Ângela Faria
Oswaldo Aranha – Uma fotobiografia (Editora Capivara), de Pedro Corrêa do Lago, é um livro oportuno. Chega em boa hora a este Brasil mergulhado em Lava-Jatos, mensalões e delações premiadas, cujo povo rejeita a política e os políticos. Mostra como a famosa “arte do possível” era exercitada com gosto e devoção por aquele gaúcho de Alegrete, que dedicou 35 de seus 65 anos à vida pública.
Oswaldo Aranha lutou – no front – nas revoluções gaúchas dos anos 1920. Um tiro estraçalhou-lhe o calcanhar. Articulou a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930, atuou decisivamente para que o Brasil apoiasse os Aliados na 2ª Guerra Mundial, embora o “chefe” ensaiasse se aliar a Hitler e Mussolini. Comandou a reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) que criou o Estado de Israel. Na noite que antecedeu ao suicídio de Vargas, ele e Tancredo Neves se propuseram a defender – a bala – o mandato constitucional do presidente, pressionado a renunciar pelos militares. Enterrado Getúlio, o mineiro e o gaúcho articularam, praticamente à beira do túmulo, a vitoriosa candidatura de Juscelino Kubitschek.
Sem minimizar contradições e complexidades de Aranha e de Getúlio, Pedro Corrêa do Lago diz que seu livro dialoga com o Brasil contemporâneo por evocar uma geração “cuja postura diante da coisa pública era diametralmente oposta àquela adotada hoje pelos políticos”. Julgado severamente pela ditadura que implantou, Getúlio jamais foi acusado de corrupção, lembra o autor.
Filho de abastados clãs gaúchos e paulistas, Oswaldo Aranha deixou como herança uma casa no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, ações de uma revendedora de automóveis e uma fazenda em Barra do Piraí (RJ), lembra o neto, autor da fotobiografia. Detalhe: aquele homem havia comandado os ministérios da Fazenda (duas vezes), das Relações Exteriores e da Justiça.
“Naqueles tempos, o que conferia prestígio às famílias não era o dinheiro, mas a função pública”, observa Corrêa do Lago. Atualmente, ocupar cargo público, em vez de trazer orgulho, é quase motivo de vergonha, compara. De fato. A última pesquisa Datafolha dá bem o tamanho do descrédito: 65% dos brasileiros não confiam nem no ocupante da Presidência da República nem nos integrantes do Congresso Nacional...
O autor, que tinha 2 anos quando Oswaldo Aranha morreu, não escreveu um livro imparcial. De cara, na página 15, cita o padre Antônio Vieira: “Todas as penas nasceram em carne, sangue, e todos, nas tintas de escrever, misturam as cores do seu afeto”. As 411 páginas trazem 600 imagens e 500 citações.
O irmão de Pedro, Luiz Aranha do Lago, doutor em economia pela Universidade de Harvard, assina o texto introdutório. No prefácio, o historiador Jorge Caldeira destaca o “desafio impossível entre proximidade e objetividade” enfrentado pela dupla para rememorar o legado do avô. Porém, a memória familiar pode ser útil à história. Neste caso, ajuda a elucidar sob novos prismas a complexa relação entre Vargas e Aranha, marcada por alianças e rupturas.
Oswaldo e Minas
O jovem “subversivo” gaúcho de 1923 e 1926, de certa forma, evitou que Getúlio compusesse com as forças da República Velha que o derrotaram (fraudulentamente) nas urnas na eleição para a Presidência. Oswaldo articulou ativamente a Revolução de 1930, que pôs o chefe no Palácio do Catete. Em 1933, os dois “trombaram”. Motivo: Minas. Olegário Maciel, que governava o estado, morreu no Palácio da Liberdade. O jovem apoiou seu amigo Virgilio de Mello Franco na disputa com o interventor interino Gustavo Capanema. Perdeu. Getúlio, espertamente, optou pelo desconhecido Benedito Valadares – seu homem de confiança.
Aranha se demitiu do Ministério da Fazenda. Mas logo depois aceitou ser embaixador do Brasil nos EUA. Tornou-se amigo de Walt Disney e aproximou o Brasil do governo Roosevelt. Em 1937, quando Getúlio virou ditador, o gaúcho deixou o cargo por rejeitar o Estado Novo arquitetado por seu desafeto, o mineiro Francisco Campos. Porém, um ano depois, assumia o Ministério das Relações Exteriores, articulando o apoio do Brasil e de Vargas aos Aliados na 2ª Guerra Mundial.
