Para que uma pessoa possa enxergar, é necessário que bilhões de células nervosas presentes nos olhos transmitam sinais elétricos entre elas. Mas, assim que um indivíduo morre, a visão é desativada, assim como outras funções do corpo humano. Em um experimento laboratorial, pesquisadores norte-americanos conseguiram "ressuscitar" essa atividade em olhos de doadores, cedidos minutos após o óbito. O trabalho, publicado na última edição da revista Nature, pode contribuir para uma maior compreensão de enfermidades que causam cegueira, além de auxiliar no desenvolvimento de tratamentos para diversos problemas oculares.
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Os especialistas informaram que, em experimentos anteriores, colegas conseguiram "reavivar" os fotorreceptores oculares, mas as estruturas perderam a capacidade de se comunicar com outras células da retina. "Trabalhos passados restauraram uma atividade elétrica muito limitada em olhos de doadores de órgãos. Isso também nunca foi alcançado na região da mácula, nem na medida que demonstramos agora", detalhou Abbas.
Em análises laboratoriais prévias, os especialistas identificaram a privação de oxigênio como o fator crítico que levou a essa perda de comunicação. Para superar o desafio, a equipe projetou um dispositivo para restaurar a oxigenação e outros nutrientes aos olhos retirados de doadores de órgãos. Os cientistas também construíram um aparelho para estimular a retina e medir a atividade elétrica de suas células.
Com essas ferramentas, os investigadores conseguiram restaurar um sinal elétrico específico visto somente em olhos vivos, chamado de "onda b". Os especialistas apresentaram no trabalho a primeira gravação dessa atividade neural feita a partir da retina central de olhos humanos post mortem. "Essas fotorreceptores da mácula responderam à luz brilhante, luzes coloridas e até mesmo flashes muito fracos", destacou Abbas. "Conseguimos fazer as células da retina falarem umas com as outras, da mesma forma que elas se comportam em um olho vivo, para mediar a visão humana", comemorou Frans Vinberg, também autor do estudo e pesquisador da instituição de ensino americano.
Avanços
Os autores do trabalho destacaram que o mesmo processo criado por eles para "reavivar" as células oculares pode ser utilizado para estudar uma gama de tecidos. Segundo eles, esse avanço técnico pode ajudar outros pesquisadores a compreender melhor muitas doenças neurodegenerativas, incluindo enfermidades da retina que causam cegueira.
Para os pesquisadores americanos, a tecnologia pode tornar os processos de pesquisa mais baratos e confiáveis. Eles lembram que investigações com macacos nem sempre rendem resultados positivos, além da dificuldade de usar camundongos nessa área, uma vez que os roedores não têm mácula.
Os pesquisadores também pretendem testar novas terapias com as células do olho humano, acelerando o desenvolvimento de medicamentos. "A comunidade científica, agora, pode estudar a visão humana de maneiras que simplesmente não são possíveis com animais de laboratório", detalhou Vinberg.
"Até agora, não era possível fazer com que as células em todas as diferentes camadas da retina se comunicassem da mesma forma que, normalmente, fazem em uma retina viva", destacou Anne Hanneken, também autora do estudo e pesquisadora do Hospital La Jolla, nos Estados Unidos. "No futuro, poderemos usar essa abordagem para desenvolver tratamentos que melhorem a visão em olhos com doenças que causam cegueira, como a degeneração macular relacionada à idade, por exemplo", acrescentou.
O oftalmologista Adelmo de Jesus, especialista em retina do Visão Hospital de Olhos, em Brasília, considerou que o estudo norte-americano apresenta dados robustos para a área de pesquisa. "Esses pesquisadores exploram algo que não havia sido feito anteriormente, e com resultados muito ricos. Eles têm ainda algumas limitações, pois os olhos de doadores usados na pesquisa tiveram que ser colhidos no máximo em 20 minutos após o óbito. No caso de horas de espera, seria difícil recuperar essa oxigenação e alcançar a reativação", ressalvou o especialista. "Mas, ainda assim, é uma pesquisa promissora, e que pode ajudar a refinar os estudos feitos nessa área, já que como os cientistas mesmo dizem no artigo, é difícil fazer esse tipo de investigação em animais", acrescentou.
Para o especialista, os dados verificados também podem abrir as portas para terapias mais eficazes no futuro. "É um tipo de trabalho que pode contribuir para um melhor entendimento de enfermidades neurodegenerativas, e quem sabe com isso vamos ter opções de tratamento para problemas de saúde que ainda não tem cura", opinou.
Caminho promissor
"As doenças na retina carregam um grande problema, pois a maioria dessas patologias podem desencadear a cegueira irreversível. Hoje, temos disponíveis apenas tratamentos para a retinopatia diabética, porém algumas complicações, como a neurodegeneração macular, ainda carecem de tratamentos eficazes. E isso é algo muito ruim, pois temos que assistir aos pacientes perdendo a visão, e sem poder fazer nada em relação a isso. É um estudo inicial, mas bastante promissor. Ele carrega a possibilidade de ter terapias futuras mais eficazes e nos faz pensar que, mais para frente, poderemos realizar transplantes de retina, assim como é feito atualmente com as córneas. É preciso mais análises, mas a evolução nesses estudos têm sido rápida e nos dá mais esperanças de que isso aconteça um dia."