Os lagartos Mabuya que vivem nas montanhas andinas da Colômbia não são como os outros répteis.
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Em 2001, as zoólogas Martha Patricia Ramírez-Pinilla e Adriana Jerez, da Universidade Industrial de Santander em Bucaramanga, na Colômbia, revelaram que as fêmeas dos lagartos Mabuya possuem placenta extremamente avançada, não muito diferente da nossa.
Pode ser algo surpreendente para um réptil, que normalmente coloca ovos com cascas endurecidas. Mas a verdadeira revelação veio 16 anos depois, quando Ramírez-Pinilla associou-se ao geneticista Thierry Heidmann, do Instituto Gustave Roussy em Paris, na França, e seus colegas.
Eles descobriram que os lagartos têm um gene essencial para a formação da placenta – e que esse gene veio de um vírus.
Em algum momento nos últimos 25 milhões de anos, os ancestrais dos lagartos foram infectados por um vírus que incorporou parte do seu próprio DNA ao genoma dos répteis. Mas, em vez de serem prejudicados, os lagartos, de alguma forma, cooptaram o DNA viral e o utilizaram para desenvolver suas primeiras placentas.
Graças ao vírus, os lagartos evoluíram para formar um novo órgão.
“A aquisição genômica coincidiu com a mudança dos lagartos, de não placentários, para placentários”, segundo Heidmann.
Mas o incomum sobre esta história é que ela não é nada incomum. Cerca de 10% do genoma humano vêm dos vírus – e o DNA viral desempenhou papel fundamental na nossa evolução.
Parte dele é a fonte da placenta dos mamíferos. Outras partes estão envolvidas na nossa reação imunológica contra doenças e na formação de novos genes. Sem os vírus, os seres humanos não poderiam ter evoluído.
Os vírus são tão simples que muitos biólogos não os consideram totalmente vivos.
Cada vírus é essencialmente um pacote microscópico de material genético. Eles só podem reproduzir-se infectando células vivas – os vírus subvertem a maquinaria celular para fazer cópias de si mesmos. E, ao fazê-lo, frequentemente deixam seus hospedeiros doentes.
Os vírus que inserem seu próprio material genético no genoma do hospedeiro são chamados retrovírus. Sua natureza foi compreendida pela primeira vez nos anos 1960 e 1970, mas alguns deles foram isolados décadas antes.
Depois de uma sugestão, em 1964, de que alguns vírus podem copiar seu próprio material genético no DNA dos seus hospedeiros, pesquisadores identificaram DNA de origem viral nos genomas de galinhas.
Apesar de serem um grupo grande e diverso de vírus, são conhecidos atualmente apenas quatro retrovírus que infectam seres humanos.
Todos eles foram descobertos nos anos 1980: o vírus linfotrópico da célula T humana (HTLV-1), que causa uma forma de câncer, e o vírus relacionado HTLV-2; e os vírus da imunodeficiência humana (HIV) do tipo 1 e 2, que causam a Aids.
Um retrovírus que infecta uma célula dos pulmões ou da pele de alguém pode ser uma má notícia para aquela pessoa, mas as suas consequências para a evolução da nossa espécie são limitadas, já que esse DNA não é transmitido para a geração seguinte.
Ocorre que, às vezes, um retrovírus entra na linha germinal – as células que geram óvulos e espermatozoides, de onde o DNA viral pode ser transmitido para as gerações seguintes.
Estes pedaços de DNA viral são chamados retrovírus endógenos (ERVs, na sigla em inglês). São esses pedaços herdados de DNA viral que podem alterar o curso da evolução.
ERVs em toda parte
A imensa escala de ERVs humanos foi revelada quando foi publicada a primeira versão do genoma humano, em 2001.
“Resultou que havia uma enorme quantidade de sequências virais”, segundo Heidmann. Cerca de 8% do genoma humano consistem de ERVs. E alguns deles são muito antigos.
Um estudo identificou em 2013 um ERV no cromossomo humano 17 que tem pelo menos 104 milhões de anos de idade e, provavelmente, é ainda mais velho. Ou seja, ele é o resultado de um vírus que infectou um mamífero na era em que os dinossauros dominavam a Terra.
O ERV só é encontrado em mamíferos placentários, de forma que pode ter sido integrado pouco depois que os mamíferos placentários se separaram dos seus primos marsupiais.
Os ERVs também não se restringem aos mamíferos e répteis. “Todos os vertebrados possuem retrovírus endógenos”, segundo a virologista molecular Nicole Grandi, da Universidade de Cagliari, na Itália.
A maioria dos ERVs humanos não é exclusiva da nossa espécie, podendo também ser encontrada em pelo menos alguns outros primatas, como os chimpanzés.
Isso indica que eles entraram nos genomas dos primatas milhões de anos atrás, muito antes da evolução da nossa espécie, e que nós os herdamos dos nossos ancestrais.
