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Quando soube da existência de um lugar para reabilitação de dependentes químicos que usa como único recurso a oração cristã, o diretor francês Cédric Kahn reagiu como o agnóstico que é. Kahn não se interrogou se a fé em Deus é capaz de levar à cura definitiva de um sofrimento psíquico. Mas ficou fascinado pela experiência daqueles que “atravessam a morte em vida”. Em visita ao lugar, ele conversou individual e coletivamente com as pessoas sob tratamento e acompanhou sua rotina de orações e outras atividades conjuntas. A partir de seu fascínio por esse tema, o cineasta filmou A prece, que estreia nesta quinta-feira (8), no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte.

No longa, acompanhamos Thomas (Anthony Bajon) chegando ao centro religioso de tratamento, encolerizando-se com as regras – a ponto de querer ir embora – e transformando-se de tal modo que, num determinado momento, ele pensa em sair dali se for para o seminário.

Mais do que a fé, é o livre-arbítrio o aspecto que Kahn procura ressaltar numa história que contrapõe “a solidão extrema da droga” com a “vida em comum” para afirmar que “é o grupo que salva, a amizade, a fraternidade”, conforme ele diz, na entrevista ao Estado de Minas, a seguir.

Tendo a seu favor um ator imenso, uma participação especial de Hannah Schygulla na “grande cena do filme”, a magnífica paisagem da montanha, uma dose de romance no roteiro e uma ideia clara do que queria dizer, Kahn fez um longa para os fiéis do bom cinema, sejam quais forem suas outras crenças.



Você disse em entrevista ao crítico Olivier Père que houve uma primeira versão do roteiro que “não funcionava”. O que era preciso para que esse filme funcionasse?


Os testemunhos que acompanhei (no centro de recuperação) me abriram a possibilidade de fazer um filme que não era propriamente sobre a história daquelas pessoas com a droga, mas sobre sua experiência com Deus. Mas, além desses testemunhos, o roteiro precisava ter realidade. Precisava ser preenchido não apenas por essas histórias, mas também pelas sensações que tive dividindo essa experiência.

Se o roteiro tinha necessidade da realidade, não pensou em fazer um documentário?

Todo filme é uma espécie de documentário.

Refizemos o local num outro endereço. Colocar uma equipe de filmagem ali seria uma grande intervenção. E os contatos exteriores são perigosos para um tratamento daquele tipo. Seria muito arriscado.

O desempenho de Anthony Bajon é aquilo que se costuma chamar de revelação de um grande ator. Como o escolheu?

O roteiro não revela nada sobre a história de Thomas. É uma tarefa muito difícil para um ator envolver o espectador sem que ele saiba nada a seu respeito. Não procurei o protagonista.
Procurei o grupo – gente entre 20 e 30 anos, de todas as origens sociais e diferentes etnias. E disse que o protagonista sairia do meio do grupo. Como o roteiro não mencionava nada preciso a respeito da história do protagonista, ele poderia ter 20 ou 30 anos, ser francês ou estrangeiro, rico ou pobre. A escolha de Anthony Bajon se impôs como uma evidência. Ele não é, de forma alguma, a caricatura de um toxicômano. E o personagem se desenha nos gestos e na interpretação dele.

E tenho a impressão de que se desenha muito também no olhar. Quando fez Pixote – A lei do mais fraco (1981), o cineasta brasileiro Hector Babenco disse que um personagem desses requer que o ator o transmita com o olhar.

Certamente.
Se o ator tem o personagem nos olhos, você já ganhou, porque isso quer dizer que ele o tem na alma.

A participação de Hannah Schygulla é um luxo a que o filme se permite?

Isso foi um grande presente. Precisávamos de uma atriz com um rosto muito bonito e, ao mesmo tempo, duro. Propusemos a Hannah Schygulla, e ela aceitou imediatamente. Naquela cena, ela demonstra que tem o papel no olhar – a autoridade, a compaixão, a bondade. É a grande cena do filme.

Quando escolheu fazer um filme que gira em torno da fé cristã, neste momento de avanço do conservadorismo nos costumes e da direita radical na política, não teve receio de ser considerado um reacionário?

Não. Enquanto estava fazendo o filme, isso nunca me ocorreu. É verdade que, agora, na etapa de promoção, tenho ouvido umas perguntas estranhas. Católicos muito radicais e laicos muito rígidos desgostam do filme. Os que gostam de A prece são os católicos e laicos mais abertos. Para gostar desse filme é preciso ter uma forma de tolerância e de liberdade de espírito.
É preciso aceitar que algumas pessoas tiveram uma vida difícil e têm necessidade da religião; que pode haver religião sem que seja algo autoritário. Esse é um filme livre sobre a liberdade. Não é um filme sobre a religião. É sobre a fé. Para se viver é preciso acreditar em algo. E a felicidade passa pelo contato com o outro.

É comum a ideia de que os cineastas têm um único tema de interesse, que desenvolvem ao longo de sua obra. É correto pensar que a necessidade da fé para dar sentido à vida é o seu tema?

Sim, meus filmes (O tédio, Le regrets, Une vie meilleure) tratam sempre de questões existenciais. Outra constante são as pessoas marginalizadas, ou melhor, como as pessoas marginalizadas conseguem encontrar o seu lugar. Mas são histórias positivas. A prece, para mim, é uma história de fraternidade – o que salva é o grupo, a vida em comum, a amizade.
Eu ia inclusive chamá-lo de A amizade.

Por que mudou de ideia?

Porque a “prece” é a esperança. É mais amplo, mais largo, mais bonito, mais nobre.

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