Quarenta por cento do solo do planeta está degradado devido ao mau uso e à má-administração da terra, segundo um novo relatório da Convenção das Nações Unidas para Combater a Desertificação (UNCCD). O documento, divulgado às vésperas da conferência sobre biodiversidade, que acontece na Costa do Marfim entre 9 e 20 de maio, destaca que o problema ameaça a saúde e a sobrevivência de espécies, incluindo o ser humano. De acordo com o Global Land Outlook 2 (Glo2), se a tendência atual de destruição não sofrer um revés, em 2050 uma área adicional do tamanho da América do Sul estará comprometida.
"A agricultura moderna alterou a face do planeta mais do que qualquer outra atividade humana. Precisamos repensar urgentemente nossos sistemas alimentares globais, que são responsáveis por 80% do desmatamento, 70% do uso de água doce e a maior causa de perda de biodiversidade terrestre", afirmou Ibrahim Thiaw, secretário-executivo da UNCCD, no lançamento do relatório. Segundo as Nações Unidas, a publicação é a mais completa sobre o tema e baseia-se em evidências coletadas nos últimos cinco anos pela convenção e por 21 organizações parceiras. O texto traz mais de 1 mil referências a artigos científicos.
De acordo com Thiaw, não investir na restauração do solo em larga escala significará mais desertificação, erosão e perda de produção agrícola. "Como um recurso finito e nosso ativo natural mais valioso, não podemos nos dar ao luxo de continuar não dando à terra sua devida importância." O relatório indica que o mau uso da terra coloca em risco US$ 44 trilhões, ou metade da produção econômica mundial anual.
Restaurar e reduzir a degradação, as emissões de gases e efeito estufa e a perda de biodiversidade geraria até US$ 140 trilhões ao ano, equivalente a 50% a mais do produto interno bruto (PIB) registrado em 2021.
Com base em evidências científicas, o relatório faz previsões para três cenários de uso da terra. O primeiro considera a manutenção das tendências de degradação do solo e dos recursos, ao mesmo tempo em que aumenta a demanda por alimentos, ração e bioenergia. Nesse caso, até 2050, 16 milhões de quilômetros quadrados contínuos estarão destruídos, com um declínio de produtividade de 12% a 14% das áreas agrícolas, sendo a África subsaariana a mais afetada. Além disso, a má-administração dos recursos naturais adicionará 69 gigatoneladas de carbono, equivalente a 17% das atuais emissões anuais.
Colheitas
O cenário intermediário pressupõe a restauração de cerca de 5 bilhões de hectares (50 milhões de quilômetros quadrados ou 35% da área terrestre global) usando medidas como incentivo a agroflorestas, manejo de pastagens e regeneração natural assistida. Na maioria dos países em desenvolvimento, o rendimento das colheitas seria entre 5% e 10% maior, comparando-se à manutenção das tendências. Embora a biodiversidade continue a diminuir, com perda de 11%, o ritmo seria mais lento. Além disso, haveria uma captura, pelo solo, de 17 gigatoneladas de carbono.
"Assim como as vacinas para covid-19 foram desenvolvidas, testadas e lançadas em velocidade e escala sem precedentes, também a restauração de terras e outras soluções baseadas na natureza devem ser realizadas para evitar mais declínio ambiental e garantir um futuro saudável e próspero", destacou Nichole Barger, pesquisadora do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Colorado, nos EUA, e integrante do comitê de direção do relatório. "Podemos reduzir o risco de transmissão de doenças zoonóticas, aumentar a segurança alimentar e hídrica e melhorar a saúde humana e os meios de subsistência gerenciando, expandindo e conectando áreas protegidas e naturais, melhorando a saúde do solo, das culturas e do gado nos sistemas alimentares e criando áreas verdes dentro e ao redor das cidades."
No cenário com metas mais ambiciosas, haveria um adicional de 83 gigatoneladas de armazenamento de carbono; mais de quatro milhões de quilômetros quadrados de áreas naturais (tamanho da Índia e do Paquistão) seriam salvos e um terço da perda da biodiversidade projetada no primeiro panorama. O relatório destaca que, até 2050, recuperar o total de US$ 1,6 trilhão dos US$ 700 bilhões anuais investidos em subsídios às indústrias agrícolas e aos combustíveis fósseis permitiria recuperar, daqui a duas décadas, 1 bilhão de hectares degradados, área equivalente aos EUA ou à China.
Soluções possíveis
Além de apresentar os cenários, o documento da ONU indica soluções potenciais para a recuperação do solo, com base em exemplos de vários países. Experiências de agrofloresta como a da marca de cosméticos brasileira Natura na extração de óleo vegetal sem desmatamento são citadas no relatório. Segundo o texto, o sistema, implementado no Pará, permitiu que, em cinco anos, os rendimentos do dendê fossem maiores que os produzidos em monoculturas. "Os estudos de caso de todo o mundo apresentados no GLO2 deixam claro que a restauração de terras pode ser implementada em quase todos os ambientes e em muitas escalas espaciais, sugerindo que cada país pode projetar e implementar uma agenda de restauração de terras sob medida para atender às suas necessidades de desenvolvimento", disse Ibrahim Thiaw.
"Restaurar a saúde e a produtividade a longo prazo em paisagens alimentares é uma das principais prioridades para garantir a sustentabilidade futura", destacou a diretora de mecanismo global da UNCCD, Louise Baker. "Assim como um investidor usa capital financeiro para gerar lucros, regenerar uma floresta ou melhorar a saúde do solo fornece retornos na forma de um fornecimento futuro de madeira ou alimentos", exemplificou.
Há três semanas, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU também destacou as consequências do mau uso da terra no aumento da temperatura global. Segundo a análise, feita por 278 cientistas, em 2019, foram emitidas 59 gigatoneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, 54% a mais do valor registrado na década de 1990. A agricultura e as mudanças na utilização do solo foram responsáveis por 22% desses lançamentos.
Mais ciclones tropicais
As mudanças climáticas causadas por atividades humanas tornarão fortes ciclones tropicais duas vezes mais frequentes até meados do século, colocando em risco grandes partes do mundo, de acordo com um estudo publicado na revista Scientific Advances. A análise também projeta que as velocidades máximas do vento associadas a esses fenômenos podem aumentar em torno de 20%. Muitas das áreas de maior risco estão em países de baixa renda, como Camboja, Laos, e Moçambique, além de nações insulares do Pacífico. Segundo os autores, a pesquisa pode ajudar governos e organizações a avaliar melhor a probabilidade de ocorrência desses eventos, apoiando, assim, o desenvolvimento de estratégias de mitigação para minimizar impactos materiais e mortes.