Graças a ele, o Rio de Janeiro entrou, definitivamente, no radar americano. Disney desembarcou em Copacabana e criou o personagem Zé Carioca. O gênio do cinema Orson Welles veio ao país rodar o documentário It’s all true. O filme não saiu, mas o “pai” do Cidadão Kane esteve em Ouro Preto e BH – deu até entrevista ao Estado de Minas em 1942.
Candidatíssimo a candidato à sucessão de Getúlio, o gaúcho foi “abatido” pelo chefe em pleno voo. Em 1944, o ditador mandou fechar a Sociedade dos Amigos da América, onde o chanceler discursaria. Aranha deixou o ministério. Veio a crise: deposto Vargas, Oswaldo apoiou a candidatura oposicionista de Eduardo Gomes ao Palácio do Catete. Venceu o marechal Eurico Dutra, com apoio dos getulistas. Em 1947, o novo presidente o convidou para chefiar a delegação brasileira na Organização das Nações Unidas. Israel foi criado graças à forma como Aranha conduziu, em Nova York, a reunião da ONU que decidiu a partilha da Palestina.
Pedro Corrêa do Lago acredita que a fotobiografia vem recolocar seu “quase esquecido” avô no horizonte do brasileiro, pois só se lembram dele por causa do filé batizado com seu nome.
“Oswaldo Aranha mal é mencionado em recentes publicações sobre a história do Brasil”, lamenta. Experiente livreiro – sua Editora Capivara lançou importantes registros iconográficos sobre a história do Brasil –, o intelectual carioca procurou dar “palavras às imagens”, como gosta de dizer. Aquelas fotos, charges, páginas de jornais e revistas não registram apenas a trajetória de um homem público. Documentam o período em que a imprensa escrita se consolidou como formadora de opinião no país.
Se pudesse dar um conselho ao avô, Pedro lhe diria para ser menos fiel a Vargas. Naquela “conturbada amizade”, acredita, Aranha tinha mais apreço por Vargas do que o presidente pelo pupilo, sempre afastado do poder quando surgia a possibilidade de substituir o chefe. “Meu avô tinha uma noção romântica de lealdade”, acredita.
Caso de família
Por falar em lealdade, Pedro driblou uma armadilha das biografias “de família”: o silêncio. Em seu livro, ele não escamoteou o relacionamento extraconjugal do avô com a cantora lírica Yolanda Norris, que lhe deu o filho Luiz Oswaldo. Revela que Aranha visitava o menino e a amante, na hora do almoço, mas jantava em casa com a embaixatriz, dona Vindinha, mãe de seus quatro filhos “oficiais”.
A fotobiografia traz imagens do garoto com Yolanda. Na página 312, lá estão Aranha, a esposa e o clã oficial, enquanto bem ao lado, na página 313, o embaixador aparece com Yolanda, as netas dela e o filho Luiz Oswaldo. Detalhe: Oswaldo Aranha era padrinho de uma das netas da amante.
Durante suas pesquisas, Pedro, que só rapazinho tomara conhecimento da existência do “tio torto”, bateu à porta de Luiz Oswaldo, no Rio de Janeiro. Pediu-lhe fotos, sem muita esperança, mas o pacote veio – e cheio de surpresas, como as imagens de Oswaldo e Yolanda juntos.
Dona Vindinha morreu sem saber do outro filho do marido. A mãe de Pedro e as tias custaram a descobrir o “segredo” – aliás, bem guardado, há tempos, pelos homens do clã.
Fato é que Luiz Oswaldo Norris Aranha, de 78 anos, compareceu ao lançamento de Oswaldo Aranha – Uma fotobiografia, no Rio de Janeiro. Alguns dias antes, fora a primeira pessoa a receber um exemplar das mãos do autor, que viajou de carro de São Paulo ao Rio especialmente para lhe entregar o livro. A delicadeza não deixou de ser um gesto diplomático, político. Daqueles com “p” maiúsculo – tão escassos neste Brasil das delações premiadas...
OSWALDO ARANHA: UMA FOTOBIOGRAFIA
De Pedro Corrêa do Lago
Editora Capivara
412 páginas
R$ 70