Jornal Estado de Minas

SAÚDE MENTAL

Pandemia deixou o brasileiro mais intolerante e triste, diz pesquisa

Diante de uma doença avassaladora, que levou ao colapso serviços de saúde no país inteiro e que deixa como rastro mais de 600 mil mortes e milhões de infectados, a sociedade brasileira ainda viu emergir uma onda de intolerância que contamina as próprias relações entre as pessoas. Os reflexos podem ser vistos em exemplos de norte a sul do país. É uma briga de trânsito que vira perseguição seguida de atropelamento ou uma discussão por causa do uso de máscaras que acaba em morte.





Para especialistas ouvidos pelo Estado de Minas, ainda que a intolerância já se fizesse presente no Brasil e no mundo desde sempre na história das relações humanas, a pandemia potencializou em muitas pessoas essa falta de empatia, de paciência em relação ao outro e de respeito a normas de convivência.

A intolerância do povo brasileiro é uma construção social antiga, que vem desde os primeiros tempos da colonização do solo brasileiro pelos portugueses, que usaram a violência como uma das estratégias para subjugar os índios que aqui viviam, iniciando um processo de genocídio. É o que explica Eduardo de Castro Carneiro, sociólogo pela Universidade de Brasília e mestre em Sociologia da Violência pela Universidade Federal do Goiás (UFG).

Para ele, o agravamento da intolerância motivado pela pandemia da COVID-19 ocorre porque o cenário atual funciona como um vetor da hiperindividualização, inclusive nas respostas que a sociedade tem recebido dos gestores públicos, que responsabilizam os próprios indivíduos pelo processo de prevenção e cura. “O medo da morte e respostas que são dadas pela subjetividade, sem a percepção clara de um discurso coletivo, de como o Estado lida com isso, como o governo lida com isso, como a sociedade lida com isso, desacopla mais ainda esse pertencimento. Logo, essa situação pode ter como consequência o aumento da intolerância, da violência de um contra o outro, porque (as pessoas) não se percebem como seres sociais de um grupo”, teoriza.





Resposta emocional

A doutora em psicologia e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Suely Sales Guimarães destaca que qualquer mudança de contexto influencia a resposta emocional das pessoas diante de cada situação. Por isso, já é possível observar determinadas mudanças no comportamento das pessoas. “Temos observado um aumento na intolerância porque determinados comportamentos foram afetados pelas condições que elas são obrigadas a vivenciar”, diz.


Suely Guimarães ressalta que o contexto da pandemia, porém, não explica toda essa intensidade da atual onda de intolerância, já que este é um comportamento social que não aflorou agora. Mas que ganha corpo em determinadas circunstâncias e períodos históricos. O atual, de distanciamento social e protocolos de segurança sanitária, influencia de forma muito intensa o comportamento humano.

“Esse contexto da pandemia afeta diferentes segmentos da população de diferentes maneiras. O distanciamento e o isolamento são fatores que têm um efeito depressivo e ansiogênico (que provoca ansiedade ou sofrimento psicológico) muito altos, porque o ser humano busca por natureza a socialização”, explica a acadêmica.





A psicóloga acredita que o contexto é favorável para deixar as pessoas irritadas. De acordo com uma pesquisa sobre saúde mental feita pela Pfizer Brasil em parceria com o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), com 2 mil brasileiros, a irritação ficou em segundo lugar, empatada com a insônia, no rol de sintomas ligados à saúde mental mais sentidos durante a pandemia da COVID-19. Só ficou atrás da tristeza.

Na visão da psiquiatra Fabrícia Signorelli, todas as alterações comportamentais afetam diretamente a irritabilidade das pessoas, e os problemas emocionais causados pela pandemia exacerbaram a intolerância. “Ainda que a intolerância venha em uma onda crescente no Brasil e no mundo, como nós já víamos antes do surgimento da COVID-19, a pandemia foi um catalisador e potencializou em muito a intolerância dos brasileiros”, afirmou.



A médica explica que essa intolerância pode se manifestar como um ataque de fúria, que observamos, por exemplo, em brigas de trânsito, ou insubordinações às normas impostas pelos governantes para enfrentar a ameaça da COVID-19. Em agosto, o Distrito Federal foi palco de um desses episódios de intolerância, quando o advogado Paulo Ricardo Moraes Milhomem, de 37 anos, perseguiu o carro da servidora pública Tatiana Thelecildes Fernandes Machado Matsunaga, de 40, após uma briga de trânsito. Paulo chegou a atropelar a servidora e foi preso.



“O adoecimento mental da população, visto durante a pandemia, e os sintomas de que algo pode estar errado com a saúde mental das pessoas afetam diretamente o comportamento humano. Os transtornos psiquiátricos vão afetar a funcionalidade das pessoas, seja no rendimento do trabalho, nos relacionamentos dentro de casa, nos relacionamentos interpessoais de forma geral”, explica a psiquiatra.

Coletividade

As medidas de isolamento e o ambiente depressivo que a crise sanitária alimenta provocaram um aumento do individualismo. Fabrícia Signorelli explica que essa sensação de esgotamento e a preocupação excessiva da população com as consequências da pandemia tornam difícil ser empático. “É um movimento do ser humano. É muito mais difícil ser empático com o outro quando a gente está vivendo um momento de maior dificuldade pessoal. Mas, quando temos menos pessoas pensando no coletivo, aumenta de certa forma o sofrimento geral”. Para ela, a reação a esses sentimentos precisa vir, justamente, da coletividade.

Para driblar a intolerância, o sociólogo Eduardo Carneiro acredita que é preciso trabalhar a perspectiva do “nós”, do pertencimento ao grupo. “Se cada vez mais a gente individualizar as responsabilidades pelo convívio, cada vez menos vamos ter uma sociedade que cumpra regras, normas e valores que são condensados na perspectiva de vida em grupo”, ressalta.

*Estagiária sob a supervisão do subeditor Vinicius Doria







audima