Curiosamente, não há evidência de que novos ERVs tenham entrado no genoma humano nos últimos milhares de anos. Os únicos retrovírus que a nossa espécie precisa enfrentar atualmente são o HTLV e o HIV, segundo Grandi, e nenhum deles foi encontrado infectando células da linha germinal.
“Atualmente, não encontramos endogenização ativa em seres humanos”, afirma Grandi – o que é muito diferente em outras espécies.
Os coalas, por exemplo, são invadidos atualmente pelo retrovírus do coala (KoRV), cujo DNA é encontrado em algumas populações de coalas e não em outras. Por isso, os geneticistas dos coalas podem observar uma “invasão genômica em tempo real”.
A origem da placenta
Originalmente, acreditava-se que os ERVs humanos fossem “sequências fósseis” inativas ou parte do “DNA lixo” do genoma. Mas ocorre que, da mesma forma que ocorre com grande parte do suposto DNA lixo, muitos ERVs humanos são ativos.
Os ERVs mais estudados do genoma humano são os chamados HERV-W, descritos pela primeira vez em 1999. Eles codificam proteínas chamadas sincitinas, que são encontradas na placenta. Da mesma forma que os lagartos Mabuya, esses genes virais são essenciais para a formação da placenta.
A relação entre os vírus e a placenta faz sentido quando você considera a verdadeira função das sincitinas. Estas proteínas têm a capacidade de fundir duas ou mais células em uma.
Quando eram proteínas virais, os vírus as usavam para fundir-se com a membrana externa de uma célula e, desta forma, infectá-la. Esta capacidade de fusão foi cooptada pela placenta. Ao fundir células da mãe e do embrião, a placenta consegue transferir nutrientes para o embrião e extrair resíduos.
E não são apenas os seres humanos. Proteínas de sincitina similares são encontradas em outros primatas, como os gorilas.
Estudos mais recentes demonstraram que os retrovírus infectaram mamíferos repetidamente ao longo da história evolutiva. Por isso, diferentes grupos de mamíferos, muitas vezes, possuem sincitinas diferentes, derivadas de diferentes retrovírus.
“Nossa hipótese é que, na verdade, houve uma captura de ERV inicial 150 milhões de anos atrás, que gerou o surgimento de mamíferos com placenta”, afirma Heidmann. E, desde então, infecções repetidas parecem ter sobrescrito aquele ERV original, de forma que ele não pode ser encontrado em nenhum mamífero vivo.
O estudo com lagartos Mabuya foi importante porque demonstrou que os lagartos somente desenvolveram placenta depois de adquirir, em primeiro lugar, o ERV do vírus, o que sugere que o mesmo aconteceu no ancestral de todos os mamíferos com placenta.
“Ele forneceu a demonstração da ligação entre o surgimento da placenta e a obtenção da sincitina”, explica Heidmann.
A história das sincitinas e da placenta é um dos exemplos mais dramáticos da influência do DNA viral sobre a evolução. Ela é particularmente importante porque um gene viral completo sobreviveu no genoma humano e codifica uma proteína.
Muitos outros ERVs não codificam proteínas, mas ainda têm suas funções. Alguns contribuem com as células-tronco – as células com múltiplos propósitos encontradas nos embriões em desenvolvimento. E algumas células-tronco são pluripotentes, ou seja, elas podem desenvolver-se em qualquer tipo de célula no corpo, desde neurônios até fibras musculares.
A família de retrovírus chamada HERV-H é essencial para a pluripotência. Mas eles não codificam as proteínas. Na verdade, as sequências HERV-H são copiadas em moléculas chamadas RNAs, que mantêm as células pluripotentes.
“Se elas forem suprimidas, a morfologia celular se altera e ela perde a capacidade de manter seu estado não diferenciado”, afirma a virologista Christine Kozak, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas de Bethesda, no Estado norte-americano de Maryland.
Outros ERVs regulam a atividade dos genes e, portanto, controlam processos do corpo. Os nossos corpos utilizam, por exemplo, uma enzima chamada amilase para decompor carboidratos nos nossos alimentos, como amido.
“Nós temos amilase no pâncreas e, na boca, temos amilase na saliva”, afirma Grandi. O gene da amilase é ativado nas glândulas salivares por uma sequência de DNA chamada promotora – que vem de um ERV.
Os vírus que nos mantêm saudáveis
Muitos cientistas estão interessados no papel dos ERVs na saúde e nas doenças – o que não surpreende, já que eles vêm dos vírus.
Um desses exemplos foi descrito em 2022, por pesquisadores liderados pelo biólogo molecular e geneticista Cédric Feschotte, da Universidade Cornell em Ithaca, Nova York, nos Estados Unidos. A equipe tentava encontrar um caso em seres humanos de um fenômeno já bem conhecido em outros animais.
