A condenação de John Wycliffe à morte, no início do século 15, ocorreu quando o réu estava morto há 30 anos.
No entanto, mais de dez anos após a condenação, seu corpo seria retirado do túmulo, os restos mortais acabariam queimados e as cinzas jogadas no rio Swift, no centro da Inglaterra.
Foi isso o que aconteceu com esse filósofo e teólogo medieval inglês, a quem se atribui a proposta da primeira tradução completa da Bíblia do latim para a língua inglesa — algo que era completamente proibido pela Igreja.
Essa tradução, hoje conhecida como a Bíblia de Wycliffe, foi apenas uma das muitas questões que o filósofo formulou contra o modus operandi da Igreja Católica. As ideias dele inspiraram um movimento de dissidência considerado herético e lançaram as bases para uma reforma (ou revolução), que ocorreu mais de um século após sua morte.
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Bíblia Hebraica mais antiga exibida em IsraelQual a origem das bíblias deixadas em gavetas de hotel pelo mundo?Milionário constrói Arca de Noé da forma como ela é descrita na bíbliaSegundo Hudson, o filósofo medieval não era um fundamentalista de forma alguma. Pelo contrário, ele elaborou seu pensamento a partir da discrepância que via entre a riqueza material da Igreja em relação à realidade social da época.
O mundo ao redor
No mesmo programa, o filósofo Anthony Kenny, do Balliol College da Universidade de Oxford, lembrou que as primeiras obras e ensinamentos filosóficos de Wycliffe não refletem nada de heterodoxo ou herético — embora já houvesse nessa linha de raciocínio uma tendência que estava começando a definir esse caminho futuro.
"Ele era extraordinariamente realista", descreveu Kenny. "E ele tirou conclusões políticas desse realismo."
Segundo o especialista, o universal era mais importante do que o individual, e os aspectos comuns eram mais valiosos do que as características particulares de uma pessoa.
"Ele caiu então em um comunismo teórico baseado no realismo", diz Kenny.
Wycliffe começou a refletir mais sobre essas ideias e a escrever sobre elas numa época em que não apenas a Igreja passou a ser questionada, mas também a sociedade como um todo era debatida.
"Há um pano de fundo para tudo isso", contextualiza Rob Luton, professor de História Medieval da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
"Há o Papado de Avignon, quando a residência do Papa foi transferida para a França, que levantou muitas questões sobre a autoridade dentro da própria Igreja."
"Assim como a rápida mudança social que ocorreu após a peste negra, que desafiou os modos tradicionais da sociedade e questionou como alguém poderia agir como cristão diante dessas mudanças", acrescenta.
Outro fato marcante deste período foi a Guerra dos 100 anos, que opôs a Inglaterra à França e a presença da autoridade eclesiástica em solo gaulês.
Não fazia sentido para Wycliffe que o reino e a nobreza da Inglaterra tivessem que responder e sustentar financeiramente uma autoridade localizada em território inimigo.
Mais radical
Wycliffe chegou até a questionar a doutrina da transubstanciação — a capacidade de transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo —, que era (e continua a ser) parte fundamental do catolicismo.
O filósofo não negou a presença de Cristo, mas questionou a necessidade do sacramento.
“Isso foi muito importante para o clero, porque esse é um dos maiores poderes que os padres têm. Ao negar a Eucaristia, esse poder seria retirado deles”, enfatiza o professor Kenny.
Um aspecto importante das teorias de Wycliffe é que ele as escrevia em inglês, para que fossem acessíveis e mais pessoas pudessem debatê-las.
Essa, aliás, é a mesma razão pela qual ele insistiu em traduzir a Bíblia: a ideia era reforçar a importância do texto sagrado como autoridade máxima para os cristãos.
Legado
E, embora essa versão traduzida da Bíblia tenha sido atribuída a ele, seu nome não aparece no texto
"Devo enfatizar que esse deve ter sido um trabalho colaborativo", aponta Hudson.
Foi, portanto, um processo longo e demorado, considerando que na época a imprensa ainda não havia sido inventada — e hoje se conhecem cerca de 300 exemplares da Bíblia de Wycliffe.
Muitas cópias foram produzidas e distribuídas muito depois da morte de Wycliffe, em 1384, por um exército de seguidores das doutrinas dele, que formaram um movimento conhecido como "Lollars".
Essas ideias conseguiram ganhar força graças à passividade de uma Igreja distraída por problemas internos, num período que chegou a ter até três papas ao mesmo tempo.
De fato, tal foi a influência de Wycliffe sobre outros grandes teólogos — como o tcheco Jan Hus e futuros reformadores — que o filósofo é considerado a "Estrela da Manhã", como um dos precursores da Reforma Protestante.
Porém, a Igreja procurou resolver os problemas em 1414 por meio do Concílio de Constança, algo como uma cúpula de emergência formada para tentar unificar o papado.
E uma das primeiras resoluções do concílio foi atacar aqueles que questionavam a autoridade das lideranças católicas.
Hus foi condenado à morte e imediatamente executado, enquanto Wycliffe foi considerado culpado de heresia. Os "Lollars" começaram a ser perseguidos.
Embora tenha demorado até 1428 para que a sentença contra Wycliffe fosse executada, os restos mortais dele foram exumados, queimados e jogados num rio.