problema para a área médica. Quando utilizados desnecessariamente e sem indicação de um especialista, esses remédios perdem a eficácia e impulsionam o surgimento das superbactérias, que podem provocar a morte dos pacientes. Para contornar essa situação, pesquisadores suecos desenvolveram um gel capaz de executar a mesma tarefa que essas drogas nas lesões de pele.
A nova tecnologia é feita de uma mistura de materiais químicos inteligentes, que, por meio de pequenas reações moleculares, consegue atacar os micro-organismos maléficos, além de impulsionar o sistema de defesa natural do corpo. O trabalho foi apresentado na última edição da revista da Sociedade Americana de Química.
Para criar um substituto à altura para os antibióticos, os pesquisadores precisavam de um material que pudesse ser aplicado na pele sem riscos de rejeição. Escolheram os hidrogéis, que não geram reações adversas no organismo, são 100% biodegradáveis e não tóxicos. “Os hidrogéis são excelentes para curativos por causa de suas propriedades tácteis mais macias, adesivas e flexíveis. Eles também mantêm o ambiente úmido, algo benéfico para a cicatrização de feridas”, justificou Michael Malkoch, pesquisador do Instituto Karolinska, na Suécia, e principal autor do estudo científico.
Para fazer com que o material se tornasse antibacteriano, os pesquisadores incorporaram à mistura de hidrogéis duas macromoléculas dendríticas (polietilenoglicol e ácido propiônico). Segundo os especialistas, esses elementos químicos foram usados por apresentar estruturas em forma de ramos, que carregam em suas pontas cargas elétricas catiônicas (positivas). “Eles se assemelham a macieiras lindamente podadas”, comparou Malkoch.
INTERAÇÃO Ao entrar em contato com os agentes infecciosos, os cátions interagem com a parte externa das bactérias (membranas celulares), que também possuem uma carga elétrica, só que negativa (ânions), causando, assim, uma reação que “desmonta” os agentes nocivos. “Quando eles se encontram, temos uma interação que não termina bem para as bactérias”, detalhou o autor do estudo.
Para testar o material, os pesquisadores usaram o novo gel em uma série de bactérias, e observaram resultados extremamente positivos. “Realizamos análises com vários agentes infecciosos clinicamente relevantes, incluindo Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus aureus . Nosso hidrogel se mostrou 100% eficaz em matar a primeira e quase tão eficiente em exterminar a segunda”, frisaram os autores no artigo.
Os pesquisadores também observaram nos testes laboratoriais que a nova tecnologia induziu a expressão de peptídeos antimicrobianos, moléculas presentes naturalmente nas células da pele huma- na. “Esses peptídeos são chamados de antibióticos endógenos, pois nos ajudam a combater bactérias e eliminar a infecção”, explicou Annelie Brauner, também pesquisadora do Instituto Karolinska e co- autora do estudo. “Ao contrário dos antibióticos tradicionais, aos quais as bactérias podem desenvolver resistência rapidamente, com os peptídeos antimicrobianos esse é um efeito raro”, acrescentou.
NOVOS TESTES A equipe do Instituto Karolinska reconhece que o hidrogel precisa passar por mais testes para ser usado como um substituto aos antibióticos. Apesar disso, destacam, desde já, que o método de produção do novo material é simples e barato, o que pode facilitar uma futura comercialização da nova tecnologia. “O gel é uma excelente contribuição na luta contra bactérias multirresistentes, especialmente nos tempos atuais, já que estamos ficando sem antibióticos disponíveis”, frisou Annelie Brauner, coautora do estudo.
Leticia Caramori Cefali, coordenadora do curso de Farmácia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, assinalou que o uso de hidrogéis na área farmacológica tem sido algo constante devido justamente às qualidades do material exploradas pelos criadores do hidrogel. “É um tipo de produto fácil de ser desenvolvido em laboratório. Muitos deles podem ter até uma origem natural. A sua maior vantagem é que ele não causa alergias e irritações à pele, por isso muitas pesquisas têm usado hidrogéis como matéria-prima”, observou.
A especialista lembrou que uma das bactérias testadas pela equipe sueca, a Staphylococcus aureus, desenvolve-se mais na pele. “É algo ideal para o produto desenvolvido por esses cientistas, que foi projetado para ser usado de forma tópica, assim como as pomadas”, disse.
Ressaltou, ainda, a metodologia seguida pela equipe do Instituto Karolinska, que obteve sucesso ao desenvolver um processo químico que copia a ação dos antibióticos.