Às vezes, os genes de ERV codificam proteínas que podem ser cooptadas pelo sistema imunológico e utilizadas para combater outros vírus. Os vírus alvo podem apresentar relação próxima com o vírus que gerou inicialmente o ERV ou ter relação apenas distante.
Feschotte afirma que as proteínas antivirais de ERVs foram estudadas em camundongos, galinhas e gatos. “Mas, de meu conhecimento, não havia exemplos no genoma humano”, segundo ele.
A equipe analisou os ERVs conhecidos no genoma humano e identificou centenas de sequências que poderiam codificar proteínas antivirais. Em seguida, eles se concentraram em um gene chamado Suppressyn, que codifica uma proteína similar às que compõem os outros envelopes de vírus.
A proteína Suppressyn bloqueia a entrada dos retrovírus nas células, pois ela se liga a receptores sobre a membrana celular externa que os próprios vírus usariam para entrar na célula. Feschotte compara com a inserção de uma chave quebrada em uma fechadura, para evitar que outras pessoas destravem a porta.
Suppressyn é principalmente encontrada na placenta e nos embriões em desenvolvimento, o que indica que era originalmente utilizada para evitar que os retrovírus infectassem embriões, que possuem sistemas imunológicos muito fracos.
“Ela protege a linha germinal e não o organismo como um todo”, explica Feschotte. Mas ele acredita que os ERVs provavelmente fazem muito mais no nosso sistema imunológico.
“Temos 1,5 mil candidatos”, segundo ele. “São muitos genes.”
Embora muitos geneticistas ainda pensem em ERVs como inertes ou anômalos, isso não é verdade. “Eles estão em decomposição, mas ainda produzem RNA e muitas proteínas”, afirma Feschotte. “Precisamos dar uma boa olhada neles.”
E o quadro ainda está em desenvolvimento. Um estudo publicado em abril de 2023 concluiu que alguns ERVs ajudam o sistema imunológico a combater células cancerosas.
Os ERVs nos deixam doentes?
Embora eles possam nos proteger contra doenças, não seria surpreendente se alguns ERVs também pudessem ser responsáveis por produzir efeitos negativos à saúde em seres humanos.
“Existe realmente muito interesse no momento pela possibilidade de que os ERVs humanos possam ser associados a doenças”, afirma Christine Kozak. “No momento, existem muitas evidências sugestivas, mas nenhuma prova concreta.”
Para Cédric Feschotte, é fundamental descobrir exatamente o que fazem os ERVs, o que nem sempre entendemos corretamente.
“Desde que os retrovírus endógenos foram descobertos, as pessoas vêm tentando relacioná-los ao câncer”, ele conta. Isso ocorre porque os primeiros ERVs descobertos em animais eram causadores de câncer.
Financiadores “despejaram toneladas de dinheiro” na pesquisa dos ERVs, na esperança de descobrir os mecanismos do câncer e, com isso, possíveis tratamentos. “Muitas pessoas voltaram de mãos vazias.”
O ponto principal é que os ERVs humanos não são capazes de formar vírus que pudessem infectar outras células.
“Em camundongos, existem muitos e, nas galinhas, existem muitos”, afirma Feschotte. “Eles causam todo tipo de doença.” Mas os ERVs humanos estão sujeitos a níveis de controle muito maiores pelo resto do genoma, de forma que eles não causam infecções virais.
“É muito mais sutil e, provavelmente, envolve a regulação ou desregulação genética, eu acho”, segundo Feschotte.
Como os ERVs são distribuídos de forma muito ampla no genoma humano, eles podem coordenar as atividades de diversos genes que são separados por imensas sequências. Muitos processos do corpo precisam que os genes sejam ligados e desligados em sequências precisas e os ERVs desempenham um grande papel nesse controle.
“Agora, estamos revisitando o papel dessas coisas em doenças, mas por meio de mecanismos diferentes”, explica ele.
O papel dos ERVs em doenças, por enquanto, é um mistério. Mas o que sabemos ao certo é que eles são um motor da evolução.
Mosaico humano
Ao inserir novos pedaços de DNA ao longo do nosso genoma, os vírus estimularam incontáveis mudanças da nossa composição genética.
Quando os ERVs estão no lugar, eles podem acionar a duplicação ou exclusão de trechos de DNA e, se as mudanças forem benéficas, eles se espalham. Nenhum animal existiria na sua forma atual sem eles, incluindo os seres humanos.
A lição final é que os seres humanos são, de fato, um mosaico de espécies. Muitos de nós temos parte do DNA, cerca de 2% do nosso genoma, de neandertais. Algumas populações também têm DNA de outro grupo extinto de hominídeos, os denisovanos. E todos nós carregamos 8% do nosso genoma provenientes de vírus.
“Se você pensar no nosso catálogo genético humano, é quase uma questão existencial”, afirma Feschotte. Afinal, cerca de 20 mil genes codificadores de proteínas são conhecidos e uma quantidade comparável do nosso DNA vem de vírus. “É meio que estonteante.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.