“No mundo de Beijo no asfalto não existem leis, juízes, forças moderadoras, respeito ao direito do próximo, nada, enfim, da organização racional da sociedade. Todos devoram todos. E quem for o mais forte, ou quem tiver maior apetite, é que sobrevive ao fim.”
Um tanto atuais essas palavras, não? Pois o dramaturgo e diretor João Bethencourt (1924-2006) publicou a crítica à montagem original do texto de Nelson Rodrigues (1912-1980) no jornal O Estado de S. Paulo em 18 de novembro de 1961.
Bons textos, seja de que natureza forem, permanecem. É por isso que, em 2018, justifica-se a terceira versão cinematográfica de O beijo no asfalto. A adaptação do clássico rodrigueano, que chega nesta quinta-feira (6) ao Cine Cidade, em BH, marca também a estreia de Murilo Benício como diretor.
E ele vem bem acompanhado. Lázaro Ramos é Arandir, que tem a vida virada do avesso ao beijar um moribundo na boca. Débora Falabella é Selminha, a mulher do protagonista; Luiza Tiso é Dália, a cunhada de Arandir; e Stênio Garcia vive Aprígio, o sogro. Benício ainda teve o luxo de levar para o projeto Fernanda Montenegro, que interpretou Selminha na montagem original.
PRETO E BRANCO O pulo do gato da nova adaptação é a forma, já que Benício pouco mexeu no texto de Nelson Rodrigues. O ator, agora diretor, filmou O beijo no asfalto de maneira metalinguística. O longa foi rodado em preto e branco no teatro do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, no bairro carioca da Tijuca. Apresenta um grupo de atores discutindo o texto enquanto o enredo se desenrola em externas (poucas) ou em momentos filmados em cenários do próprio teatro.
Na grande mesa com todo o elenco há a leitura de O beijo no asfalto, aqui conduzida pelo diretor de teatro Amir Haddad. À medida que a narrativa se desenrola, acompanhamos os atores em diferentes cenários. Em certo momento, Débora Falabella e Luiza Tiso estão se preparando no camarim, enquanto dizem as falas de Selminha e Dália. Noutro, vemos o embate do Aprígio de Stênio Garcia com as duas filhas no cenário que seria a casa.
Na leitura do texto, o destaque é Fernanda Montenegro. Ali, ela interpreta a vizinha fofoqueira, um pequeno papel. Mas são as discussões propostas pela atriz que enriquecem a dinâmica. Nelson Rodrigues escreveu O beijo no asfalto a pedido do Teatro dos Sete, grupo que Fernanda fundou em 1959 ao lado de Gianni Ratto, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres.
“O Nelson não está, meu anjo. Aqui quem fala é o Nestor.” Fernanda Montenegro adora contar a história de como o dramaturgo enrolou o Teatro dos Sete com o texto – levou um ano para ele entregar o original. A atriz cansou de ligar para Nelson, que atendia ao telefone e dizia ser outra pessoa. Mas quem o conhecia sabia como seu tom de voz era inconfundível.
O enredo mostra a repercussão na vida de Arandir do que o personagem chama de ato de misericórdia. Um homem, que ele nunca viu é atropelado no Rio de Janeiro dos anos 1960. À beira da morte no meio da rua, Arandir ouve o pedido por um beijo. Um repórter sensacionalista e um delegado corrupto fazem do ato um escândalo social, levando o caos à vida do rapaz e daqueles que o cercam.
Benício, que demorou uma década para realizar seu primeiro longa, sempre pensou em filmar O beijo no asfalto fazendo a interseção entre cinema e teatro. “Sempre que via os filmes, me interessava em saber como eles foram feitos. Acompanhava a fala dos diretores, ia aos extras. Queria fazer um filme de cujo processo o espectador tivesse a oportunidade de participar, ver o que está atrás das câmeras. Acho que há o interesse das pessoas em ver como é a rotina do ator, o que acontece quando ele vai levar uma obra, como estuda os personagens”, diz.
O longa foi rodado em 2015. “Tive muito medo de chegar ao set sem saber onde colocar a câmera”, admite Benício. Walter Carvalho assumiu tanto a câmera quanto a direção de fotografia. A leitura dramática foi filmada em somente um dia. Ali, Benício colocou Amir Haddad como o diretor da peça. “Deixei todos super à vontade para falar o que quisessem, inclusive para interromper a leitura e fazer alguma observação.” É em momentos assim que a figura de Fernanda Montenegro se sobrepõe aos demais, dando a dimensão histórica da montagem.
O impressionante é ver que, 57 anos mais tarde, a atualidade de O beijo no asfalto se mantém. Nesta era das fake news criadas para atender a interesses escusos, o turbilhão criado por Nelson Rodrigues parece premonitório.
NA TELA
O beijo no asfalto ganhou outras duas versões no cinema. Em 1981, foi lançado o filme dirigido por Bruno Barreto, com Tarcísio Meira (Aprígio), Ney Latorraca (Arandir), Lídia Brondi (Dália) e Christiane Torloni (Selminha) no elenco. Em 1965, estreou o longa de Flávio Tambellini, com Xandó Batista, Reginaldo Faria, Norma Blum e Nelly Martins nos mesmos papéis