“É possível usar drogas na confecção dos hidrogéis, mas os pesquisadores suecos preferiram criar uma fórmula em que apenas a interação de cargas positivas e negativas fosse o suficiente para combater as bactérias”, destacou. “Isso é algo que reflete uma necessidade da área. A indústria tem visto que é importante ter opções para evitar que essa crise dos antibióticos se agrave ainda mais.”
Para ela, embora ainda esteja no início, o estudo é promissor. “Essa não é uma opção que resolverá toda a crise, até porque esse novo gel poderá ser usado apenas na pele, porém é mais uma alternativa que contribuirá para manter sob controle o uso descontrolado de antibióticos”, reforçou.
Palavra de especialista
Gabriel Resende
clínico médico do Hospital Santa Marta, em Brasília
Melhor opção, com menor custo
“Esse gel seria uma ótima opção de tratamento de feridas que apresentam risco de contaminação por bactérias, o que hoje é algo de extrema valia no meio hospitalar. Pacientes internados, principalmente de longa data, correm o risco de desenvolver esse tipo de problema. Graças à ação desse produto, poderemos evitar um risco de contaminação, que é algo que nos preocupa bastante durante o tratamento médico, e sem precisar usar os antibióticos, que apresentam um custo caro. Portanto, essa descoberta, apesar de ainda experimental, mostra-se promissora no âmbito do custo/efetividade financeira e de bem-estar ao paciente. Opções como essas serão extremamente bem-vindas.”
Enzimas são testadas e podem combater resistência de bactérias
Duas enzimas envolvidas na produção de gentamicinas pela bactéria de solo Micromonospora echinospora, responsáveis por tornar esse antibiótico menos suscetível à resistência das bactérias, tiveram sua estrutura e função determinadas por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). O conhecimento pode servir de base para modificar outros antibióticos da mesma classe, os aminoglicosídeos, tornando-os capazes de contornar a resistência desenvolvida pelas bactérias e diminuindo a sua toxicidade, o que permitiria uso mais abrangente desses fármacos.
O trabalho, financiado pela Fapesp, parte da tese de doutorado de Priscila dos Santos Bury, foi publicado na revista científica ACS Catalysis.
Segundo os pesquisadores, a gentamicina é comumente usada na forma de cremes e pomadas para tratamento de infecções tópicas, mas não costuma ser aplicada para tratar infecções internas por ser tóxica para o ouvido e para os rins. É considerada um antibiótico injetável de último recurso, para casos de infecções muito resistentes.
"Os aminoglicosídeos foram descobertos na década de 1950 e tratam diversas infecções bacterianas sérias, como a tuberculose. Por serem moléculas mais antigas e já terem sido amplamente utilizadas, as bactérias já adquiriram resistência a muitas delas”, explica o professor Marcio Vinícius Bertacine Dias, coordenador do estudo e responsável pelo Laboratório de Biologia Estrutural Aplicada do ICB.
Feita em colaboração com cientistas da Universidade de Wuhan, na China, e da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, a pesquisa focou em identificar quais eram as enzimas que realizam as últimas modificações na biossíntese das gentamicinas, tornando-as capazes de driblar a resistência das bactérias e manter a sua eficácia – característica que é única dentro de sua classe.
O estudo identificou a estrutura e função das enzimas GenB3 e GenB4, que são similares, mas catalisam reações totalmente diferentes, algo raro dentro da bioquímica.
A partir dessa descoberta, é possível pensar em duas estratégias para aprimorar os antibióticos futuramente: através da biocatálise, utilizando as enzimas para tentar modificar os compostos já existentes in vitro, ou da biologia sintética, introduzindo os genes responsáveis pela expressão dessas enzimas em outros micro-organismos, como bactérias e leveduras, para produzir novas estruturas de anti- microbianos. “Já existe uma tendência na indústria farmacêutica para tentar modificar antibióticos por biocatálise ou biologia sintética e torná-los menos sensíveis à resistência. Com esses estudos, será possível selecionar as características boas de cada molécula e produzir uma molécula que seja menos tóxica e mais eficaz.”
A necessidade de desenvolver novos antibióticos ou adaptar os fármacos atuais é cada vez mais urgente, já que as bactérias evoluem à velocidade maior que a da ciência. “As bactérias criam resistência aos antibióticos em um período de dois a três anos, enquanto a produção de novas moléculas pode durar até 20 anos. É preciso investimento para acelerar estudos como os nossos e desenvolver fármacos mais eficazes, senão os antibióticos podem se tornar obsoletos. E assim voltaríamos a ter mortes por infecções que hoje são facilmente tratadas”, ressalta o pesquisador.